Os 70 anos da Bienal de São Paulo: um presente para a cidade e para o mundo

O artista e professor Sergio Romagnolo evoca suas lembranças e explica o impacto da maior mostra de artes do hemisfério Sul

Há 70 anos, em 20 de outubro de 1951, o empresário Francisco Matarazzo Sobrinho, conhecido como Ciccillo Matarazzo, e sua esposa Yolanda Penteado inauguravam a primeira edição da Bienal de São Paulo. À época, o evento ocorreu em uma sede provisória, na esplanada do Trianon (posteriormente, a partir de 1969, o local passaria a abrigar o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, MASP). Nas edições seguintes, em 1953 e 1955, a Bienal de São Paulo já ocupava  dois pavilhões no Parque do Ibirapuera: o da antiga Prodam e o edifício onde hoje está o Museu Afro Brasil. Em 1957 foi inaugurada sua sede definitiva inaugurada, conhecida como  Pavilhão da Bienal.


© Autor não identificado
Pavilhão localizado na Esplanada do Trianon, na Avenida Paulista

 A Bienal de São Paulo é considerada a maior mostra de arte do Hemisfério Sul. Criada nos moldes da Bienal de Veneza, a Bienal é considerada a terceira mostra de arte mais relevante do mundo. Não à toa, é realizada nos anos subsequentes à sua congênere italiana. Seus números são impressionantes. Inicialmente abrigada num vasto edifício com 25 mil m2 de área, expandiu-se para ocupar também outras instituições de arte pela cidade. Em suas 32 edições (excluindo a deste ano) foram expostas 63.066 obras de 10.913 artistas, e pelas suas salas passaram 10 milhões de visitantes.

 O prestígio da instituição é evidenciado pelos artistas cujas obras já foram exibidas: uma longa lista de talentos que inclui Max Bill, Portinari, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Picasso, Magritte, Lasar Segall, Giacometti, Goeldi, Brancusi, Morandi, Rivera, Orozco, Siqueiros, Sophie Taeuber-Arp, Flávio de Carvalho, van Gogh,  Pollock, Lygia Clark, Mira Schendel, Volpi, Wanda Svevo,  Kurt Schwitters, Marcel Duchamp, Chagall, Miró, Man Ray, Paul Klee, Picabia, Jasper Johns, Warhol, Rauschenberg, Edward Hopper, Kandinsky, Louise Bourgeois, Cildo Meireles, Tunga, Anselm Kiefer, Jean-Michael Basquiat, Edvard Munch e Arthur Bispo do Rosário — só para citar alguns.

Igualmente representativo da força das mostras é a relação de pessoas que atuaram como curadores e organizadores das edições. Gente como Lourival Gomes Machado, Wolfgang Pfeiffer, Mário Pedrosa, Sergio Milliet, Walter Zanini, Sábato Magaldi, Aracy Amaral, Vilém Flusser, Maria Bonomi, Yolanda Mohalyi, Annateresa Fabris, Agnaldo Farias, Sheila Leirner, Ivo Mesquita, Sônia Salzstein, Stella Teixeira de Barros, Nelson Aguilar, Paulo Herkenhoff, Adriano Pedrosa, Lisette Lagnado, Rina Carvajal e Luis Pérez-Oramas, também para mencionar apenas poucos nomes.

 Em todo o mundo, as bienais de arte têm rivalizado com as feiras de arte, cada uma procurando sedimentar uma identidade própria. Em geral, as cidades optam por sediar ou uma bienal internacional ou uma feira de arte. A única exceção é a cidade de São Paulo, que possui ambas. E, coincidentemente, as duas são realizadas no mesmo local, o Pavilhão da Bienal. Esse fato evidencia mais ainda a comparação entre os dois eventos, levando a uma busca por elementos que possam diferenciá-los.

Os efeitos da Bienal sobre a cidade e o país

Depois de sete décadas de bienais, pode-se perceber os efeitos que uma mostra desse porte produz, em nossa cidade e em nosso país.

