As religiosidades do Brasil: da Independência à pluriexistência

Se nosso país é majoritariamente cristão, é porque a colonização europeia das Américas foi um empreendimento de dominação que mirou também a esfera da crença. Mas a resistência dos grupos dominados ajudou a forjar nosso atual perfil religioso, que é criativo e bastante diverso.

A pintura “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, é a representação pictórica mais conhecida sobre o momento em que o Brasil tornou-se independente de Portugal. É uma pintura de grandes proporções (415 cm x 760 cm) encomendada em 1886 e finalizada em 1888. Durante a realização da pintura, Pedro Américo não só elaborou um minucioso estudo artístico como também pesquisou e buscou informações sobre o momento da Independência, os trajes daquela época e outros detalhes que contribuíssem para, de alguma forma, aproximar aquela produção imagética do evento real que ela representava.

Independência ou morte, pintura de Pedro Américo. 1888. Crédito: Wikimedia Commons.

A qualidade do trabalho de Pedro Américo se expressa, por exemplo,  na forma de organização dos elementos que compõem a pintura. Eles estão dispostos de tal forma que o observador facilmente reconhece o momento do “Grito do Ipiranga” como um evento épico, protagonizado por um heroico Dom Pedro I. “Independência ou Morte” abre espaço para muitas análises; muito se pode dizer sobre o que essa pintura contém e o que nos mostra. Mas ao evocar esta obra de Pedro Américo não quero tratar do que ela nos mostra. Ao contrário, minha intenção é chamar a atenção para o que o quadro não mostra, ou melhor, para aqueles que não estão presentes na pintura.

E quem são aqueles que não estão presentes na pintura? Uma breve observação mostra que não há nem índios, nem negros na cena. Quem mais de aproxima destes grupos é um carreiro, posicionado na base esquerda da pintura, cujos traços sugerem tratar-se de um caboclo. Esse caboclo está como que à margem do evento principal. Não faz parte da ação. É apenas um observador que segue sua vida caipira com seu carro de boi e seu envolvimento com a cena é passivo. E como não é parte da ação, não sabemos sequer se tem ciência do que está acontecendo.

Dadas as ausências de índios e negros, “Independência ou Morte” é não só a representação imagética mais relevante da Proclamação da Independência. A obra também revela aspectos importantes do modo como apresentamos e contamos nossa história: uma narrativa com ausências e ausentes, com invisibilidades, com silêncios, com apagamentos. E que mesmo assim, ressalte-se, apresenta-se como a História do Brasil, com “H” maiúsculo.

Hoje, critica-se a produção de uma narrativa única, unilinear, monofônica e hegemônica de nossa história, a história da sociedade brasileira. É um questionamento que busca colocar o plural em contraposição ao universal. Que apresenta o caminho da interculturalidade, para que não se caia nas armadilhas de uma identidade nacional monolítica. Que reivindica o direito de que as histórias silenciadas, invisibilizadas, apagadas ou subalternizadas sejam reconhecidas, tenham voz, se expressem.

As religiões invisibilizadas

Dentro do contexto dos 200 anos de Proclamação da Independência, um caminho bastante razoável para falarmos do perfil religioso do Brasil seria elaborar um arrazoado analítico buscando dar conta da trajetória dessa esfera do país, partindo do período do Brasil Império e avançando até alcançar o tempo presente. Mas, talvez, esse percurso linear fizesse mais sentido nas celebrações do centenário da Independência, e não do bicentenário. No contexto das comemorações do centenário, um século atrás, pululavam questões como o debate acerca de uma identidade nacional e a construção da ideia de povo brasileiro. Cem anos depois, lidamos com outros questionamentos.

A produção de uma narrativa única, unilinear, monofônica e hegemônica da nossa história é algo que também diz respeito à questão da religião no Brasil. Isto porque o processo de formação da sociedade brasileira foi e é marcado pela hegemonia de uma religião: o cristianismo de matriz europeia ocidental. Um tipo de cristianismo que se notabilizou – e que em alguns contextos ainda se notabiliza – justamente por sua pretensão hegemônica, como forma legítima e verdadeira de religião. Mas para entendermos melhor como isso se deu devemos voltar a cerca de quinhentos anos atrás, ao século 16, quando se dá o início da colonização portuguesa neste território que hoje corresponde ao Brasil.

O cristianismo  que desembarcou no Brasil cinco séculos atrás era europeu, eurocêntrico, católico e de contrarreforma (excetuando os casos pontuais e relativamente curtos da França Antártica e da colonização holandesa no Nordeste. Nesses dois casos um cristianismo protestante e reformado). Esse cristianismo era, também, parte orgânica, do processo de colonização europeia iniciado no século 16. O que significa que a colonização européia nas Américas foi um empreendimento de dominação não só na esfera econômica ou política, mas também na religiosa.

