Um grupo de trabalho ligado ao Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (CRUESP) elaborou uma nova proposta para o financiamento das instituições por parte do governo do Estado, tendo em vista as alterações no sistema tributário nacional estabelecidas pela PEC 45/2019, que foi aprovada em dezembro de 2023, e que estão em processo de discussão final no Congresso Federal. Pela proposta, Unesp, Unicamp e USP passariam a receber o equivalente a 8,63% da receita tributária líquida do Estado, o que corresponderia, em valores atuais, a cerca de R$ 15 bilhões. A proposta foi apresentada à comunidade universitária na quarta-feira, 28/08, num evento organizado no Instituto de Estudos Avançados da USP, na Cidade Universitária, para debater a autonomia universitária. A proposta seria apresentada na última sexta, 30/08, à gestão do governador Tarcísio de Freitas, mas a reunião foi cancelada. O Palácio dos Bandeirantes diz que nova data será agendada .
O economista Sebastião Neto Ribeiro Guedes, professor do Departamento de Economia da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, foi quem presidiu o grupo de técnicos, integrado por docentes das três universidades, que desenvolveu a proposta. Na entrevista abaixo ao Jornal da Unesp, ele explica os parâmetros que nortearam o trabalho do grupo, o contexto em que ele foi desenvolvido e a importância da sua aprovação para a continuidade das atividades de Unesp, USP e Unicamp nos modelos atuais.
Por que as universidades estaduais paulistas estão se mobilizando em função da PEC de reforma tributária que foi aprovada em Brasília, no fim do ano passado e está em suas etapas finais de debate?
Sebastião Guedes — A PEC aprovada altera os chamados impostos sobre valor agregado, que incidem sobre aquilo que as pessoas consomem. Cinco impostos atualmente em vigência vão deixar de existir e serão substituídos por dois novos impostos a serem criados. Unesp, USP e Unicamp hoje são financiadas fundamentalmente por recursos obtidos de um dos impostos que serão extintos pela reforma tributária, o ICMS, que é o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços.
O problema é que com a extinção do ICMS as universidades passam a ficar sem a referência para a transferência dos recursos feita pelo Governo Estadual, destinado a financiá-las. Esse é o vínculo entre a reforma tributária e as universidades estaduais paulistas.
Como se dá hoje essa vinculação entre o ICMS e o financiamento das universidades estaduais paulistas?
Sebastião Guedes — Hoje esse financiamento das Universidades está garantido por um decreto que foi publicado em 1989. O decreto assegura que 9,57% do ICMS líquido (deduzida a cota-parte dos municípios) arrecadado no Estado de São Paulo se destina às universidades. Ano passado esse valor ficou um pouco abaixo dos R$ 15 bilhões, distribuídos em R$ 7,7 bilhões para a USP, R$ 3,5 bilhões para a Unesp e R$ 3,3 bilhões da Unicamp. Esse modelo assegura a autonomia das universidades quanto à gestão dos recursos que elas recebem.
Esse modelo é encontrado em outros estados do Brasil?
Sebastião Guedes — O evento que ocorreu no Instituto de Estudos Avançados da USP ajudou a ressaltar as particularidades que envolveram a conquista da autonomia universitária. Esse acontecimento teve como referência dois momentos muito particulares. O primeiro foi a promulgação da Constituição de 1988, que defendia a autonomia para as universidades, em termos genéricos. O segundo foi o fato de que o governador de São Paulo à época, Orestes Quércia, se mostrou bastante favorável a conceder a autonomia universitária para as três universidades.
Antes disso, o que havia era uma situação de muitos conflitos junto às universidades. Os reitores estavam permanentemente buscando recursos junto ao governo do estado. Havia muitas greves e muitas manifestações demandando recursos ao governo. A solução que o governador encaminhou foi garantir a autonomia financeira vinculando uma certa porcentagem do ICMS para financiar as universidades sem que houvesse qualquer outra interferência direta por parte do governo. Havia esse contexto político muito favorável a este encaminhamento. Parece que há outras experiências. No evento foi mencionada uma experiência semelhante na UESC, que foi posterior. Então, se não somos os únicos, somos pelo menos os pioneiros nesse movimento pela autonomia universitária.
O que estamos propondo é que, como já acontece hoje, uma parte das receitas do estado seja transferida para a universidade. Mas que este processo envolva três elementos diferentes. O primeiro é inserir na Constituição estadual uma emenda incluindo a vinculação da transferência do estado para as universidades. Hoje esta vinculação se dá por meio de um decreto que pode alterado a qualquer momento pelo executivo estadual. Então passaria a constar da Constituição esse percentual da transferência. A segunda modificação é a origem dos recursos. Nós queremos substituir o ICMS pela receita tributária líquida do estado. E a terceira diferença é que ao invés de 9,57% do ICMS essa vinculação seria de 8,63% da receita tributária líquida. São estas as mudanças.
O que é o IBS?
Sebastião Guedes — É o Imposto sobre Bens e Serviços Na proposta de reforma tributária aprovada em 2023, os cinco impostos que serão extintos incluem o IPI, COFINS e PIS. São tributos da esfera federal que serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços, e o ICMS e o ISS, que são impostos que financiam estados e municípios. Estes impostos vão constituir o IBS.