É incalculável a influência que a Bienal exerceu sobre o Brasil e o mundo.


© Athayde de Barros
Freiras visitam Sala Especial dedicada a Vincent van Gogh
5a Bienal de São Paulo

Sem ela, muitos artistas, críticos de arte, historiadores, colecionadores e  galeristas não teriam seguido suas trajetórias. E boa parte dos museus, instituições culturais, faculdades, galerias e feiras de arte que nos rodeiam não existiriam, tal como os conhecemos hoje.

Também é imensurável seu papel na formação do público em geral, dedicando toda a sua gigantesca estrutura para falar de coisas tão sutis e delicadas como a arte contemporânea, aguçando a sensibilidade e a reflexão de todas as pessoas que frequentam seus espaços.

O próprio projeto do Parque do Ibirapuera, concebido por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1954 para comemorar o quarto centenário da cidade, insere o Pavilhão da Bienal em um projeto de cidade e de vida maior do que uma simples exposição de arte. Isso é possivel porque o arquiteto já tinha a  intenção de dotar a cidade de um espaço público e gratuito gigantesco, que pudesse acolher todas as pessoas e oferecesse vários edifícios culturais, onde se pudesse passar o dia inteiro usufruindo do melhor que a humanidade pode oferecer: a arte e a contemplação da natureza.

O Museu de Arte Contemporânea da USP, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, a Oca, o Museu Afro Brasil e o Auditório do Ibirapuera são hoje uma realidade. A própria marquise do Ibirapuera, com seus 28 mil m2, é o único espaço público onde é possível abrigar-se do sol e da chuva nesta cidade, cujos espaços públicos raramente são pensados para acolher – e somente aqueles situados em bairros ricos.

As últimas edições da Bienal foram de livre acesso, prescindindo da compra de ingressos. Isso gera um expressivo contraste com outros espaços da cidade que têm demonstrado, cada vez mais, o seu caráter comercial e excludente. É o caso dos shoppings e hipermercados que, mesmo sem cobrar ingressos, fazem uma triagem para determinar quem pode ou não frequentá-los. 

A Bienal de São Paulo é um convite à reflexão e à fruição, com seus espaços amplos, seus lugares de estar,  o respeito por todas as pessoas explicitado nos desenhos dos bancos, mesas e espreguiçadeiras, e na iluminação desenhada e pensada para dar conforto. É um presente para a cidade e para o mundo; é um exemplo de como o mundo poderia ser. É uma utopia realizada de dois em dois anos. É um projeto de mundo onde todos querem estar.

Um Depoimento


O artista Ben Vautier, do Grupo Fluxus, durante performance na 17ª Bienal© Marcos Santilli

Tenho muitas lembranças relacionadas à Bienal desde a primeira vez em que a visitei, em 1977, simultaneamente na condição de público e, surpreendentemente, de artista expositor. Aquela edição, realizada em pleno período da ditadura civil-militar, coincidiu com um boicote internacional contra a própria ditadura. Chamada de “Bienal do Vazio”, título que ressurgiria varias vezes anos depois, apresentava uma faixa, colocada por nosso grupo de artistas, onde se lia um verso de Gilberto Gil: “é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”.

 Lembro do artista Ben Vautier, do Grupo Fluxus, fazendo uma performance  na 17a Bienal, em que dormia à base de calmantes durante a abertura oficial, e lembro de ver o então presidente José Sarney passeando pelo espaço e se defrontando com aquele homem dormindo de pijama no meio do seu caminho cerimonial, junto com toda a sua comitiva e cercado por jornalistas.

 A Bienal produziu visões espetaculares como a instalação de Tunga no vão central com uma cabeça de bronze, moldada nele próprio, balançando pendurada pelos longos cabelos no pé direito triplo.

