No cotidiano, a arte têxtil está mais presente do que parece: nas colchas herdadas da família, no trabalho das bordadeiras do bairro, nas roupas artesanais das feiras, nas tapeçarias que revestem paredes e até em instalações que recobrem telas com fios coloridos. Em termos amplos, a arte têxtil pode ser entendida como o conjunto de práticas artísticas que têm o fio, o tecido, a costura, o bordado, o tricô e outras técnicas de manipulação de fibras como suporte e linguagem, deslocando materiais tradicionalmente associados ao “fazer doméstico” para o campo da criação estética e crítica. O último episódio do Prato do Dia de 2025 aborda as características da arte têxtil e sua importância para a preservação de técnicas e tradições ancestrais.
Para conversar sobre o tema, o podcast recebeu a professora Joedy Luciana Barros Marins Bamonte, artista visual e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design da Unesp, câmpus de Bauru. Especialista em processos, procedimentos e métodos criativos em artes visuais e design, com ênfase em arte têxtil contemporânea e no desenho enquanto linguagem, a docente lidera o grAVA, grupo de pesquisa voltado para Poéticas Artísticas e História, Teoria e Crítica das Artes, que investiga a produção plástica e teórica em artes visuais e audiovisuais como expressões presentes na contemporaneidade.
Visto muitas vezes como uma expressão artística inferior, a arte têxtil sempre existiu, embora por muito tempo tenha sido associada a tarefas domésticas ou aplicações práticas. Segundo a pesquisadora, essa separação histórica entre artes “maiores” e “menores” ajudou a sustentar uma hierarquia que desvalorizou o têxtil como linguagem artística. “Tudo aquilo que era produzido com alguma utilidade prática no dia a dia, sem uma preocupação exclusiva com operações mentais mais abstratas, era considerado uma arte menor”, explica.
Essa desvalorização também tem raízes na construção social dos papéis de gênero. Embora Bamonte não desenvolva uma abordagem feminista direta, ela destaca que muitas técnicas têxteis se tornaram parte da formação esperada de mulheres de determinadas classes sociais. Havia, segundo ela, uma cartela de atividades que tinham que ser cumpridas para poder se casar, e o bordado, que em certos contextos funcionava quase como demonstração de status, era um desses requisitos. Ao mesmo tempo, a professora lembra que civilizações de várias épocas produziram tapeçarias e bordados de altíssimo nível técnico feitos tanto por mulheres quanto por homens, evidenciando que o domínio sobre o fio não pertence a um único gênero.
O século 20, no entanto, marca um ponto de inflexão importante. Com o surgimento do design como profissão e o impacto da Revolução Industrial, o têxtil passa a ocupar novos lugares dentro das artes visuais. A docente da Unesp explica que a formação do designer redefiniu fronteiras entre forma e função. Uma contribuição importante para a época foi a Escola Bauhaus, fundada na Alemanha em 1919, que revolucionou o ramo das artes plásticas, da arquitetura e do design.
Para a docente, a arte têxtil também desempenha um papel fundamental na preservação de memórias e saberes, mas que, aos poucos, está sendo abandonado. “O têxtil tradicional realmente tende a desaparecer. Sem os grupos de pesquisadores se debruçando sobre essa área, a técnica deixa de ser preservada”, diz. Esse afastamento ameaça romper vínculos culturais importantes, já que grande parte das práticas têxteis deriva de experiências familiares e comunitárias, acumuladas ao longo de décadas ou séculos.
Neste sentido, o Brasil poderia adotar políticas de proteção semelhantes às de outros países, onde técnicas são reconhecidas como patrimônio cultural. A docente menciona o caso do bordado de Guimarães, em Portugal, que só pode receber esse nome se seguir combinações de cores e pontos específicos. No Brasil, onde práticas como rendas, labirintos e bordados regionais já enfrentam a falta de continuidade, o tombamento poderia ser uma forma de valorizar esses saberes e incentivar novas gerações a preservá-los. Para a professora, trata-se de reconhecer o têxtil como “um saber ancestral”, que carrega identidade e pertencimento.
Bamonte ressalta que, para além do seu valor cultural, a arte têxtil contemporânea precisa estar atenta às questões ambientais. A docente pontua que pensar na sustentabilidade no campo das artes não se limita ao uso de materiais mais responsáveis, mas envolve também o potencial da arte como ferramenta de transformação social, provocando reflexões importantes sobre consumo, descarte e sustentabilidade. “Quando percebemos as nuances e delicadezas da arte, passamos também a trabalhar a empatia em relação ao mundo. E, se entendemos que a arte pode atuar dessa maneira, então ela pode ser utilizada como um instrumento de sensibilização para questões como, por exemplo, a reciclagem”, diz.
Ouça a entrevista completa com a professora Joedy Luciana Barros Marins Bamonte no podcast Prato do Dia, disponível nas principais plataformas de áudio e no player abaixo.