Neste sentido, a presença e os empreendimentos do cristianismo missionário europeu nas Américas (seja na sua variável católica e de contrarreforma, seja na sua variável protestante e reformada) devem ser compreendidos à luz e como parte daquilo que o sociólogo Aníbal Quijano denomina de colonialidade do poder. E se, como coloca Quijano, o expansionismo colonizador europeu, iniciado no século 16, representou a contínua ampliação de um padrão de poder (e, portanto, de dominação europeia) de vocação mundial e capitalista (com controle da força de trabalho  e do mercado mundial), que se mostrou vitorioso no estabelecimento de uma nova intersubjetividade mundial eurocentrada, não podemos subtrair desse processo o papel desempenhado pela religião europeia ocidental,  através de suas duas subdivisões: o cristianismo católico e o cristianismo protestante.

Não há a intenção aqui de diminuir a coerência evangélica e de consciência de tantos europeus que se dedicaram a evangelizar o chamado Novo Mundo. O presente texto não entra no mérito das motivações pessoais desses missionários. O objetivo é salientar que – para além das intenções dos indivíduos que a empreenderam – a chamada evangelização do Novo Mundo não pode ser pensada, posto que não pode ser compreendida, como algo separado do processo de constituição da América a partir de um capitalismo colonial/moderno eurocêntrico, tal qual propõe Aníbal Quijano. O sucesso do empreendimento religioso cristão europeu nas Américas, na sua busca por hegemonia, tem uma relação direta e orgânica com a colonialidade do poder.

 Referir-se à colonialidade é, também, apontar que a hegemonia alcançada pelo cristianismo europeu (que, tanto em sua vertente católica como protestante, mostra-se proselitista e universalizante, no sentido de se ver e se apresentar como única religião legítima, verdadeira) foi favorecida pelo seu lugar de poder. Hegemonia essa que, em muitos contextos, contribuiu para silenciar e invisibilizar – quando não, para inviabilizar – outras formas de religião que já eram praticadas no continente, ou que aqui aportaram. Notadamente as religiões de matriz indígena que aqui já existiam e as de matriz africana, transportadas por meio daqueles que foram escravizados.

A Primeira Missa, de Victor Meirelles. 1861. Crédito: Wikimedia Commons.

A igreja e o estado português, uma relação benéfica para ambos

No caso do Brasil, deve-se destacar que a relação entre religião e colonialidade do poder se deu, também, no plano institucional. Isso foi possível por meio do Padroado Régio, instituição oficializada pelo Papa Leão X em 1514, e que representou uma aliança entre a Monarquia Portuguesa e o Papado. Através do Padroado Régio, a Santa Sé delegou aos monarcas católicos portugueses a administração e a organização da Igreja Católica em seus domínios, os já conquistados e os ainda por conquistar. O Padroado Régio conferia ao Rei de Portugal a prerrogativa de construir igrejas e nomear padres e bispos em terras brasileiras, decisões essas que, depois, deveriam ser aprovadas pelo Papa.

O Padroado, ressalte-se, foi benéfico tanto para a Coroa Portuguesa, quanto para a Igreja Católica: dava à monarquia portuguesa um importante controle político das atividades da Igreja Católica no que se refere às funções do poder político. E garantia à Igreja, e, portanto, ao catolicismo, as condições para se estabelecer hegemonicamente como “A Religião” da grande colônia portuguesa nas Américas.

É importante destacar que a Independência do Brasil não representou o fim do Padroado, que se manteve no Brasil Império. A diferença foi que o que outrora era uma prerrogativa do Rei de Portugal passou a ser um privilégio do Imperador do Brasil. O fim do Padroado só se deu, de fato, com a Proclamação da República, momento em que se estabeleceu oficialmente a separação entre Igreja e Estado. O Padroado, portanto, existiu aproximadamente em quatro quintos  dos cerca de quinhentos anos que separam os dias atuais do início da colonização portuguesa, e assegurou uma enorme vantagem para o cristianismo católico no processo de gênese e formação da sociedade brasileira.

Não devemos considerar, contudo, a hegemonia do catolicismo por aqui se fundamentou apenas no Padroado; outros fatores desempenharam papéis importantes. O perfil do cristianismo como religião de salvação universal foi um deles. Essa característica torna o cristianismo aberto a priori à adesão de qualquer pessoa. A exigência é que o pagão (aquele que não é cristão) abjure de suas crenças anteriores e experimente a conversão. Logo, a busca de “salvação das almas” pagãs mediante a conversão ao cristianismo foi sempre uma força motivacional fundamental para expansão do cristianismo. E essa motivação também teve grande contribuição para impulsionar os empreendimentos missionários cristãos presentes na sociedade brasileira desde o século 16.