 Em algumas ocasiões, foram organizadas exposições especiais entre os anos em que ocorriam as edições oficiais da Bienal. Foi o caso da 1a Bienal Latino-Americana, em 1978, que teve curadoria da crítica Aracy Amaral e de Juan Acha, e da Mostra do Redescobrimento: Brasil+500, em 2000.

Desta, recordo da cerimônia de abertura. No começo da noite, o Ibirapuera estava aberto apenas para convidados: presidentes, governadores, comitivas oficiais, autoridades, artistas, jornalistas. Uma noite de clima agradável, com a Lua cheia, ampliada pelo efeito de lupa que faz com que seu aspecto ao nascer pareça ser muito maior. Lembro de estar no banheiro e me deparar com vários indígenas que participavam da abertura devidamente paramentados com arcos, flechas, cocares… Tudo naquela noite, naquele parque, parecia arte. Todos sensibilizados e reflexivos. Foi o momento em que me senti verdadeiramente brasileiro e feliz por estar em um espaço onde o estado oferece arte e reflexão para a cidade.

Tenho lembranças de obras que vi na Bienal e que não poderia ter visto de outro modo: as enormes pinturas do Gerhard Richter, a instalação de Joseph Beuys Relâmpago com Veados em Seu Brilho de (1958/87),  as pinturas de A.R. Penk e Markus Luperts, as pinturas brancas do venezuelano Armando Reverón, a grande coleção de Arturo Schwarz com as obras de Marcel Duchamp, o grande mural de Keith Haring, a grande tela de Sheila Leirner, as curadorias de Walter Zanini em 1981 e 1983, a arquitetura de Niemeyer que sempre reaparece renovada.

Algumas pessoas marcaram a história da Bienal. Uma delas foi o seu Dedé, porteiro do prédio durante décadas que me deixava entrar sem pagar o ingresso, quando ainda era pago, depois de vários anos de encontros durante as muitas visitas à mostra. Walter Zanini, que encarnava o espírito da Bienal como ninguém, durante as duas vezes que foi curador, nas quais implantou o conceito de “analogia de linguagens”, inovador para os anos de 1981, foi meu professor de História da Arte, na Fundação Armando Alvares Penteado, FAAP. Surpreendido com a desistência da delegação americana, que se negou a ter os seus artistas divididos em espaços diferentes, organizados segundo as linguagens que apresentavam, teve de improvisar outros artistas e decidiu convidar jovens artistas grafiteiros de Nova York.

Lembro das delegações encaminhadas por países (um modelo que ainda gostaria de ver ressurgido), como as da Alemanha, Israel, E.U.A., Argentina, Uruguai, Espanha, México… Obras que nunca teria visto se não fosse a Bienal. Como Roman Opałka e suas pinturas brancas de números feitos em sequência até a sua morte em 2011. A Família Boyle e seus relevos moldados nas calçadas sujas das cidades. A instalação e performance de Maurício Ianês, que viveu no prédio da  Bienal por uma semana mantido exclusivamente por doações de alimentos e roupas depois de ter chegado nú no local, as obras em forma de listras de Daniel Buren, dentre as quais uma, feita na escada rolante, passou  desapercebida durante décadas… a lista é gigante.

A obra Enquanto flora a borda tomba magnética de acúleos zumbidos a trilha atapetara aérea ataraxia pendular arrepio marsupial que mesmo hominídeo cabia fenosos pelos ao lóbulo rastreara assistência fractal hesita-o animal de níquel vêm o voo entomológico fêmea asculta cabeça genomas penetrarás (1982), de Tunga, foi apresentada na 19ª Bienal (1987)

Lembro de tantas coisas que aprendi com as Bienais e penso em tantas outras que ainda vou aprender. Penso nas qualidades de possuirmos um prédio e um parque desse tamanho, voltados exclusivamente para a arte. É um orgulho abrigarmos esse monumento em nossa cidade; Viva a Bienal de São Paulo !

Imagem acima: encerramento da 28 Bienal de São Paulo com coletivo Avaf, 07/12/2008 ©
Amilcar Packer