“Nosso compromisso é com a construção de políticas institucionais”

Assessor para assuntos de Diversidade, Leonardo de Souza avalia as ações da Unesp voltadas para o público LGBTQIA+ e detalha os próximos passos

O mês de Junho é celebrado, internacionalmente, como Mês do Orgulho LGBTQIA+. A efeméride, além de honrar a memória dos pioneiros das lutas pelas pautas e direitos ligados à diversidade sexual, também serve de referência para ampliar a conscientização desta temática junto à sociedade. 

Na Unesp, uma das figuras mais atuantes na promoção do debate e da divulgação dos temas LGBTQIA+ é o professor Leonardo Lemos de Souza, do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências e Letras, no câmpus de Assis. 

Entre 2017 e 2020, Leonardo coordenou, junto com o professor Juarez Xavier, o programa Educando para a Diversidade. Nos quatro anos desde que foi implementado, o programa se desdobrou para alcançar várias frentes, que incluíram o apoio à realização de eventos e seminários sobre a temática da diversidade sexual e de gêneros em diversos câmpus da Unesp; a confecção de um guia de prevenção e identificação ao assédio sexual/sexista/por orientação sexual/por identidade ou expressões de gêneros, que obteve alcance nacional e se tornou referência para outras universidades; a criação de um portal para disseminar, além de outras pautas ligadas à diversidade,  informações sobre a pesquisa, ensino e extensão na Unesp com temas LGBTQIA+; e a produção de um programa homônimo pela TV Unesp, incorporado à grade regular de programação e transmitido para as cidades de Bauru e Botucatu.

Leonardo também orientou sua própria atividade de pesquisador para investigar qual era a percepção de docentes, alunos e funcionários técnico-administrativos LGBTQIA+ sobre o modo como a Unesp aborda esta temática. No total, o estudo coletou observações e críticas de mais de 400 pessoas, procurando mapear os pontos fortes e fracos das ações empreendidas até aqui. A pesquisa recém-concluída, que teve apoio da Fapesp, já permite identificar novas possibilidades de atuação e intervenção. 

Desde janeiro de 2021, Leonardo passou a ocupar o cargo recém-criado de Assessor para assuntos de Diversidade junto à vice-Reitoria. Nesta entrevista, ele apresenta e discute as ações que a Universidade empreendeu até aqui com foco na defesa da comunidade LGBTQIA+, e comenta sobre os próximos passos, que inclui a criação de uma Coordenadoria de Educação para  Diversidade e Equidade. “O que fizemos, até o ano passado, foi  promover o debate, produzir dados e conhecer as demandas da comunidade. Hoje estamos no início da institucionalização e da construção de políticas amplas de acesso, permanência, visibilidade (no ensino, pesquisa e extensão), e de ações de enfrentamento aos processos de exclusão com formação de protocolos de atenção.” Ele reconhece que ainda há muito por fazer, mas reforça: “Nesta gestão, o compromisso é com a implantação destas políticas.” 

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Como a Unesp tem atuado no sentido de trabalhar as pautas e temáticas associadas à comunidade LGBTQIA+? 

Leonardo: Historicamente, as discussões sobre essas questões são realizadas em cada câmpus. De acordo com suas próprias demandas, o câmpus se mobilizava para produzir discussões, debates e eventos de conscientização, buscando a criação de um clima de respeito à diversidade sexual e de gênero na Universidade. Nos últimos anos, de 2017 para cá, a Unesp construiu um projeto, que é o programa Educando para a Diversidade. Através desse programa, pudemos auxiliar no fomento de ações já existentes e possibilitar outras.

De que forma? 

Leonardo: Uma das primeiras ações produzidas foi a resolução 62/2017. Ela assegura às pessoas travestis, transgêneros e transexuais o direito ao uso do nome social em todas as instâncias, e em todos os documentos emitidos pela Unesp.

A resolução 62/2017 garantiu amplamente o direito ao uso do nome social em todas as instâncias, numa época em que outras universidades o limitavam ao uso interno, e não em todas as documentações. 

Naquele contexto, o projeto Educando para a Diversidade tinha uma parceria com o Convênio Unesp-Santander. E graças a esta parceria foram produzidas pesquisas com o objetivo de conhecer a realidade da Unesp com relação a situações de violência relacionadas à identidade de gêneros e diversidade sexual. Foi feito um levantamento sobre a percepção dessa violência na Universidade. E, com base nesses estudos, também foram desenvolvidas algumas ações de formação junto às ouvidorias locais.

Que tipo de ações? 

