A insatisfação com a subida no preço dos alimentos no país se tornou uma espécie de mantra neste primeiro semestre, repetido diariamente em supermercados, feiras, mercadinhos etc. Os números mostram que, no primeiro bimestre de 2024, a inflação da alimentação em domicílio cresceu 2,95%, ou quase o dobro da inflação oficial registrada no país no período, que foi de 1,25%. Mas a subida de alguns produtos foi muito maior, alcançando 38% no caso da batata inglesa, e 57% no da cenoura. A insatisfação popular rebateu até nas pesquisas de opinião sobre o desempenho do governo federal. A resposta do presidente Lula foi convocar, em meados de março, uma reunião com seus ministros da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Desenvolvimento Agrário a fim de conceberem estratégias para empurrar para abaixo o preço dos alimentos. Passados dois meses, não apenas a queda dos preços não veio como as fortes chuvas que desabaram sobre o Rio Grande do Sul, afetando 1,5 milhão de pessoas e deixando cerca de 150 mortos, sinalizam um cenário de aumento nos preços dos derivados do leite e do arroz – neste caso, o estado responde por 70% da produção nacional.
Em entrevista ao Jornal da Unesp, o economista José Giacomo Baccarin, professor do Departamento de Economia Rural da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, campus de Jaboticabal, analisa as causas para a subida do preço dos alimentos no Brasil e explica que, além de um componente de sazonalidade, ela está relacionada a uma sequência de eventos climáticos extremos que atingiram o país no último ano, como secas e chuvas intensas. Mas há também um fator ligado à gestão do país, que tem feito com que os preços de alguns produtos estejam subindo desde 2007.
“Os sucessivos governos falharam em não adotar uma ação mais direcionada para aqueles produtos que são vendidos in natura“, diz o docente. Esta produção, muitas vezes, vem de pequenos agricultores familiares. Como reflexo desta falta de apoio, já há agricultores que deixaram de produzir e arrendam suas terras para que sirvam ao plantio de commodities. “O pequeno agricultor também precisa de mecanização. Não dá para competir com as grandes máquinas na base da enxada.”
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Em 15 de março, durante uma reunião com os ministros da Agricultura, Pecuária e Abastacimento e do Desenvolvimento Agrário, o presidente Lula se queixou da alta dos preços dos alimentos este ano. Os ministros garantiram que era um evento sazonal e que a tendência seria de queda nos custos. Mas, passados dois meses, os preços seguem altos. O que está acontecendo?
José Baccarin: O aumento dos alimentos que ocorreu no começo deste ano está concentrado nos chamados produtos olerícolas (este é o nome de um grupo que compreende frutas, verduras e legumes, raízes etc.), e no feijão e no arroz. Estes produtos puxaram mais de 70% da inflação de alimentos desde janeiro. Daqui para frente, muitos irão baixar de preço, como tomate e cebola, e talvez o feijão. Devido aos problemas no Rio Grande do sul, onde está concentrada 70% da produção de arroz, se não houver uma redução de preços no mercado internacional, ele não irá baratear este ano.
No ano passado, a inflação dos alimentos foi muito baixa perante o Índice Nacional de Preços o Consumidor Amplo (IPCA, índice que mede a inflação elaborado pelo IBGE) porque os preços internacionais caíram. Não vejo possibilidades de termos um aumento internacional dos preços agora. E parte da pressão que levou a essa subida dos preços no começo de 2024 tende a se desfazer durante o ano.
Os preços de olerícolas sempre sobem no início do ano porque é mais difícil produzi-los no período de chuva. Mas este ano tivemos um calor excessivo que afetou a produção brasileira de soja. Ela caiu 15% em relação à expectativa. Aliás, a única colheita de soja dentro da expectativa foi a do RS. Veja como é importante considerar o fator clima. E o RS teve uma safra acima do que se esperava porque, até acabar a produção, o clima foi bom. No restante do país tivemos muitas ondas de calor que levaram a safra a ser 15% menor. Isso no caso da soja não é problema, pois seu preço é dado pelo mercado internacional.
No caso de produtos que não podem ser importados, como alface e tomate, a nossa produção, a nossa oferta é que determina o preço interno. E nós tivemos um aumento normal nos preços, típico do começo do ano, que foi agravado pelas ondas de calor.
O ministro da Agricultura Carlos Fávaro se referiu às ondas de calor que impactaram a lavoura nos últimos meses afirmando que já são um reflexo das mudanças climáticas…
José Baccarin: É isso. Precisamos tomar um pouco de cuidado para não atribuir tudo que aconteceu esse ano a este tipo de acontecimento. Mas o que estamos percebendo é que os fenômenos climáticos estão extremados mesmo. Nós tivemos ao mesmo tempo uma seca histórica na Amazônia ano passado, o Rio Negro atingiu níveis mínimos históricos, e no RS dois problemas de chuvas, sendo que o deste ano, como vimos, foi gravíssimo. Mas eu faria uma separação entre aqueles produtos que possuem um mercado internacional muito grande, em que o que acontece no Brasil pode ser compensado pelo que acontece lá fora, como no caso da soja, em que uma safra menor pode não afetar o preço do produto, e os produtos cujos preços são determinados pelo que ocorre aqui dentro. Por isso, minha expectativa é que o preço das olerícolas irá dar uma suavizada nos próximos meses. Agora, com a questão do arroz, acho que ele continuará pressionando a inflação. E no caso do feijão, que dá cinco safras no ano, é possível que elas sejam maiores, motivadas pelos preços altos.
