O primeiro turno das eleições presidenciais na Bolívia, realizadas no último domingo, 17 de agosto, teve um caráter histórico ao levar dois candidatos de direita ao segundo turno e interromper duas décadas de governo contínuo da esquerda no país. O primeiro lugar, com 32% dos votos, ficou o senador Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC), registrando um desempenho surpreendente, já que pesquisas anteriores indicavam a liderança de Doria Medina. O segundo mais votado foi o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, da coalizão Alianza Libre, com 26% dos votos. O presidente do país será decidido no segundo turno a ser disputado entre os dois em 19 de outubro.
Embora de trajetórias distintas, ambos os candidatos defendem propostas de caráter liberal na economia. Paz propõe descentralizar os recursos públicos com um modelo econômico no qual o governo federal administre apenas metade de todos os fundos públicos e a outra metade fique com os governos regionais. Quiroga se inclina para ideias mais conservadoras, apesar de apresentar algumas posições semelhantes. Ele promete cortar os gastos públicos de forma mais radical, reformar o Judiciário e buscar apoio do Fundo Monetário Internacional. Também defende maior abertura da economia ao setor privado, a privatização de estatais deficitárias e o fortalecimento das relações com os Estados Unidos e a China.
A derrota do partido Movimiento al Socialismo (MAS), que está no poder desde 2006, com exceção de um breve interregno, deveu-se, entre outros fatores, a uma ruptura entre o presidente Luis Arce e o ex-presidente Evo Morales, que foi impedido de concorrer e enfrenta mandados de prisão. Morales pediu a seus apoiadores que anulassem o voto e desqualificou as eleições, afirmando que o voto nulo seria a principal opção, e que isso seria uma demonstração de que a eleição não possui legitimidade. Além da crise política interna, o governo de Arce enfrenta uma situação econômica desastrosa, tão severa que o atual mandatário sequer se lançou candidato a reeleição, embora pudesse.
Carolina Silva Pedroso, pesquisadora do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp, pós-graduada pelo programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Thiago Dantas, faz um panorama das eleições na Bolívia.
Ela diz que a ausência da esquerda do segundo turno das eleições já havia sido prevista pelas pesquisas. Isso deveu-se às duas variáveis já citadas, uma econômica e outra política. “A Bolívia vem sofrendo com uma crise intensa, marcada sobretudo pela inflação, pela escassez de dólar e pela escassez de combustíveis. Isso trouxe dificuldades adicionais para um país que já é, do ponto de vista do Produto Interno Bruto per capita, o mais pobre da América do Sul”, diz.
A orientação dada por Evo Morales aos seus seguidores para anularem seu voto resultou em mais de um milhão e meio de votos nulos, o equivalente a cerca de 20% do total de sufrágios. Mas a grande surpresa que emergiu da abertura das urnas foi a presença de Rodrigo Paz no segundo turno, e em primeiro lugar. “Quem já estava mais ou menos garantido na disputa do segundo turno era o Jorge Quiroga, que já foi presidente da Bolívia. Ele tem chances para disputar o cargo nesse segundo momento, porém chegou em segundo lugar”, analisa a docente.
E os desentendimentos entre Luis Arce, que foi ministro da economia de Evo entre 2006 e 2019, e se tornou presidente em 2020, e Evo Morales, atingiram máxima intensidade nos anos mais recentes. “Não foram trocadas apenas farpas entre esses líderes, mas acusações muito sérias. Evo Morales se disse perseguido político pelo governo Luiz Arce, devido a algumas acusações no âmbito judicial relativas ao período em que ele atuou como presidente. “A Bolívia vem vivendo um clima político muito tenso nos últimos anos”, diz, lembrando que, de 2019 para cá, o povo assistiu ao Golpe de 2019, que removeu Evo Morales do poder, o breve interregno de Jeanine Áñez e a difícil retomada do processo eleitoral após um golpe, e a turbulenta gestão de Luiz Arce, que incluiu uma mal explicada tentativa de golpe em 2024.
Para a pesquisadora, a inevitável eleição de um governo de direita na Bolívia deve intensificar um processo, já em curso, de fragmentação política na América do Sul. Esse quadro dificulta que os países da região consigam estabelecer uma articulação conjunta diante dos desafios globais que estão colocados para o mundo inteiro, mas que atingem a América Latina de forma específica.
“Estamos falando, por exemplo, de ações unilaterais que têm vindo dos Estados Unidos sobre o governo Trump, somados aos desafios particulares que esses países enfrentam em termos econômicos, sociais e políticos. Já há algum tempo os países sul-americanos não têm conseguido articular respostas coletivas para lidar, por exemplo, com a pandemia. Ainda é incerto o quanto qualquer um dos dois candidatos à presidência da Bolívia conseguiria se inserir regionalmente, caso vença”, diz Pedroso.
É possível que Rodrigo Paz, por ter apresentado um discurso mais moderado, se mostre mais aberto ao diálogo. Já as tendências de Jorge Quiroga para a política internacional não estão claras. “Embora ideologicamente ele esteja muito mais próximo da direita mais radical, mais conservadora, Quiroga tem dito que vai buscar aproximação com diferentes países para fortalecer a economia boliviana. Não está claro se ele vai promover, por exemplo, um alinhamento político ideológico com o governo Trump, que já tem no Javier Milei, na Argentina, um ponto de apoio para as suas políticas”, diz .
Quanto aos efeitos desta guinada sobre a relação bilateral com o Brasil, Carolina destaca a grande importância que o intercâmbio entre os dois países possui para a economia brasileira.
“O Brasil e a Bolívia têm muitos anos de cooperação bilateral, especialmente no fornecimento de gás. O gás natural boliviano é essencial para a manutenção e para a capacidade produtiva de todo o parque industrial brasileiro, principalmente do Sudeste”, diz a docente.
Isso reforça a importância, para o Brasil, em preservar boas relações com o vizinho. Em especial, nesse momento em que a nossa economia está sofrendo um ataque direto dos EUA por meio do tarifaço. “Certamente a nossa diplomacia está atenta aos desdobramentos políticos dos resultados do primeiro turno e está se articulando para que, independentemente dos resultados, os interesses brasileiros consigam ser preservados diante da mudança política que está por vir na Bolívia”, diz Pedroso.
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Imagem acima: Deposit Photos