Nações em todo o mundo têm se esforçado para reduzir suas emissões de carbono, tendo em vista o cenário de mudanças climáticas e os compromissos firmados no Acordo de Paris, em 2015. Parte fundamental desse esforço passa pela substituição no uso de combustíveis fósseis por outras fontes menos poluentes, em especial no setor de transportes. Enquanto em diversos países na Europa e nos Estados Unidos a estratégia envolve a adoção de veículos puramente elétricos, no Brasil, parece se consolidar cada vez mais a opção pelo uso dos biocombustíveis, principalmente, o etanol, como propelente para veículos híbridos. Se não de forma definitiva, pelo menos como uma opção transitória
Um exemplo dessa visão para o futuro do Brasil vem dos investimentos das montadoras. Segundo cálculos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), os investimentos anunciados nos últimos meses por diferentes empresas do setor ultrapassam os R$ 10 bilhões para os próximos dez anos. Na maior parte dos anúncios, os diretores das montadoras mencionam a produção de carros híbridos movidos a etanol.
Este ano, a Stellantis declarou que irá destinar uma grande parcela de seus R$ 30 bilhões de investimentos previstos a veículos híbridos. E a chinesa Build Your Dreams (BYD), líder mundial na venda de veículos 100% elétricos, incluirá no seu portfólio brasileiro veículos que contemplam o uso do etanol. Em janeiro, o presidente mundial da GM descortinou planos para investir R$ 7 bilhões no Brasil até 2028. O objetivo é adequar suas linhas de montagem no país à produção de novos veículos, incluindo-se tanto carros a explosão quanto híbridos. Em julho, o diretor da GM para o mercado latino-americano fez questão de reforçar que a empresa continuaria oferecendo opções não elétricas. E comparou a chegada do carro elétrico ao impacto causado pela internet no campo das comunicações. “A internet não matou a TV, assim como a TV não matou o rádio. É isso que os carros elétricos representam”, disse.
Poucos anos atrás, entretanto, o melhor caminho para conduzir a descarbonização da frota brasileira não estava tão claro. Havia a possibilidade de que o mercado priorizasse os veículos elétricos, que foi a via adotada em boa parte dos países desenvolvidos. Em 2023, por exemplo, o Parlamento Europeu aprovou uma lei que proíbe a venda de carros novos movidos a combustão nos 27 países que formam a União Europeia a partir de 2035. Na mesma linha, nos Estados Unidos, uma legislação parecida foi adotada na Califórnia, e seguida por outros estados norte-americanos.
Diante dessa perspectiva, um grupo de líderes sindicais, produtores de cana-de-açúcar e pesquisadores se articulou para discutir o espaço que o biocombustível brasileiro deveria ocupar na transição energética. Entre eles estava o químico Rodrigo Costa Marques, que é professor do Instituto de Química da Unesp, campus de Araraquara.
Movimento defende carro híbrido desde 2021
Marques é coordenador do CEMPEQC (Centro de Monitoramento e Pesquisa da Qualidade de Combustíveis, Biocombustíveis, Petróleo e Derivados). Entre os anos de 2021 e 2022, ele e o grupo organizaram uma série de eventos chamada Híbrido Etanol: O Motor do Futuro, em diferentes cidades do estado de São Paulo, como Araraquara, Sorocaba e São José dos Campos, buscando articular apoios entre o empresariado, a universidade e o poder público.
Marques diz que, mesmo lá fora, a aposta na frota totalmente eletrificada no curto prazo está sendo revista em muitos lugares. “Segundo o cenário mundial que aparece na literatura, o carro puramente elétrico enfrentou algumas surpresas no caminho. Não trouxe a revolução da mobilidade que se esperava”, diz Marques. Ele explica que os problemas não se deveram necessariamente aos preços salgados dos veículos. O professor explica que embora os carros elétricos tenho chegado ao mercado inicialmente com modelos de alto padrão e com preços muito altos, hoje já existe uma oferta de veículos em uma faixa média de preço. No Brasil, por exemplo, já é possível comprar modelos elétricos mais compactos a partir de R$130 mil, um pouco abaixo do valor de um carro a combustão de preço médio.
As maiores dificuldades estão ligadas ao sistema de carregamento das baterias. “Mesmo países desenvolvidos, como os EUA, enfrentam uma insuficiência no sistema de carregamento para atender à quantidade de carros que projetavam. É verdade que existem carregadores para todo lado. Porém, aqueles de alta eficiência, capazes de recarregar baterias em duas ou três horas, ainda são poucos”, diz. ”O sistema funciona para a demanda de uso na área dos centros urbanos. Mas, quem deseja fazer uma viagem intermunicipal ou interestadual provavelmente vai enfrentar muitas dificuldades.”
No Brasil, o etanol acumula as vantagens de emitir menos carbono que os combustíveis fósseis e de dispor de ampla rede de distribuição ao longo das rodovias brasileiras. Construir algo semelhante para atender carros 100% elétricos, diz Marques, demandaria tempo e um alto volume de investimentos.
