Face mais conhecida da oposição venezuelana, Maria Corina Machado recebe o Nobel da Paz

Comitê do Nobel premiou ativista e mandou recado sobre preocupação com crescimento de regimes autoritários. Corina, porém, é uma figura controversa, que apoiou golpe de estado no passado.

A venezuelana María Corina Machado, uma das principais lideranças políticas da oposição ao governo do presidente venezuelano Nicolás Maduro, recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 2025 por “seu trabalho incansável na promoção de direitos democráticos para o povo da Venezuela e seus esforços para alcançar uma transição justa de uma ditadura para uma democracia”, nas palavras do Comitê Norueguês do Nobel, órgão responsável pela escolha.

Durante o anúncio oficial da premiação, os representantes do Comitê expressaram os critérios por trás da escolha do nome da venezuelana. “A democracia é uma pré-condição para uma paz duradoura. No entanto, vivemos em um mundo onde ela está em retrocesso, onde cada vez mais regimes autoritários desafiam as normas e recorrem à violência. O domínio ferrenho do regime venezuelano sobre o poder e sua repressão à população não são únicos no mundo. Observamos as mesmas tendências globalmente: Estado de Direito violado por aqueles que o controlam, mídia livre silenciada, críticos presos e sociedades arrastadas para o autoritarismo e a militarização”, declararam.

Mas houve espaço para críticas diretas ao regime de Maduro, herdeiro político de Hugo Chávez e do chavismo: “A maioria dos venezuelanos vive na pobreza extrema, mesmo com os poucos no topo enriquecendo. A máquina violenta do Estado é direcionada contra os próprios cidadãos. Quase 8 milhões de pessoas deixaram o país. A oposição tem sido sistematicamente reprimida por meio de fraude eleitoral, processos judiciais e prisões”, disse o representante do Comitê.  

Machado disse em um telefonema com o diretor do Comitê, Kristian Berg Harpviken, que está sem palavras com a premiação, e que não merece o prêmio, por ser só mais uma pessoa na luta.

A escolha de Machado para um prêmio que é associado aos esforços pela superação de conflitos foi recebida com alguma surpresa e até questionamentos, devido a sua história pessoal. Em 2002, ela apoiou uma tentativa de golpe de Estado contra Hugo Chávez, que, a época estava em seu primeiro mandato como presidente democraticamente eleito da Venezuela. Chávez passou 47 horas afastado do poder, e os embates entre civis, policiais e militares nas ruas deixaram 19 mortos e mais de 150 feridos.

Machado, historicamente, se demonstra favorável à solução armada contra o chavismo, e apoia intervenções externas na Venezuela. Em 2019, ela argumentou que apenas “uma ameaça real, crível, severa e iminente” do uso de força internacional seria suficiente para tirar Maduro do poder. A declaração ocorreu durante uma entrevista ao canal do YouTube Voz de América, um serviço de radiodifusão financiado pelo governo americano cujo público alvo é a população de países que não têm imprensa livre.

Mais recentemente, ela tentou lançar-se como candidata presidencial às eleições de 2024, mas foi impedida pela Controladoria-Geral do país. Machado apoiou a campanha de seu aliado Edmundo González Urrutia no pleito de julho, e foi uma das cabeças por trás de um esquema minucioso de verificação das urnas para garantir a idoneidade da votação. O grupo conseguiu acesso aos resultados de 83,5% das seções eleitorais, que indicaram a vitória de Urrutia com 67% das cédulas.

Na época, um grupo diversificado de observadores internacionais, que incluia representantes das Nações Unidas e da ONG Carter Center, conduziu acareações independentes e chegaram à mesma conclusão. Maduro, porém, decretou a própria vitória apenas quatro horas após o fim do pleito. Seus supostos 51,9% dos votos foram apurados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), um órgão aparelhado. Perseguido, Urrutia se exilou na Espanha; Machado, por sua vez, passou a viver na clandestinidade.

A ascensão de María Corina como símbolo da democracia na Venezuela é só a faceta mais recente de uma carreira de mais de duas décadas na política local, diz Carolina Pedroso, pesquisadora do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI-UNESP), doutora em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, ofertado conjuntamente pela PUC-SP, Unicamp e Unesp, e professora de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Marína Corina representa o que há de pior na oposição venezuelana. Isso não significa que o governo venezuelano não viole direitos humanos, que não seja a parte principal da erosão da democracia no país. Mas não dá para ter uma visão binária, em que quem está do outro lado necessariamente é bom”, analisa ela.