As referências ao Padroado e aos demais fatores enunciados acima buscam explicitar que a gênese da formação da sociedade brasileira, a partir da chegada dos colonizadores portugueses, resultou em favorecimento de tal monta ao cristianismo que resultou em nosso perfil majoritariamente cristão. No entanto, tal como colocado no início do texto, esse processo muito frequentemente engendrou (e em certos contextos ainda engendra) uma subalternização, quando não a invisibilização ou mesmo o apagamento de outras religiões que aqui estavam e que aqui chegaram. Principalmente as de matriz ameríndia e de matriz africana.

O sincretismo exibido nos altares da Umbanda é uma forma de resistência. Foto: Agência Brasil.

A originalidade do campo religioso brasileiro

É preciso não perder de vista, contudo, que as formas de resistência dos praticantes dessas religiões foram muitas ao longo dos últimos cinco séculos. O que usualmente é denominado de sincretismo religioso pode ser interpretado à luz dos esforços e lutas empreendidos pelos praticantes de religiões de matriz africana e ameríndias no sentido de mantê-las vivas, apesar de todos os obstáculos e violências enfrentados. A presença do Catimbó-Jurema e do Candomblé como parte do campo religioso brasileiro contemporâneo constituem dois exemplos das resistências e reexistências (expressão do semiólogo Walter Mignolo) das religiões de matriz ameríndia e africana ao longo da história do Brasil. E a Umbanda demonstra que a inventividade e a capacidade de agência e de (re)criação religiosa são parte de uma originalidade característica da religiosidade e do campo religioso brasileiro. As chamadas “religiosidades populares” também são parte dessas formas de agência e resistência às ações das hierocracias que buscam controlar e disciplinar as práticas religiosas. 

Ainda que preponderantemente cristão, o cenário religioso brasileiro atual é significativamente mais diverso do que os de 1822 ou mesmo 1922. As migrações europeias da primeira metade do século 20 contribuíram para uma maior diversidade no cristianismo brasileiro. A migração japonesa trouxe o budismo e o xintoismo. O grande fluxo migratório internacional vivenciado pelo Brasil na atualidade também traz novas contribuições. Como os migrantes mulçumanos trazendo o islamismo (que na verdade aqui já esteve presente através dos malês). Somando-se ao cristianismo e às religiões de matriz africana e ameríndia,  essas novas religiões e religiosidades contribuem para a grande diversidade religiosa no Brasil contemporâneo, à qual se soma também o fenômeno emergente dos sem religião (ateus, agnósticos e aqueles que não se identificam com nenhuma forma institucionalizada de religião).

O Brasil ainda se mantém, em termos numéricos, majoritariamente cristão. Não mais majoritariamente católico, mas cristão. Esse quadro se desenhou porque o surgimento da Congregação Cristã no Brasil, em 1910, e o aparecimento da Assembleia de Deus, em 1911, deram início ao fenômeno das Igrejas Evangélicas Pentecostais no Brasil. Um fenômeno que foi e continua (ao que parece) crescendo, se ampliando e multiplicando-se através de diferentes ondas, associadas a diferentes Igrejas Evangélicas. É o Brasil Evangélico que somado ao Brasil Católico forma o Brasil cristão.

Desde o dia 7 de setembro de 1822 até os dias de hoje muita coisa mudou. Mudaram os desafios. Um dos desafios do tempo presente, como sinalizado no início do texto,  é o de viver em um mundo onde as diversidades e diferenças que existem entre nós vêm redimensionando e ressignificando nossas formas de convivência e os modos de nos relacionarmos uns com os outros.

Conviver com as diferenças entre nós, e com a multiplicidade de diferenças que nos são apresentadas frequentemente, é um desafio tanto individual quanto coletivo de nosso presente. Essas diferenças e multiplicidades também dizem respeito às religiosidades e ao campo religioso. O fato de que o Brasil seja, em termos numéricos, majoritariamente cristão, não subtrai a pluralidade e a diversidade religiosa que nos caracteriza. Se de fato desejamos viver em uma sociedade diversa, tolerante, na qual as diferenças são vistas como riqueza (e essa é uma posição política), o desafio do tempo presente deslocou-se da independência para a multiexistência.

Antônio Braga é doutor em Antropologia Social pela UFRGS e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, Câmpus de Marília.

Os artigos de opinião assinados não refletem necessariamente o ponto de vista da instituição.

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Brasil, que país é esse? do Jornal Unesp. Em comemoração ao bicentenário da Independência do Brasil, esta série traz artigos que analisam os caminhos que moldaram a sociedade brasileira em sua singularidade e discutem os desafios que enfrentamos atualmente.

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