O atual modelo de financiamento paga quais despesas das universidades?
Sebastião Guedes — Vou falar do caso da Unesp em particular, mas acredito que seja válido para todas as estaduais. Esses recursos respondem por 85% dos gastos. Incluem folha de pagamento, parte do custeio, parte dos investimentos. Isso pode variar, mas em torno de 85%. Sem esse recursos as universidades não funcionam. Os demais 15% vêm de várias fontes. Parte é recolhido do pagamento do plano de saúde dos servidores, parte é de aplicações financeiras e há os convênios também. São diferentes fontes.
E, uma vez que contam com esses recursos, as universidades não podem fazer solicitações extras ao governo do estado?
Sebastião Guedes — Sim. É uma autonomia para o bem e para o mal, digamos. Já tivemos dificuldades no passado, recente, inclusive, em que não conseguimos pagar o décimo terceiro salário. E tivemos que lidar com isso nós mesmos. É isso que significa gerir os recursos com autonomia e responsabilidade, tentando garantir a sustentabilidade institucional ao longo do tempo. A gente é que se responsabiliza pelos ajustes.
E quando o IBS passa a valer?
Sebastião Guedes — Ainda vai demorar um tempo. A previsão é que a extinção definitiva do ICMS só ocorrerá em 2033. A CBS será instituída antes, em 2027. Então só em 2033 irá se consumar a implantação de ambos os impostos. Teremos um período de transição de cerca de nove anos em que os impostos vão coexistir. A partir de 2029 será cobrada uma porcentagem de IBS, que deverá responder por 10% da arrecadação, e 90 % do ICMS. Em 20230 será 20% de IBS e 80% de ICMS. E assim gradualmente até que em 2033 se alcance 100% de IBS e zero de ICMS.
Críticos do atual sistema tributário dizem que ele concentra muitos recursos em alguns estados, São Paulo entre eles. A reforma aprovada pode reduzir a arrecadação do estado e, consequentemente, a quantidade de recursos disponível para financiar as universidades estaduais?
Sebastião Guedes — A reforma aprovada tem três princípios. O primeiro é o da simplificação tributária. Um dos problemas da atual tributação sobre o consumo é que cada estado adota alíquotas diferentes para diversos produtos, oferecem isenções tributárias, há legislações que se sobrepõem… Há uma complexidade muito grande no imposto sobre consumo. Esse contexto dificulta a que as pessoas físicas e jurídicas possam desempenhar suas atividades com eficiência. Então, a simplificação é um dos objetivos da reforma. Haverá uma alíquota padrão que não poderá mais ser alterada pelos estados para, por exemplo, promoverem guerra fiscal a fim de atrair empresas.
O segundo princípio é que a carga tributária que será gerada deve ser exatamente igual àquela que vigorava anteriormente. Ou seja, o montante arrecadado pelos cinco impostos que vão desaparecer, em termos de proporção do PIB, deve permanecer exatamente igual quando vigorarem os novos impostos. Isso representaria uma espécie de teto de arrecadação de impostos sobre consumo, com a ideia de que a reforma não vai aumentar a arrecadação e sim manter o patamar que existe hoje.
O terceiro princípio é que nenhum ente federativo, estado ou município pode perder arrecadação. Os modelos que os economistas utilizam para mensurar os efeitos resultam perda de receita em detrimento de outros. Então, para assegurar que este terceiro principio seja atendido, a reforma tributária cria um conjunto de quatro fundos que são utilizados pela união para compensar os estados que porventura teriam perdas de arrecadação.
O que propomos é seguir os dois últimos princípios, garantindo que não haja perda da proporção de recursos na transição, nem que haja crescimento. Não pedimos mais recursos.
O governo do estado tem acenado com a possibilidade de reduzir recursos para a educação no nível básico e também para as atividades de pesquisa, alterando o orçamento da Fapesp.E, ainda este ano, chegou a aventar a possibilidade de reduzir o repasse às universidades estaduais, porém voltou atrás. Como o senhor enxerga o contexto em que se dará o debate sobre a proposta apresentada pelo CRUESP?
Sebastião Guedes — Estamos acompanhando. A ideia de desenvolver esta proposta de financiamento surgiu no final de 2023, quando o CRUESP era presidido pelo reitor da Unesp, professor Pasqual Barretti. O objetivo era posicionar as universidades estaduais paulistas num contexto político em que se está questionando o financiamento do ensino no estado, de forma geral. E toda redução de recursos para a Fapesp afeta as condições para a pesquisa no estado. Hoje, 1% da receita tributária líquida se destina a financiar a Fapesp. Esse projeto de lei que propõe reduzir esse percentual, que está sendo discutido na ALESP, é uma ameaça à produção científica não apenas no Estado de São Paulo, mas no Brasil como um todo. Isso é parte de um movimento de reduzir os recursos para a educação e a pesquisa no Estado de São Paulo. Precisamos estar atentos.
Imagem acima: Deposit photos.