Leonardo: Como a meta do projeto era a educação para a promoção de uma cultura de respeito às diversidades, foram destacados o debate de práticas sexistas, LGBTI-fóbicas, racistas e capacitistas, com foco nas ouvidorias locais da Unesp. O objetivo foi capacitá-las a exercer uma escuta qualificada das questões e das demandas que existem no cotidiano de cada câmpus. Nos meses de setembro, outubro e novembro do ano passado também fizemos uma série  de seminários de debates que abordaram a diversidade na Universidade, com a participação de representantes de coletivos, pesquisadoras/es especialistas e discentes da Unesp. Esses debates permitiram um diálogo mais próximo das demandas locais, com vistas a uma articulação mais ampla e institucional.  

Também no contexto do Educando para a Diversidade ao longo destes anos (vale lembrar que o programa continua) ocorreu o financiamento, através de editais, de ações e eventos para atender a demandas sobre estas temáticas por parte dos câmpus da UNESP. Em cada câmpus onde se atribuía importância ao debate dessa questão, os grupos de pesquisa e núcleos de extensão receberam recursos pra desenvolverem essas atividades. O guia sobre prevenção ao assédio que mencionei foi também trabalhado em alguns cursos e ações de determinados câmpus da Unesp, principalmente junto às ouvidorias. Foi produzido também, em parceria com o Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão (NUPE), um guia sobre identificação e prevenção aos racismos na Universidade. Estes materiais procuram levar em conta as intersecções nas existências de pessoas LGBTQIA+ pretas, indígenas, portadores de deficiências. A multiplicidade de marcadores sociais da diferença numa existência tem implicações no modo como cada um vivencia os sistemas de opressão e subalternidade. 

Evento no câmpus da Unesp em Dracena, apoiado pela convênio Unesp-Santander

Como  se pode ter acesso a essas cartilhas? 

Leonardo: Através do portal do Educando para a Diversidade. Lá são apresentadas informações importantes sobre projetos dos núcleos de ensino e de extensão na Universidade que estão voltados para a questão da diversidade sexual e de gênero, tanto na relação com a comunidade e a sociedade, quanto internamente, no âmbito da Unesp. A TV Unesp apresenta o programa Educando para a Diversidade. A TV Unesp também apresenta outros espaços de informação e debate muito importantes sobre a temática LGBTQIA+ e sobre direitos humanos. 

Além disso, em alguns cursos de Pedagogia e de licenciatura da Unesp passaram a ser oferecidas disciplinas específicas sobre a questão da diversidade sexual e de gêneros. O foco é formar docentes que irão trabalhar nas escolas, no ensino básico.

Quanto às ações educativas e formativas para a comunidade universitária, uma outra estratégia importante é oferecer cursos de formação sobre direitos humanos e diversidade para servidores docentes, técnicos-administrativos e discentes. Estamos atentos a essas necessidades e, nestes primeiros seis meses de gestão, estamos avançando nas propostas. 

Aliás, a Unesp ainda tem muito a avançar no debate sobre a inclusão e acesso de travestis, transexuais e transgêneros. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), de 2020, somente 70% dessas pessoas concluem o ensino médio, e somente 0,02% estão no ensino superior. E aqui elas sofrem com o preconceito e discriminação, levando à evasão. Por exemplo, estamos preparando um evento para fazer uma discussão aberta à comunidade sobre o uso dos banheiros por essa população. Isto é, o direito que travestis, transexuais e transgêneros têm de usarem o banheiro conforme a sua autodesignação de gênero. Esse debate vai ocorrer este ano e terá a  participação de uma representante da ANTRA e de ativistas transfeministas. Também vai tratar das experiências de outras duas universidades do Brasil com este tema. Enfim, estes são exemplos de ações em curso. 

E como a população LGBTQIA+ da Unesp percebe essas iniciativas e projetos? Ela se sente atendida?

Leonardo: Com apoio da Fapesp e junto com um aluno de Iniciação Científica, que hoje está fazendo mestrado, fizemos uma pesquisa no âmbito da Unesp. O objetivo era perceber como professores, alunos e técnicos LGBTQIA+ percebem as ações afirmativas que a Universidade tem desenvolvido, e o que mais achavam que deveria ser feito. Era uma maneira de entender melhor qual era o alcance das iniciativas que temos implementado e de nos avaliarmos. A população LGBTQIA+ da Universidade sabe as lacunas das ações existentes e as que precisam ser implementadas. A pesquisa acabou recentemente e estamos ainda trabalhando no aprofundamento de alguns dados. Tivemos 453 respondentes entre discentes, docentes e técnicos-administrativos. 

Um dado importante das respostas é que essas pessoas entendem que a Unesp deve discutir mais as questões envolvendo LGBTQIA+ fobia. Elas percebem que existem ações. No entanto, é preciso disseminar mais estas iniciativas, e os lugares onde elas acontecem. Outras devem ser debatidas, por exemplo, o caso do direito ao uso do banheiro conforme a autodesignação de gênero e a ampliação da política de cotas para travestis, transexuais e transgêneros. 