Para a pesquisadora, um nome mais adequado para valorizar a luta por democracia na Venezuela seria o próprio Edmundo González, que teve uma postura bastante ponderada em sua campanha. “A escolha de Corina é no mínimo questionável”, diz.

Para Pedroso, a popularidade de María Corina Machado é resultante de duas movimentações. Por um lado, a venezuelana dedicou-se a uma espécie de rebranding para gerar influência fora de sua base eleitoral original, muito centrada no empresariado. Ao adotar roupas simples e apelar ao catolicismo, pode aproximar-se de camadas mais pobres. Por outro lado, a violência e opressão crescentes do chavismo aumentaram a recepção por uma opositora de discurso firme. “Ela é muito bem-vista junto à população, vista como uma pessoa aguerrida, e combativa. É compreensível, diante da piora no cenário político, econômico e social do país”, diz a pesquisadora.

Em seu doutorado, Pedroso foi à Venezuela, à Colômbia e aos EUA entrevistar opositores de Maduro, e conversou com personagens influentes dentre os milhares de refugiados venezuelanos abrigados na região da Baía de Tampa, na Flórida. Para a pesquisadora, “chama muita atenção que a indicação da Maria Corina tenha sido feita pelo Marco Rubio, que é o atual Chefe do Depto. de Estado dos EUA, e também por outros congressistas norte-americanos que construíram a sua carreira política junto à comunidade latina conservadora na Flórida.” Trata-se de uma posição delicada no presente considerando a fixação de Trump tanto pelo Nobel da Paz como pela Venezuela.

Desde o início de setembro, militares americanos destruíram no mínimo quatro pequenos barcos em águas venezuelanas, com a prerrogativa de que estavam sendo usados por traficantes para levar drogas ao território americano. 21 tripulantes morreram, ao todo. Os disparos ocorreram em águas internacionais e não há evidências conclusivas de que as embarcações fossem usadas para fins criminosos ou afiliadas ao cartel Tren de Aragua, considerado organização terrorista pelo governo dos EUA.

Ao longo das últimas semanas, Trump declarou se considerar merecedor do Prêmio Nobel da Paz em diversas ocasiões — incluindo seu discurso errático na Assembleia Geral da ONU, em setembro. Ele considera que sua atuação foi decisiva na mediação de sete conflitos armados mundo afora, inclusive o de Gaza. “O presidente Trump continuará fazendo acordos de paz, acabando com guerras e salvando vidas”, escreveu na rede social X (ex-Twitter) Steven Cheung, diretor de comunicação da Casa Branca, sobre o Nobel. “Ele tem o coração de um humanitário, e nunca haverá ninguém como ele, capaz de mover montanhas com a força de sua vontade.”

Apesar da atmosfera de frustração na Casa Branca — Cheung alfinetou o Nobel escrevendo que os noruegueses priorizaram política, e não a paz — a laureada aproveitou a oportunidade para reforçar sua amizade com Trump no X: “Dedico o prêmio ao sofrimento do povo venezuelano e ao presidente Trump por seu apoio decisivo à nossa causa”. O americano telefonou para parabenizá-la hoje (10) mais cedo.

Picuinhas à parte, o próprio Trump se beneficia com a concessão das láureas de uma aliada e representante bem-quista da direita populista no cenário internacional: “Ele não ganhou, mas levou”, avalia Pedrosa. Primeiro porque a indicação foi feita por membros muito atuantes do governo dele, como o próprio Marco Rubio, e também porque coincide com o movimento de agressão militar contra a Venezuela. Ele pode estar com o ego ferido, mas acho que seu projeto político saiu fortalecido com essa premiação.”

Crédito da ilustração:  Ill. Niklas Elmehed © Nobel Prize Outreach

Séries Jornal da Unesp

Este artigo faz parte da série Nobel do Jornal Unesp. Conheça a trajetória científica e as pesquisas dos laureados com o prêmio Nobel nas categorias fisiologia ou medicina, física, química, economia, literatura e da paz a partir do ano de 2022.

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