Dentre os complexos desafios suscitados pelo surgimento abrupto da pandemia de covid-19 estava o de fazer com que, por todo o planeta, o público se sentisse seguro para recorrer às novas vacinas contra o SarsCov-2. Essa aceitação é essencial para que se possa alcançar imunidade em nível global, e assim virar esta página em definitivo. No entanto, diversos fatores parecem influenciar a taxa de aceitação nos diferentes países. E um destes fatores é a própria atitude dos profissionais de saúde diante das vacinas, que pode variar bastante. É o que mostra um estudo que analisou as opiniões de quase três mil profissionais de saúde de quatro continentes, integrado por pesquisadores da Unesp.
As novas vacinas contra a covid-19 foram desenvolvidas em uma velocidade sem precedentes na história da medicina moderna. Além disso, muitas se basearam em tecnologias de ponta, usadas até então apenas de forma experimental. Estas circunstâncias contribuíram para que certos grupos em meio à população expressassem inseguranças, reservas ou mesmo aversão à ideia de se vacinar. Poucos estudos, porém, conseguiram investigar qual pode ter sido a escala destas reservas entre os próprios profissionais de saúde.
Os pesquisadores entrevistaram profissionais do Brasil, Egito, Índia, Quênia, Nigéria, Paquistão, Sudão, Jordânia, Arábia Saudita, Malásia, Qatar e Turquia, em um total de 2963 respondentes. Embora nenhum dos países esteja entre os 30 mais desenvolvidos, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), as suas populações somam mais de 2,3 bilhões de pessoas, aproximadamente 30% da população mundial. Os resultados da pesquisa foram publicados no início de fevereiro na revista científica Frontiers in Public Health
Os resultados consolidados mostraram que 69% dos respondentes declararam ter aceito receber alguma vacina. No entanto, a comparação entre países revelou variações consideráveis no desejo de se imunizar, indo de apenas 40% (Egito) até 98% (Malásia). No caso do Brasil, chamou atenção dos pesquisadores a alta aceitação à vacina (97%) em contraste com a baixa avaliação, feita pelos respondentes, quanto à gestão da pandemia por parte das autoridades sanitárias (6%) e à eficiência nas campanhas de vacinação (10%). Ambos os resultados são os mais baixos entre as 12 nações incluídas no estudo.
Para Renata Marques Marinho, docente do departamento de materiais odontológicos e próteses do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de São José dos Campos, que foi a coordenadora da pesquisa no Brasil, o levantamento representa um retrato do momento da pandemia que o país enfrentava na ocasião da aplicação dos questionários, entre fevereiro e meados de abril de 2021.
Naquele período, o país vivia uma explosão no número de casos e de mortes por Covid-19. Em alguns dias, chegou-se a superar a trágica marca de três mil óbitos diários, o pior momento registrado no país durante a pandemia. Ao mesmo tempo, menos de 10% da população brasileira estava vacinada com a primeira dose, e o governo federal recebia críticas pela demora na imunização.
“Os resultados dos questionários mostram uma baixa confiança nas autoridades, mas é preciso perguntar que tipo de desconfiança é essa”, diz a docente do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Unesp, no câmpus de São José dos Campos. “Estaria relacionada à uma percepção de que as autoridades não estavam se esforçando o bastante, porque, por exemplo, determinada vacina já poderia estar disponível no país mas ainda não estava? Ou porque o próprio governo fazia propaganda antivacina? Acho que o resultado inclui tudo isso”, analisa.
Especialista em próteses dentárias e materiais, Renata teve que suspender boa parte de suas atividades de pesquisa durante a pandemia por conta das restrições sanitárias estabelecidas com o objetivo de frear a disseminação do coronavírus. Realizar a pesquisa foi, portanto, uma forma de colaborar no entendimento da pandemia e seguir com atividades de pesquisa. O convite para participar deste projeto global surgiu em virtude principalmente de contatos acadêmicos estabelecidos com pesquisadores da região do Oriente Médio. Além dela, assina o artigo pela Unesp o estudante de doutorado Amir Mohiddin Demachkia, natural da Síria e formado na Arábia Saudita, que intermediou a relação com os demais pesquisadores.
Em países com renda mais alta, confiança nas vacinas foi maior
No levantamento, a intenção de se vacinar entre os profissionais de saúde da Arábia Saudita alcançou 64%, o segundo mais baixo entre os países ricos. Com um regime político definido como uma monarquia absolutista, o país registrou a maior confiança nas autoridades entre todas as nações da pesquisa, tanto na gestão da pandemia de Covid-19 quanto na organização de campanhas de vacinação: 92% em ambos os quesitos. Ao mesmo tempo, Demachkia explica que o fenômeno das fake news não foi uma questão relevante no combate à pandemia. “Lá essas informações são mais controladas. Se alguém dá uma informação falsa sobre o assunto, vai ter que responder sobre isso e se justificar. Prevalece a informação oficial do governo, que foi condizente com os parâmetros cientificos”, afirma o estudante, que está no 3o ano de seu doutorado.
