Contemplar o mundo, sem pressa, sem culpa

Não estaríamos todos nós, especialmente nossas crianças e jovens, sendo submetidos a uma overdose de imagens, cores, sons?

O 26º presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt (1901-1909), em 1915, já aposentado, no Refúgio Naclonal de Vida Silvestre Breton, criado em 1904, nas Ilhas Chandeleur, um desabitado arquipélago que serve de pouso para aves migratórias no Golfo do México a cerca de 80 km da costa da Louisiana. Foto: U.S. Fish and Wildlife Service/Library of Congress.

Certa vez ao ser indagado sobre o que gostaria de ser quando crescesse, um de meus irmãos não teve dúvida, foi taxativo: ”Quero ser água de piscina”.  Até hoje não sei o porquê dessa resposta, embora essa história sempre venha a ser recordada e seja motivo de risos quando das reuniões de família.

Ao lembrar-me dela sou também obrigado a reconhecer que as águas das piscinas sempre me chamaram a atenção, especialmente nos finais de tarde, quando, em sua calma, refletem os raios do pôr do sol. Uma imagem que sempre considero bonita e me transmite tranquilidade, paz e, atualmente, uma certa nostalgia.

Essas lembranças vieram-me à cabeça porque considero extremamente prazerosos esses momentos em que nos permitimos contemplar o mundo, sem pressa, sem culpa.

Observar a paisagem

Esse prazer eu trago desde minha infância, nos anos 1960. Lembro-me de que nas viagens de ônibus, de Botucatu a São Paulo, gostava de sentar-me  “na janelinha” e ficar observando a paisagem. Eram cinco horas de viagem, não havia ainda a Rodovia Castello Branco. A descida da serra era emocionante, com paisagens lindas e assustadoras para um garoto que sempre teve medo de altura.  Mas o que mais  gostava de ver estava na região de Itu: eu vibrava com as imensas rochas (matacões de granito) que apareciam nos campos situados às margens da estrada.  Como elas poderiam estar lá? Quem as havia levado? Como era possível, já que eram tão pesadas? Minha cabeça viajava naqueles momentos…

Ainda hoje quando viajo de ônibus gosto muito de observar a paisagem. Mas devo ser um dos poucos que ainda fazem isso.  A grande maioria fica a olhar e a manejar o celular, inclusive as crianças, algumas delas ainda muito novas. Eu fico a pensar: não há como a paisagem competir com a profusão de cores e movimentos proporcionados pela telas de um smartphone.  Isso sem falar na trilha sonora que acompanha os jogos, desenhos e séries.  Competição inglória…

Não estaríamos todos nós, especialmente nossas crianças e jovens, sendo submetidos a uma overdose de imagens, cores, sons?  Tudo isso associado ainda a uma quantidade imensa de informações disponibilizadas em um ritmo alucinante? Fico com a sensação de estarmos em uma maratona, mas correndo-a em um ritmo de uma prova de 100 metros rasos.

Roda-viva

Essa sensação foi reforçada ao ler “O Círculo”, de Dave Eggers. O autor descreve uma sociedade em que uma determinada companhia começa a centralizar todas as operações digitais. Com isso, todas as informações pessoais passam a estar reunidas e à disposição da empresa. Ou seja, ela nos tem à mão. George Orwell, em sua obra-prima, “1984”, de  maneira muito mais brilhante, já previa essa situação e o controle absoluto da sociedade por parte do “Grande Irmão”.

Mas o que realmente me incomodou no livro de Eggers foi a roda-viva em que a personagem central se vê ao ser contratada pela companhia:  a necessidade de participar ativamente da empresa, da “família”,  respondendo a e-mails, mensagens, tornar-se um membro ativo em grupos de discussão, dando opinião sobre tudo, ter uma vida social ativa e “emocionante”.  Tudo isso em um ritmo crescente, na busca de pontos que lhe permitam ascensão dentro do Círculo.  Não há respiro, pausa, o ócio sem culpa.  As 24 horas do dia são dedicadas a essa escalada, à busca de destaque entre seus colegas e membros da seleta “família”.

Assim, além da usurpação de seu eu privado pela companhia, a velocidade imposta ao processo torna-se angustiante.  Ganha-se tempo com a esperança de se ter mais tempo, para se ganhar mais tempo e com isso se ter mais tempo. Qual o objetivo dessa roda-viva?

Consequências imprevisíveis

Assusta-me que, em nosso dia a dia, vejamos como absolutamente normais várias dessas “novidades”. Textos longos? Nem pense em publicá-los, já que ninguém irá lê-los, pois não há paciência e tempo para isso. Postagens em redes sociais?  É fundamental que elas alcancem o maior número de pessoas no menor tempo possível – observe o número de cliques – isso é superimportante!  

Quer ser  um digital influencer? É necessário que você seja absolutamente pródigo e rápido nas publicações, pois assim será seguido por milhares de pessoas, condição básica para ser reconhecido como um verdadeiro influencer. Também não esqueça de responder a cada uma das mensagens recebidas nos muitos grupos dos quais você faz parte no aplicativo de mensagens de seu celular.

Preocupa-me esse ritmo frenético, que cresce em uma espiral que parece não ter fim. Cada vez mais  fico com a sensação de que estamos esticando, esticando, esticando, esticando a corda, e um dia ela se romperá, com consequências imprevisíveis.

Quanto a mim, enquanto for possível, continuarei a observar as águas das piscinas e as rochas de Itu.

José Paes de Almeida Nogueira Pinto é professor do Departamento de Produção Animal e Medicina Veterinária Preventiva, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, câmpus de Botucatu. É assessor da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp.

Na imagem acima, o 26º presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt (1901-1909), em 1915, já aposentado, no Refúgio Naclonal de Vida Silvestre Breton, criado por ele em 1904, nas Ilhas Chandeleur, um desabitado arquipélago que serve de pouso para aves migratórias no Golfo do México a cerca de 80 km da costa da Louisiana. Foto: U.S. Fish and Wildlife Service/Library of Congress.