Presença de elementos potencialmente tóxicos em aves marinhas chama a atenção de pesquisadores

Estudo identificou traços de cádmio, cobre, zinco e arsênio no fígado de nove espécies de pássaros do Atlântico Sul. Fontes podem ser naturais, mas também derivadas de atividades humanas. Animais servem como sentinelas ecológicas da saúde dos ecossistemas marinhos.

Os efeitos das mudanças climáticas e da poluição sobre os mares preocupam muito os oceanógrafos, mas ainda parecem ser pouco conhecidos pela população. Com o objetivo de fomentar a conscientização sobre esses problemas, foram criadas algumas iniciativas de popularização, como a Década dos Oceanos, que teve início em 2021 e se estenderá até 2030, e o Dia do Oceano, que, desde 2008, é celebrado no dia 8 de junho. Porém, mesmo os estudiosos ainda se surpreendem com a escala dos danos que estão ocorrendo no ambiente marinho. Uma nova janela para estudar esses efeitos foi aberta por uma recente pesquisa do Centro de Estudos Ambientais (CEA) da Unesp, câmpus de Rio Claro, que avaliou a presença de contaminantes na fauna de aves marinhas.

Os pesquisadores mapearam a presença de cádmio, zinco, arsênio e cobre em amostras do fígado de 51 espécimes recentemente mortos de aves marinhas que habitam o Atlântico Sul. Os animais foram recolhidos nas areias de diversas praias de São Sebastião (SP).

“O cobre e o zinco são essenciais ao funcionamento do organismo dessas aves”, diz Guilherme dos Santos Lima, pesquisador do Centro de Estudos Ambientais (CEA) da Unesp de Rio Claro e primeiro autor do trabalho. “Esses metais participam de processos biológicos importantes, por isso a presença deles é considerada normal. No entanto, há outras substâncias, como o cádmio e o arsênio, que não possuem função biológica conhecida em vertebrados. Mesmo em baixas concentrações, esses elementos podem causar efeitos tóxicos”, explica.

O albatroz-de-bico-amarelo-do-Atlântico, uma das espécies analisadas. Crédito: Patricia Serafini

Os dados recém-apresentados à comunidade científica compõem a pesquisa de doutorado do cientista no Programa de Pós-graduação em Geociências e Meio Ambiente, orientada por Amauri Antonio Menegário, pesquisador e coordenador do CEA, que também assina o mesmo artigo científico como autor principal. O estudo foi publicado neste ano na revista Environmental Pollution.

A chegada desses metais aos organismos das aves está ligada ao fluxo das intrincadas cadeias alimentares no oceano. Em uma primeira etapa, o plâncton contaminado por arsênio ou cádmio pode virar alimento para peixes pequenos. Em um segundo momento, chegam os cardumes maiores e engolem os menores. Essas conexões ocorrem em quase todos os mares do planeta.

No verão, no caso do Atlântico Sul, mais um elo trófico pode ser atrelado aos outros dois. Com as águas oceânicas mais quentes, os pinguins-de-Magalhães sobem o litoral sul-americano em busca de alimento. Em regiões como a do norte de São Paulo, por exemplo, os mais corajosos, já bem longe de casa, precisam se alimentar bem antes de fazer o retorno e começar a viagem de regresso. Os peixes maiores, neste caso, são os alvos preferidos.

Neste exemplo específico, os contaminantes que estavam nos invisíveis plânctons se acumularam ao longo de dois degraus da teia alimentar (os cardumes menores e maiores) até chegarem ao estômago dos pinguins, animais considerados predadores de topo da cadeia. Várias outras espécies que também ocupam essa posição podem ser impactadas pelo fluxo da contaminação.

Este exemplo permite que apontemos os processos de bioacumulação (contaminação de forma direta, pelo ambiente ou comida) e de biomagnificação (aumento progressivo da concentração de contaminantes ao longo da cadeia alimentar). O novo estudo foi pioneiro ao relacioná-los a nove espécies de aves: pinguim-de-Magalhães, petrel-grande, pardela-preta, albatroz-de-bico-amarelo-do-Atlântico, albatroz-de-sobrancelha, biguá, fragata-magnífica, atobá-pardo e gaivotão, entre aves migratórias e residentes. Para ser considerada uma espécie residente, a ave deve permanecer durante todo o seu ciclo reprodutivo e alimentar, normalmente durante o ano inteiro, na mesma região. Fora disso, a espécie é migratória.