O ministro Fávaro disse que será preciso repensar a concentração da cultura de arroz no RS e em SC devido à mudança climática. Este debate já começou a ser travado?
José Baccarin: Por que a produção de arroz se concentra em SC e RS? O arroz é competitivo quando é cultivado em locais de inundação. Diz-se que é preciso “água no pé e sol na cabeça”. Nos lugares em que se pode encontrar estas condições, a cultura do arroz se mostra competitiva. O Brasil produzia muito arroz no Cerrado antigamente, e no Estado de São Paulo também< mas se produzia na forma do arroz de sequeiro, que é muito arriscado e é menos produtivo. Com o tempo, a produção foi se concentrando no sul do RS e no sudeste catarinense onde existe água em quantidade e terrenos relativamente planos que permitem a irrigação por inundação. Mas temos que repensar esse quadro, porque está virando um risco. Imagine se esses fenômenos se tornarem repetitivos.
Porém, há um problema: em termos econômicos, não é viável plantar arroz de sequeiro. Os custos são maiores. Vamos plantar arroz irrigado fora do RS? Onde? Não é uma reposta fácil. Levou tempo para que a produção se concentrasse no RS e em SC, não vejo possibilidade de haver desconcentração rápida.
No caso do arroz, penso que temos que trabalhar com estoques reguladores, criar estoques para atender estes momentos de emergência. E teremos que incentivar explicitamente o plantio de feijão e de arroz. Mas isso só será viável no ano que vem.
E no caso das olerícolas?
José Baccarin: Elas têm ficado mais caras no Brasil já faz muito tempo. O que a gente observa é que esse aumento começou em 2007. Há o fator sazonal influenciando a subida dos preços este ano, mas existe também um fenômeno estrutural. Precisamos recuperar esse plantio e incentivar a produção de olerícolas no Brasil. Até porque, se ficarem mais caros as olerícolas e os produtos in natura, a nossa qualidade nutricional cai. Porque esse aumento nos preços não atinge os produtos ultraprocessados. Eles não ficam tão mais caros, a indústria consegue absorver muitos dos custos.
Acho que houve um descuido dos sucessivos governos federais no sentido de não adotar uma ação mais direcionada para aqueles produtos vendidos in natura. Nesses casos não é possível recorrer ao mercado externo para resolver os episódios de crise de abastecimento. Esta produção muitas vezes vem de pequenos agricultores familiares. É possível, por exemplo, considerar a oferta de mais crédito rural para esses pequenos agricultores, inclusive para que possam construir estufas e adquirir equipamentos de irrigação, onde isso for possível. E, também, muita assistência técnica para quebrar esta questão estrutural.
E qual o problema com as olerícolas?
José Baccarin: O desestímulo com a pequena agricultura passa até pelo tipo de maquinário que é oferecido. Quais as máquinas no mercado para atender áreas pequenas no Brasil? Temos excelentes máquinas e muito eficientes para grandes áreas. O perfil da nossa mecanização é voltado para grandes áreas. Há quem diga que o pequeno agricultor não precisa da mecanização, mas é lógico que ele precisa. Não dá para competir com as grandes máquinas na base da enxada.
No momento, estamos correndo atrás do prejuízo. As máquinas podem ajudar o pequeno produtor a enfrentar um trabalho menos árduo e assim permanecer no campo. Imagine o jovem que vive no campo, que tem alguma formação profissional, e se vê diante de um mercado de trabalho nas cidades que está se aquecendo. Será que ele vai permanecer no campo se o trabalho for assim tão árduo, e se ele não tiver acesso sequer a internet e a luz elétrica? Penso que a gente precisa de uma ação mais forte para propiciar melhores condições de trabalho aos produtores de olerícolas.
E também ofertar mais assistência técnica e extensão rural. Torço para que a gente consiga levar informações e novas tecnologias aos agricultores familiares. Acho que isso é muito difícil, basta ver o que acontece em São Paulo. Em grande parte, os agricultores familiares se limitam a arrendar suas terras para as grandes culturas como a cana-de-açúcar. Seria preciso entrar com vários incentivos aos pequenos agricultores para que a gente produza mais olerícolas. E acho que isso vale também para o arroz, o feijão, e o leite: é preciso incentivar a produção nacional.
Você está acompanhando os debates sobre a taxação dos alimentos da cesta básica na reforma tributária?
José Baccarin: Com a queda da taxação, haveria um aumento do consumo de produtos de boa qualidade. O consumidor de produtos in natura vai pagar menos e isso não significa que o produtor vai receber menos. E a tributação sobre as carnes será menor também. Isso é bom, porque diminui o peso dos alimentos nos gastos do consumidor e pode levar a uma melhoria da qualidade nutricional. Os ultraprocessados ficaram muito baratos, e a reforma tributária é fundamental para mudar isso. Eu tenho medo de que os lobbies da indústria alimentícia sejam muito fortes. Mas a isenção dos produtos da cesta básica é fundamental para melhorar a qualidade da alimentação no Brasil, e sem implicar prejuízo ao agricultor.
Imagem acima: Batata-inglesa em supermercado. Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil