Uma artista completa: Cida Moreira

Ao longo de quase cinco décadas de carreira, ela conseguiu se destacar como cantora, intérprete, atriz e instrumentista, e construiu uma obra que conjuga música, poesia e dramaturgia

Com quase cinco décadas de trajetória, a cantora, pianista e atriz Cida Moreira destaca-se pelas diferentes vertentes que escolheu para explorar sua arte, combinando música, dramaturgia e poesia.

Maria Aparecida Guimarães Campiolo nasceu em 12 de novembro de 1951, na cidade de São Paulo. Ainda bem jovem se mudou para Paraguaçu Paulista, interior do Estado, e aos cinco anos iniciou seus estudos musicais pelo piano. Logo começou  a se apresentar cantando em programas de rádio no interior, onde viveu até a adolescência.

“Na minha família não havia músicos. Mas a minha mãe gostava muito de música. De alguma forma, ela conseguiu perceber a minha sensibilidade musical, e aí comecei a estudar piano bem novinha”. lembra. No final dos anos 1950, era de bom tom que as meninas estudassem piano, e as primas de Cida também se dedicavam ao instrumento. Só ela, porém, se encantou pela arte. “Meu primeiro professor particular, João Galhardo, me fez entender o valor da música. Aprendi a amar a música por meio dele e da minha mãe”, conta. Aos sete anos, foi estudar no conservatório, e aos 19 anos se formou em música.

Posteriormente, Cida Moreira retornou ao interior de São Paulo, para a cidade de Assis, onde começou a cursar Psicologia, nos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, que em seguida vieram a compor a Unesp. Estudou lá entre 1972 e 1974, e veio finalizar o curso na PUC em São Paulo.

“Esse período em Assis foi muito importante para a minha formação cultural e como mulher. Era uma excelente universidade, tenho as melhores lembranças possíveis da Unesp, apesar da truculência ditatorial daquele momento, e que afetou inclusive os professores. Ali comecei a ter as minhas primeiras experiências dramatúrgicas. Havia um núcleo cultural muito bacana que envolvia música, teatro, poesia, cinema e artes de forma geral. Havia debates, shows e encontros culturais muito significativos “, diz.

Uma cantora formada em Musicais

A carreira como atriz se iniciou na capital paulista, quando integrou o elenco de “A Farsa da Noiva Bombardeada”, de Alcides Nogueira, com direção de Marcio Aurélio, em 1977. Em 1978, foi convidada por Luiz Roberto Galízia, Cacá Rosset e Maria Alice Vergueiro a integrar o recém-fundado Teatro do Ornitorrinco. Entre 1978 e 1982 realizou diversas montagens com o grupo, com destaque para “Teatro do Ornitorrinco Canta Brecht e Weill”, espetáculo com o qual percorreram o país por dois anos com grande sucesso.

Concomitantemente, participou como atriz da montagem original da “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, no Rio de Janeiro, com direção de Luiz Antônio Martinez Corrêa, e da remontagem de “Os Saltimbancos” com direção de Antônio Pedro. Nesta fase tornou-se especialista em canções teatrais, característica que moldou definitivamente sua personalidade como cantora.

Lira Paulistana

No ano de 1980, começa sua carreira como cantora profissional com o show “Summertime”, dirigido por José Possi Neto, que resultou na gravação ao vivo do álbum homônimo no Teatro Lira Paulistana. Lançado como disco independente, Summertime foi parte de um período de grande efervescência musical em São Paulo, quando muitos talentos surgiram e se firmaram no cenário cultural. No ano seguinte, participou, como atriz convidada, do espetáculo “Às Margens Plácidas”, com o grupo Pod Minoga, e em 1982 atuou e fez a direção musical do espetáculo “Mahagonny Songspiel”, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, montada naquele ano pelo Teatro do Ornitorrinco. Em 1985, fez uma turnê pela Alemanha acompanhada de Arrigo Barnabé.

“ O Lira Paulistana era um teatrinho que o Wilson Souto inventou de alugar. Os músicos e artistas começaram a ir para lá porque a gente não pagava aluguel e rachava bilheteria. Fizemos isso durante anos. Foi uma maravilha, porque foram também anos de muita criatividade, de muita alegria e de muito sucesso. A gente começou a sair de São Paulo, a coisa começou a ir para um outro lugar. A gente aprendeu a bancar nossos trabalhos. Diante do comércio, da gravadora, que era uma outra situação. Essa é uma geração que admiro profundamente. Porque a gente também fez por onde, a gente trabalhou muito, muito e muito “, relata.

