A caixa d’água pantaneira

Mudanças climáticas aceleram desequilíbrio nos mecanismos naturais do Pantanal.

Enquanto a chalana do pantaneiro vira poesia na música de Almir Sater, em um remanso do rio Paraguai, o conhecimento que a ciência vem acumulando sobre essa região, encravada no coração da América do Sul, vem deixando claro que ela possui características únicas no mundo. Detalhado trabalho dos veteranos da pesquisa pantaneira, Ivan Berger e Mario Assine, respectivamente cientistas da Embrapa e da Unesp de Rio Claro que se dedicam há décadas aos meandros técnicos da região, revela, inclusive, como as mudanças climáticas afetam o Pantanal, e aponta caminhos que podem ajudar na proteção da região.

“Em si mesmo, o Pantanal é algo completamente diferente”, afirma Assine, docente do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Unesp, campus de Rio Claro. “Lá, veem-se rios se formando a todo momento, características geológicas únicas, e ainda por cima a interação com os biomas Cerrado e Amazônia”, explica esse geólogo do petróleo de formação, que ao longo da carreira migrou sua curiosidade científica para a maior planície inundável do planeta. O que a dupla está propondo – Berger é biólogo especialista em sensoriamento remoto com trabalhos feitos na Amazônia – é uma nova forma de pensar o Pantanal. É uma planície, ligada ao planalto, em constante movimento. Alguns processos, inclusive, por causa de efeitos antrópicos e do aquecimento global estão acelerados, segundo as análises recentes da dupla de pesquisadores.

A história contada agora contém milhões de anos. As seções geomorfológicas propostas foram esculpidas por eventos geológicos que redesenham constantemente a superfície da Terra. Além de processos tectônicos e erosivos, entram em cena também as variações naturais do clima. Segundo os cientistas, essa variabilidade climática em curso no Pantanal modula a magnitude da descarga fluvial de ano para ano na região e a carga de sedimentos das terras altas às planícies, afetando também a recarga das águas subterrâneas, bem como o afundamento e a acomodação dos traçados fluviais. O trabalho reforça a tese – já apresentada pela equipe de Assine em trabalhos anteriores – de que a região, pelo menos nos últimos 100 mil anos, período sob foco do grupo, tem abrigado um processo característico conhecido como avulsão fluvial.

O Pantanal tem aproximadamente 150 mil quilômetros quadrados de extensão. As áreas de planalto, cobertas por Cerrado e pela Floresta Amazônica, ficam por volta de 300 quilômetros distantes das planícies, que são o coração do Pantanal submerso todos os anos por meses. Os rios nas terras altas, que não estão confinados em vales, fluem para a parte baixa, carregando sedimentos, além das águas da chuva. Quando chegam à planície, com a diferença muito pequena de altitude (a média é 100 metros), os materiais em suspensão de maior espessura ficam pelo caminho, gerando literalmente um entupimento do rio.

Em determinado momento, que pode demorar anos, a água vence o bloqueio. O rio extravasa da margem – essa é a chamada avulsão fluvial – e vai abrir um novo caminho até o fim da planície, onde está o grande rio coletor do Pantanal, o Paraguai.

“É como se fosse literalmente uma competição. Ao longo do tempo, esses vários percursos vão formando o que estamos chamando de megaleques [a figura, vista de cima, pode parecer um conjunto de veias e artérias ou de raízes se espraiando sobre a superfície] no caso das estruturas maiores. Entre eles estão os interleques, que foram, vamos dizer assim, perdendo a competição e deixando de existir”, explica Berger.

É um constante redesenho de canais que, ao longo dos anos, como atestam as imagens de satélite, vão rompendo a bacia sedimentar pantaneira. O maior megaleque identificado na pesquisa é o do rio Taquari. Mas existem outros menores, como o do rio Negro. Assine gosta de dizer que o Pantanal é uma “dádiva geológica”, onde os rios são “nômades”.(Veja mapa abaixo.)

Sobre todo esse contexto, que escancara o fato de a região ser um grande reservatório aquático, onde a água proveniente das chuvas nos planaltos sobe e desce ao longo dos anos, é que se assentam as mudanças climáticas globais.

Além do novo padrão climático, o desmatamento na Amazônia e no Cerrado – e ele está em alta, segundo as análises mais recentes feitas por sistemas como o do INPE – joga mais sedimentos nos rios. Esse processo vai acelerar o redesenho dos megaleques, alterando bastante as feições pantaneiras.

A análise de tendências feita pela dupla de pesquisadores sugere que a intensidade da precipitação no verão e o número de dias secos no outono/inverno por causa das mudanças climáticas têm aumentado consistentemente em cerca de 0,6 mm/dia/década e 1 dia/década, respectivamente. Dessa forma, segundo o estudo, observa-se mais chuva e uma maior carga de sedimentos nas estações chuvosas, e um maior déficit hídrico nas estações secas.

As assinaturas dos antigos rios encontradas pelos cientistas, que riscaram a planície pantaneira mas hoje seguem outro curso (e deixaram os lóbulos abandonados, do ponto de vista técnico) também tem importância no funcionamento do bioma, segundo os cientistas.

Fonte: Functional fluvial landforms of the Pantanal: Hydrologic trends and
responses to climate changes
. Journal of South American Earth Sciences.

São áreas que voltam a receber água apenas da chuva. Ou seja, em períodos de seca fica mais difícil para a vida se estabelecer nessas aéreas. Além disso, em outro contexto, quando chove demais nas cabeceiras dos rios, o risco de arrombamentos em grande escala dos canais que não estão abandonados também é amplificado.

 E esses lóbulos ativos de megaleques, assim como os próprios interleques e o sistema principal do rio, são pontos críticos para o refúgio da vida selvagem e para os serviços ecossistêmicos do Pantanal. Ou seja, com o novo padrão climático, o grande reservatório está cada vez mais sob pressão.

Mudanças climáticas afetam o fogo

Além das variações entre chuvas e secas, existe um outro componente natural que baliza a vida no Pantanal: o fogo. Mas esse elemento também está sendo pressionado pelas mudanças climáticas, como explica o pesquisador Alan Eduardo Barros, ligado ao Instituto de Biociências da USP, que investiga a ecologia das onças-pintadas na região.

Baseado em várias pesquisas sobre o tema, Barros delineia o cenário atual. Segundo ele, assim como ocorre com a chuva, o fogo também tem uma dinâmica de ciclos temporais maiores, além da própria variação anual. “No entanto, o aumento médio da temperatura global, alinhado aos impactos de destruição ambiental na Amazônia e o desmatamento por causa da agropecuária que ocorre nas cabeceiras e nascentes dos rios que drenam para o Pantanal (a maioria delas no Cerrado), criam uma dinâmica perversa”, explica o cientista. Na prática, isso faz com que desastres como o que ocorreu em 2020 sejam iminentes.

O fogo, até alguns anos atrás, era uma ameaça de baixo risco para as onças e para a própria sobrevivência do bioma Pantanal. Mas os incêndios generalizados deflagrados em 2020 mudaram completamente o cenário. “Em 2020, identificamos a destruição pelo fogo de quase um terço do bioma. Por volta de 45% da população de onças-pintadas, a segunda maior do mundo, estimada hoje em 1.668 indivíduos, foi afetada. Aproximadamente 2.700 quilômetros quadrados de áreas prioritárias habitadas por esses grandes mamíferos queimaram”, afirma Barros. Desde que o monitoramento da espécie começou, por volta de 15 anos, o impacto do fogo sobre os grandes animais do Pantanal bateu todos os recordes em 2020. Os cientistas calcularam por cima o montante de vidas perdidas para as chamas em 17 milhões de vertebrados. Mas é um número que está subestimado. “Considerando as expectativas futuras sobre o bioma de aumento da seca e das temperaturas, e também da expansão de áreas agrícolas, as chances de ocorrências de fogo com maior intensidade também se tornam maiores”, explica Barros, deixando claro um dos grandes problemas ambientais que precisam ser enfrentados com governança ambiental nos próximos anos.

Território em disputa

A preservação da maior planície alagável do planeta, e da cultura pantaneira em geral, depende de uma decisão que precisa ser encarada por todos, segundo Solange Ikeda Castrillon, professora do Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Mato Grosso. “Estamos em disputa. O Pantanal é um território compartilhado por diferentes grupos como os ribeirinhos, as comunidades tradicionais, a população das cidades, que querem e ajudam  a manter estas águas ,e ainda parte da sociedade que utiliza estes recursos sem critérios e às vezes contam até com o aval do Estado para ampliar a degradação”, explica a pesquisadora. Ela coordena várias ações de restauração ecológica e educação ambiental na região. “Nossa experiência tem demonstrado que, ao plantar uma muda de árvore, os melhores sorrisos aparecem nos rostos de todos os grupos sociais”, afirma Castrillon.

Segundo a professora, em termos de governança, o desafio é grande, mas essencial. “Temos que convencer governos e grande parte da sociedade de como eles dependem da manutenção do sistema e da preservação das águas do território para a manutenção de sua própria existência. Existem saídas para serem propostas nos espaços de decisões, conselhos e comitês. O diálogo sobre as possibilidades de sustentabilidade não só para o Pantanal como para o planeta deve ser constante.”

Do macro para o micro, as soluções ambientais que podem se espalhar pelo Pantanal e ajudar na preservação do ecossistema contra o fogo, a seca e até as grandes inundações também são conhecidas e podem ser usadas desde que exista vontade para isso. O cardápio, como explica o biólogo da USP, Alan Eduardo Barros, é farto. As opções vão desde a manutenção de pastagens naturais, passam pela utilização de soluções técnicas contra os impactos cumulativos de hidrelétricas e portos, por exemplo, e chegam até um rol de ações coordenadas para mitigar o surgimento e o espalhamento dos focos de incêndio. “Isso envolve processos educativos e coibitivos no uso inapropriado do fogo, assim como recursos para manutenção de brigadas, considerando a utilização do fogo preventivo e dos aceiros em locais apropriados antes da estação seca”, diz Barros. Segundo ele, o monitoramento por satélite e a comunicação imediata também são essenciais.

A restauração deve partir de uma visão transversal do Pantanal, como abordam Assine e Berger. Segundo eles, existem uma série de ferramentas ecohidrológicas que podem ser usadas para melhorar os serviços ecossistêmicos do bioma. São processos que devem englobar também as áreas de cabeceiras dos rios no Cerrado e a manutenção das florestas na Amazônia. Do lado da produção, a tradicional pecuária pantaneira, além dos métodos de integração lavoura-pecuária-floresta, que por sua vez ajudam no enfrentamento das mudanças climáticas globais porque aumentam o sequestro de carbono pela vegetação, também são caminhos seguros para a proteção ambiental da região.

“A manutenção do volume hídrico dos rios é essencial”, diz Barros, da USP. “A alteração no volume afeta a navegação, a pesca e a biodiversidade em si. E a vegetação mais seca, devido ao baixo volume da água, acaba permitindo, muitas vezes, que o fogo se alastre por áreas que deveriam estar inundadas, como ocorreu em 2020.” Este é um cenário que os especialistas lutam para não se repetir mais.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Biomas do Jornal Unesp. Nesta série, o Jornal da Unesp mapeia os desafios ambientais presentes nos diferentes biomas do Brasil.

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