Governo comprou a ideia
Em 2022, diversos grupos estavam empenhados em apresentar esses argumentos a autoridades públicas. “Essas ideias terminaram por chegar à equipe que coordenou a transição de governo”, explica Erick Pereira da Silva, presidente da Federação Estadual dos Metalúrgicos da CUT (FEM/CUT-SP). Silva também participou da organização e da coordenação do projeto Híbrido Etanol: O Motor do Futuro.
Silva diz que a opção pelo uso do etanol foi incorporada a diferentes projetos do Governo Federal. Um exemplo é o programa de reindustrialização apresentado pelo MDIC, o Nova Indústria Brasil. Entre outros pontos, o programa prevê que a retomada do setor industrial deva estar vinculado a cortes na emissão de carbono e à elevação da participação de biocombustíveis na matriz energética de transportes. “Nós teremos, fundamentalmente, investimentos em carros híbridos. E as indústrias já responderam a essa política com os anúncios de investimentos que vimos nos últimos meses”, diz.
Marques, porém, enxerga uma mudança de posicionamento entre os apoiadores dos veículos híbridos. Em 2021, o que estava no horizonte era a concorrência com os veículos elétricos. Hoje o híbrido a etanol é uma alternativa aos combustíveis fósseis. “O que a gente percebe é que o atual governo ainda quer explorar o petróleo”, compara. “Entendo essa decisão do ponto de vista do gestor. Afinal, o Brasil ainda tem uma mina de dinheiro”, diz, referindo-se ao potencial armazenado nas diversas bacias petrolíferas inexploradas que contornam o litoral brasileiro. “Ao longo da história, o mundo inteiro queimou carvão e petróleo, se desenvolveu, e nos deixou para trás.”
Qual será o motor do futuro?
Se neste momento os veículos híbridos estão se consolidando como o modelo adequado para a transição energética no Brasil, Silva pensa que, eventualmente, os motores elétricos irão prevalecer, devido a sua capacidade de converter a energia elétrica da bateria em movimento, apresentando uma baixíssima perda de energia no processo. “O motor a combustão apresenta perda calorífica. O motor elétrico é muito mais eficiente e praticamente não tem perda de energia”, diz.
Isso não quer dizer, necessariamente, que o etanol vá desaparecer no futuro. “O carro que a gente imagina lá na frente é o carro movido a etanol, mas com o etanol produzindo eletricidade”, projeta Marques. Ele se refere a uma tecnologia, atualmente em desenvolvimento, que transforma o etanol em hidrogênio por meio de um processo químico chamado reforma a vapor do etanol. Nesse processo, o biocombustível é submetido a temperaturas e pressões específicas para reagir com água dentro de um reator e produzir o hidrogênio.
Ainda em estudos, a técnica, adaptada ao transporte veicular, poderia permitir ao motorista abastecer o tanque com etanol em um posto de combustível. No interior do veículo, o etanol seria convertido em hidrogênio e alimentaria uma célula a combustível responsável por movimentá-lo. “Do ponto de vista da logística brasileira, esse arranjo seria o melhor porque ele permitiria usar a rede de postos de abastecimento que já estão espalhados pelo país”, diz Marques.
Atualmente, um dos principais limitantes para o uso do hidrogênio como combustível é o seu transporte, que exige a compressão ou a liquefação da substância em baixas temperaturas, o que encarece a sua utilização em larga escala. A produção do hidrogênio a partir do etanol, portanto, surge como uma potencial rota tecnológica capaz de aproveitar a rede de distribuição dos postos. “Nós já temos essa tecnologia, mas precisamos miniaturizar esse reformador a vapor para que caiba no carro e seja um processo viável. Já existem grupos pesquisando isso no Brasil”, afirma.
Um exemplo de pesquisas que já estão indo para a rua foi divulgado no ano passado, pelo Centro de Pesquisa para Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI). Financiado pela Fapesp, o centro anunciou a construção de uma estação de abastecimento de hidrogênio no campus da USP. Nesse caso, ao invés de transformar o etanol em hidrogênio em uma estrutura miniaturizada, como mencionou o professor, a estação será equipada com um reformador de etanol no próprio posto que, de acordo com o projeto, irá abastecer de hidrogênio os ônibus que circulam no campus da Universidade.
Silva também vê com entusiasmo a possibilidade de um sistema que combine etanol e hidrogênio. Mas pondera que talvez não seja a melhor opção para todos os tipos de deslocamento. “Essa transição para o hidrogênio poderia preservar a cadeia de abastecimento do etanol que já existe. Mas vejo que para os ônibus urbanos os motores 100% elétricos parecem mais adequados, e talvez os motores a combustão ainda sejam convenientes para o transporte rodoviário. Acredito que, com o tempo, as opções irão caindo, cada uma, em suas respectivas caixinhas”, diz.