Aves migratórias apresentam contaminação maior

Ao esmiuçar os dados de contaminação, os cientistas revelam como fontes difusas de elementos potencialmente tóxicos estão hoje disseminadas, em altas concentrações, por várias regiões do mundo e contaminando ativamente as aves marinhas. Esse processo fica mais evidente quando se foca exclusivamente nas aves migratórias, como os pinguins e albatrozes.

“Essas espécies vêm de regiões remotas e teoricamente mais bem preservadas do que o litoral norte do Estado de são Paulo. Além disso, ficam pouco tempo por aqui. Ou seja, não necessariamente as fontes de contaminação estão todas nas praias do litoral paulista”, diz Lima.

As análises revelaram uma variação mais ampla nos níveis de contaminação. Os exemplares do pinguim-de-Magalhães (Spheniscus magellanicus), por exemplo, apresentaram níveis de arsênio variando de 0,86 mg a 70,25 mg por quilo, dependendo da localização e do momento da coleta.

Essa variação extremamente elevada pode ser explicada até pelas diferentes fontes de alimento às quais recorrem em seus grandes deslocamentos. Isso, no entanto, dificulta o estabelecimento de uma relação segura entre os níveis de contaminantes e uma localização geográfica específica, levando-se em conta o ciclo anual de viagens da espécie.

O gaivotão, ou gaivota meridional.

Apesar disso, a própria dieta dos pinguins-de-Magalhães serve como exemplo para ajudar a explicar os altos níveis de cádmio encontrados nas amostras da espécie coletadas em São Paulo. Restritos às zonas costeiras temperadas da América do Sul, nos oceanos Pacífico e Atlântico, esses pinguins adotam uma dieta especializada, mas que muda bastante durante sua migração para áreas subtropicais durante a estação não reprodutiva.

Mais de 90% da alimentação dos pinguins-de-Magalhães é formada por peixes pelágicos. No entanto, ao se deslocarem rumo a águas mais quentes, os percentuais de biomassa obtidos de diferentes tipos de presas tendem a variar. Em alguns casos, a dieta passa a contar com uma porcentagem maior de lagostas e lulas, o que demonstra flexibilidade na utilização dos recursos alimentares disponíveis. Os cefalópodes, como as lulas, são importantes fontes de cádmio, o que indica que essas devem ser um item constante do cardápio dos pinguins-de-Magalhães quando de sua migração para o litoral brasileiro. É possível que essa seja uma das fontes do cádmio cujos traços de metabolização foram encontrados no fígado dos animais.

Em contraste, aves residentes como o Atobá-pardo (Sula leucogaster) e a Fragata-magnífica (Fregata magnificens) mostraram níveis relativamente estáveis de contaminação por cádmio e cobre, indicando exposição contínua a poluentes locais.

Fontes de contaminação podem ser de origem natural ou humana

Apesar das diferenças geográficas de distribuição, as espécies consideradas locais exibem comportamentos generalistas e oportunistas em relação à preferência por presas. O biguá (Nannopterum brasilianum) e o atobá-pardo competem por recursos alimentares em áreas onde suas distribuições se sobrepõem. No estudo dos cientistas brasileiros, as concentrações médias de arsênio e zinco também foram semelhantes nesses dois grupos taxonômicos, sugerindo outra possível exploração compartilhada de recursos alimentares contaminados, devido à presença do semimetal arsênio.

De acordo com o cientista do CEA, ainda não se pode especular, com mais detalhe e mais certeza, quais são as fontes de contaminação que atingem as aves. Em alguns casos, essas devem ser fontes naturais, como os processos geológicos gerados pelas erupções vulcânicas. Atividades antrópicas, como a mineração, certos setores da indústria e o agronegócio também ajudam a abastecer as cadeias tróficas com elementos químicos potencialmente problemáticos. O processamento indevido de resíduos sólidos nos grandes centros urbanos é outra fonte poluidora, segundo os cientistas.

“Os resultados levantam questões importantes para estudos futuros, como a necessidade de investigar os impactos dos contaminantes na saúde das aves e a atuação de mecanismos fisiológicos de proteção, como os processos homeostáticos. A identificação da presença de proteínas como as metalotioneínas também pode ajudar a neutralizar os efeitos tóxicos desses elementos quando acumulados em níveis elevados no organismo”, avalia Lima.

Mas o pesquisador enfatiza que o estudo dessas aves nos permite perscrutar a saúde do oceano como um todo. “As aves marinhas funcionam como sentinelas ecológicas. Por meio de suas rotas de forrageamento e hábitos alimentares, elas acumulam contaminantes que podem refletir a saúde dos ecossistemas marinhos.”

Imagem acima: aves da espécie Fragata-magnífica fotografadas em 2018 no céu do Arquipélago de Abrolhos. Crédito: Patricia Serafini.