Ainda que, segundo Demachkia, os resultados do estudo em relação à Arábia Saudita reflitam o pensamento da sociedade saudita como um todo e o desejo em se vacinar, o cenário brasileiro surpreendeu o doutorando. “A grande maioria das pessoas aqui aceitou se vacinar. No Brasil parece que a vacina faz parte da cultura do país, e isso é uma diferença em relação a outros paises”, afirma.
De fato, a “cultura da vacinação” destacada pelo estudante sírio parece refletir nos dados do estudo. Apesar de os respondentes brasileiros apontarem desconfiança em relação às autoridades, o levantamento mostrou que 97% dos profissionais de saúde no país queriam se vacinar, a segunda maior porcentagem atrás apenas da Malásia (98%), o que na opinião de Renata também tem relação com a tradição do país em campanhas de imunização.
“O artigo menciona o fato de o Brasil, naquela ocasião, estar sofrendo com a perda de muitas vidas, mas existe um outro aspecto que é o fato de que as pessoas queriam a vacina. Em nosso país, porém, este processo estava avançando lentamente”, destaca a professora, para quem o alto grau de aceitação também estaria relacionado ao fato de esses profissionais entenderem a relação entre o desenvolvimento do país e sua atividade científica. Sobre a aplicação do questionário, a professora de São José dos Campos aponta que a maioria foi composta por dentistas. “Embora o público alvo da pesquisa fosse composto por profissionais da área da saúde em geral, a maior parte dos respondentes no Brasil foram dentistas, que é o contexto em que estamos inseridos”.
Além de um olhar específico para cada nação, os pesquisadores também fizeram um recorte por renda, dividindo os países em dois grupos, um de renda baixa e média-baixa e outro grupo de renda média e média-alta. O Brasil foi enquadrado no segundo grupo.
Neste recorte por renda, os pesquisadores encontraram um menor grau de aceitação à vacina entre os países mais pobres (62%) em relação aos mais ricos (75%), com destaque negativo para os países africanos, em que as médias variaram entre 40% (Egito) e 57% (Sudão). O Quênia e a Nigéria registraram 49% e 50% de seus profissionais da saúde dispostos a se vacinar, respectivamente. Nestes casos, além da baixa aceitação vacinal, o levantamento também aponta uma baixa confiança nas autoridades de saúde, com 26% dos profissionais do Sudão avaliando a gestão da pandemia de forma positiva e 27% dos profissionais de saúde do Egito avaliando positivamente a capacidade das suas autoridades em organizarem campanhas de vacinação.
Outro aspecto que chamou a atenção dos pesquisadores foi a forte relação entre o interesse do indivíduo em obter informações sobre o desenvolvimento dos imunizantes e sua propensão a aceitar a vacina. Em todos os países contemplados no estudo, houve um maior número de profissionais dispostos a se vacinar entre aqueles que se informaram. Estes dados, argumentam os autores do artigo, revelam a necessidade de que os governantes adotem diferentes estratégias de comunicação para informar ao público sobre o andamento das pesquisas em vacinas, sua segurança e eficácia. Em especial, nos países pobres e africanos, onde os níveis de aceitação foram mais baixos.
Menor disponibilidade de vacinas afeta também aceitação por parte da população
Para a professora da Unesp, os números chamam a atenção por envolver profissionais de saúde, que supostamente têm uma formação superior ou ao menos técnica, e lidam com as informações sobre a vacina com maior frequência do que a população em geral.
“Fica uma grande interrogação quanto ao porquê dessa resistência, que tipo de julgamento que faziam sobre a vacina, ou qual desconfiança nutriam, exatamente”, questiona. Na opinião de Renata, a urgência gerada pelo acúmulo de casos e mortes, somada à veiculação de notícias falsas, atrapalharam um debate que visava informar o público sobre tópicos como, por exemplo, a obrigatoriedade da vacinação ou a sua administração ao público infantil. “Essas são nuances que, por conta da situação dramática, não foram discutidas apropriadamente. E é preciso que as pessoas façam esses debates.”
Ainda assim, apenas investir em informar a população não é o suficiente. De acordo com os autores do artigo, é essencial que o processo de vacinação em massa alcance os países de baixa renda. Para eles, ainda que a hesitação vacinal – como é chamado o atraso na aceitação ou recusa de vacinação mesmo com vacinas disponíveis –, seja um problema comum a todas as nações, os pesquisadores entendem que o aumento na disponibilidade de vacinas colabora também para a sua aceitação. E em nenhum dos países incluídos no levantamento essa situação é tão crítica quanto nos países africanos.
Os quatro países que registraram os piores índices de aceitação à vacina são também os últimos colocados na imunização de sua população, entre os 12 países contemplados no artigo, segundo o site Our World in Data. Enquanto o Egito registra 33% de sua população vacinada com duas doses, o Quênia tem apenas 15% e Sudão e Nigéria, 8,1% e 7,5%, respectivamente. A média mundial é de 59% da população com a imunização completa.
Foto acima: posto de vacinação contra a covid-19 na cidade de Bhopal, na Índia. Crédito: Suyash Dwedi/Wikimedica Commons.