Durante a década de 80 lançou outros três álbuns e participou como atriz de filmes como “Onda Nova” e “O Olho Mágico do Amor”. Em 1989, lançou Cida Moreira interpreta Brecht, referência brasileira da obra do poeta alemão. Com Cláudio Botelho, fez uma turnê do show “Porgy and Bess”, de George Gershwin, e em 1993 lançou o icônico Cida Canta Chico, no qual interpretava canções de Chico Buarque.

Em 1995 sai em turnê pelo Brasil com o espetáculo “Elogio”, baseado no livro “Elogio da Sombra” do escritor argentino Jorge Luis Borges, no qual a atriz Denise Stoklos também atuou, e cuja direção assinou.

“O Cida Moreira Interpreta Brecht surgiu das coisas no Brecht com que já trabalhava desde Assis. Continuei trabalhando a vida inteira, e até hoje trabalho. É um disco icônico. Foi muito difícil para termos os direitos de gravação liberados, o Brecht não era de domínio público. Mas é um trabalho do qual eu me orgulho muito. Eu sigo como uma artista brechtiana, tanto no teatro quanto na música. Acho que esse meu espírito começou lá em Assis e só veio se fortalecendo ao longo dos anos”, analisa.

“E Cida canta Chico é o meu outro grande ouro na vida. Ele surgiu pelo fato do Ornitorrinco ter sido convidado para fazer a Ópera do Malandro no Rio de Janeiro. A gente ofereceu ao Chico, na época, as músicas do Brecht, que eram da Ópera dos Três Vinténs, porque ele estava fazendo a Ópera do Malandro. Ele foi nos assistir, e decidiu então que iria fazer outras canções. E nós todos fomos convidados”, diz.

O grupo foi para o Rio e interpretou a Ópera do Malandro durante um ano e meio. “Por essa convivência, inclusive com o Chico, eu comecei a cantar cada vez mais as músicas dele e decidi gravar. Confesso que, se pudesse ter dedicado a minha vida inteira apenas ao Brecht e ao Chico, seria a artista mais realizada do planeta. Não desconsiderando ninguém, mas é que a obra desses dois é tão vasta e tão valiosa. O Chico para o país, e o Brecht para a humanidade”, diz.

Após longa turnê na Europa em 1997, lançou Na Trilha do Cinema em 1998. Em 2001 participou da novela “Estrela Guia” na TV Globo, e gravou em Barcelos (AM) o filme “Eclipse”, ao lado de Matheus Nachtergaele e Betty Gofman.

Em 2005, foi convidada pelo SESC Pinheiros a elaborar o show de abertura da exposição em homenagem aos 60 anos de Chico Buarque, voltando a se dedicar à obra do compositor. Em 20 de novembro de 2020 lançou o álbum Um Copo de Veneno, com onze gravações extraídas da trilha sonora do programa de TV homônimo, exibido de janeiro a março de 2020 pelo Canal Brasil. Um dos hits, lançado como single, foi a música Eu sou a diva que você quer copiar. Em 12 de novembro de 2021, em comemoração aos seus 70 anos, lançou nas plataformas digitais pela gravadora Joia Moderna o single A Nobreza do Não, com direito a um videoclipe.

“Hoje, olhando para trás, são muitos anos de carreira e muitos trabalhos relevantes para mim. Mas dentre tantas coisas, me vem uma passagem, como um prêmio que eu mesma ofereci para mim. Em 2018, eu fiz um cabaré brechtiano no teatro de Brecht, em Berlim, chamado Cabaré Indigno, que foi um ponto alto da minha vida. Em 2014, fui chamada para participar da Virada Cultural, e refazer o meu álbum Summertime, no Teatro Municipal de São Paulo. Foi um momento de glória. Eu entrei no palco chorando, saí chorando. Lá é um palco sagrado”, destaca Cida.

Em 2022, ano de retomada das atividades artísticas paralisadas por conta da pandemia, ela estreou o show do álbum Um Copo de Veneno na Casa de Francisca. No ano seguinte lançou o álbum Sérgio Sampaio Poeta do Riso e da Dor”, cujos shows vem apresentando até o momento.

“Defino meu trabalho como uma obra multifacetada. Ela é pensada para ser um documento de um momento X da minha vida. O momento artístico, um momento do pensamento, um momento do gosto, um momento da ousadia, um momento de calma. Cada uma delas representa uma fase da vida, e o álbum é um resultado. Eu nunca entrei no estúdio para gravar sem ter feito um espetáculo antes com as músicas. Esse é o meu jeito de trabalhar”, diz.

Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.