Seminário Paremos a Transfobia, organizado em julho de 2017

Quais foram os pontos mais positivos e mais negativos na avaliação dos entrevistados? 

Leonardo: As pessoas relataram a percepção de que se sentem fisicamente seguras na Universidade, do ponto de vista da violência física. Mas há um elemento contraditório: ao mesmo tempo que indicam essa percepção, relatam que percebem que a Universidade, nos diversos segmentos, não sabe acolher e não reconhece as especificidades das pessoas LGBTQIA+. Isso foi relatado por 50% dos servidores docentes e técnicos sobre seus colegas de trabalho, e 53% dos discentes relatam o mesmo sobre seus professores. Esse dado é interessante porque, embora as pessoas se digam seguras do ponto de vista da violência física, outras coisas acontecem: formas de assédio, discriminações, preconceitos, exclusões.  E elas percebem que isso acontece bastante, seja pela falta de informação ou por uma cultura de desrespeito e de invisibilização dessas pessoas.  

Por exemplo, uma pesquisa da ANTRA mostra que a expectativa de vida dessas pessoas é, em média, de 35 anos. Elas apresentam baixas condições de empregabilidade e de trabalho efetivo. Então, um dos objetivos das políticas que a gente está construindo é trazer estas pessoas para a Universidade, seja por meio das cotas, seja pela questão das normativas que garantam que possam permanecer em condições de respeito e dignidade. 

Um dos objetivos das políticas que a gente está construindo é trazer estas pessoas para a Universidade, seja por meio das cotas, seja pela questão das normativas que garantam que possam permanecer em condições de respeito e dignidade. 

Como surgiu a nova Assessoria para assuntos de diversidade da Unesp?

Leonardo:  Eu coordenei, junto com o professor Juarez Xavier, o projeto Educando para a Diversidade de 2017 até 2020. Era um programa que contava com recursos externos, com o objetivo de produzir a discussão sobre as temáticas da diversidade na Universidade, incluindo a diversidade sexual e de gênero. [Na época em que começou o ciclo eleitoral] nós apresentamos um relatório sobre o programa para todos os candidatos, no período de pré-eleição. Ambos se comprometeram a dar continuidade e institucionalizar este projeto. 

Na verdade, a minha atuação hoje é justamente fruto desde trabalho, e tem o objetivo de dar início a uma institucionalização de políticas para a diversidade na Unesp. Por exemplo, do ponto de vista institucional, estamos elaborando um documento que propõe a implantação de uma Política de Prevenção e Enfrentamento ao assédio e outras formas de violência na Universidade, de maneira a estabelecer caminhos para as unidades. A partir dela, devem ser ainda produzidos protocolos específicos para intervenção e prevenção dos assédios e violências de caráter sexista, LGBTfóbico, capacitista e racista. 

Mas, para além da assessoria, nós já construímos também uma proposta para criar uma Coordenadoria de Educação para a Diversidade e Equidade. A gente espera que até o final do ano, ou início do ano que vem, ela esteja implantada. 

Enquanto isso,  estamos fazendo estudos para conhecer melhor a realidade das pessoas LGBTQIA+ que estão na Universidade, e continuando os trabalhos do Educando para a Diversidade. Queremos saber o que elas acessam e o que elas não conseguem acessar, qual é a percepção delas sobre a Universidade e em relação a suas existências, seus corpos, seus saberes… Com isso, podemos produzir ações visando garantia de direitos e a construção de uma cultura de respeito no ambiente universitário.

A coordenadoria terá esse papel de produzir políticas e ações da Universidade que estejam integradas com outras instâncias, como a comissão de acessibilidade e inclusão, a Comissão de Prevenção à Violência, o Observatório de Educação para Direitos Humanos e o Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão. Nós temos conversado com estes grupos e iniciado uma série de colaborações, procurando integrar ações para uma grande política institucional para a diversidade na Unesp.

Seminário Paremos a Transfobia, organizado em julho de 2017

Qual é o principal desafio que a Unesp enfrenta com relação a formação de uma cultura de respeito a estas pessoas?

Leonardo:  Olha, são muitos. O principal é produzir um espaço de debate e de formação que seja constante, permanente, em diálogo com a sociedade civil e com os grupos e movimentos sociais, sobre a questão LGBTQIA+. Fazer esta discussão de forma integrada com a finalidade de debate, mas também de formação interna e conscientização da comunidade acadêmica. 

E acho que há outra coisa, que é produzir ações que permitam o acesso e a permanência desses grupos na Universidade, principalmente travestis, transexuais e trangêneros, com dignidade e respeito.  E estamos dando estes passos, produzindo documentos, articulações, discussões em rede sobre estas questões. O compromisso dessa gestão é com a efetiva implantação de políticas decorrentes desses debates e demandas.