Wanderléa — ou Ternurinha e Wandeca, apelidos pelos quais é carinhosamente chamada pelos fãs — permanece como uma das mais prestigiadas cantoras em atividade no país, mesmo com uma carreira que já entrou na sexta década. Além da associação à Jovem Guarda, movimento musical do qual foi uma das protagonistas, ao lado de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, ela preserva também o legado de ter sido um dos símbolos de comportamento inovador e contestador para jovens nas décadas de 1960 e 1970.
Wanderléa Charlup Boere Salim nasceu em 5 de junho de 1944 na cidade de Governador Valadares, Minas Gerais. A relação com a música surgiu ainda em tenra idade, como uma espécie de premonição. “Aos três anos de idade, ouvia rádio com a minha mãe. Lembro que o aparelho de rádio ficava numa prateleira no alto e eu muito pequena, observando tudo, não sabia nem falar direito, mas estava determinada. Dizia para minha mãe: ‘um dia eu vou cantar lá’. Quando eu paro para fazer essa reflexão, fico impressionada como a minha vida se dirigiu assim”, relata.
Seus pais tiveram treze filhos, dos quais alguns faleceram precocemente por falta de vacinas e outras questões relacionadas à saúde. O pai não queria que Wanderléa se encaminhasse para o universo da música, e deixava bem claro que imporia uma profissão mais tradicional. “Mas quando cantei pela primeira vez na rádio de Lavras, era tão pequenininha que tive que ficar montada no banquinho para chegar no microfone. As pessoas aplaudiram. Eu acho que aqueles aplausos seguiram comigo, eu fiquei com isso na cabeça e trago comigo até hoje”, lembra Wanderléa. “Meu pai teve que aceitar a música.”
Aos dez anos, vencia concursos em rádios. Em 1962 gravou o primeiro compacto e, no ano seguinte, teve a oportunidade de gravar seu primeiro LP. Intitulado Wanderléa, saiu pela pela Discos CBS, na época uma subsidiária da Columbia Records. Na gravadora conheceu Roberto Carlos e Erasmo Carlos, e em seguida foi convidada a apresentar, em agosto de 1965, o programa Jovem Guarda, pela TV Record, de São Paulo. Transmitido nas tardes de domingo, o programa alcançou uma das maiores audiências à época e catapultou os três para o estrelato, além de ter lançado diversos outros artistas.
“Conheci o Roberto com 15 anos de idade, quando ele foi fazer um show perto da minha casa. Eu já morava com a minha família no Rio de Janeiro, e havia um clube local onde ocorreu um show coordenado pelo radialista Luiz Carvalho. Eu fui me apresentar e ver os jovens que iam se apresentar também. Lembro que me sentei num banquinho de madeira junto com a minha cunhada, aí de repente entrou o Roberto Carlos cantarolando. Eu achei aquela voz interessante, aquele jeitão meio sentimental, cantando e tocando violão. Depois fui na coxia conversar com ele. Por coincidência, éramos da mesma gravadora e isso me estimulou muito”, lembra.
O modo como cantava, dançava e se vestia projetou-a como referência de mulher de atitude e vanguarda. Milhões de fãs não só cantavam suas músicas como imitavam seus passos e copiavam seus figurinos, que incluíam minissaias, botas, calças boca-de-sino, pernas e umbigo de fora, cabelos ao vento. Tudo que ela usava no programa Jovem Guarda no dia seguinte já era moda no Brasil inteiro. “Éramos os influencers da época”, brinca.
Seus discos estavam nas listas dos mais vendidos e várias músicas de um mesmo álbum entraram nas paradas de sucesso. Ela também pode exercitar outras habilidades ao atuar como atriz em filmes de longa metragem, gravados no Brasil e no exterior. E reafirmou seu lado apresentadora ao comandar, junto com Erasmo Carlos, o programa “A Ternurinha e o Tremendão”, um dos maiores sucessos nos tempos áureos da TV Record.
“A Jovem Guarda envolvia vários elementos culturais e sociais. Os jovens daquela época passavam por uma repressão muito grande. Não havia música para jovens, nossas atitudes eram pautadas pelos nossos pais, tudo era muito restritivo. A Jovem Guarda trouxe oportunidades, música e moda para a juventude brasileira. Mas tudo de maneira muito intuitiva, porque eram nossas necessidades pessoais”, conta. “A minha própria voz, meu canto, eu consegui na raça. A gente não tinha orientação artística. O Roberto ouvia gírias nas ruas e trazia para o programa, incorporava e aquilo virava algo popular, pois estávamos em rede nacional. Nós não tínhamos uma compreensão do que aquilo representava. Achávamos que era uma brincadeira que ia passar rápido. Então, vamos nos divertir enquanto é tempo”, diz.
Parte do repertório consistia de versões de músicas compostas no exterior e apresentadas aos cantores pelos produtores musicais, que visavam uma sonoridade diferenciada do que existia à época no país. “Nós captamos um pouco do que estava rolando na cultura de fora e adaptamos para o que fazíamos. Haviam várias versões, mas não eram traduzidas ao pé da letra. Ao contrário, a gente criava uma letra para a melodia. Inclusive foi a partir daí que o Erasmo e o Roberto começaram a compor músicas. Notamos que era a nossa forma de fazer rock and roll brasileiro”, diz.
Após a Jovem Guarda, Wanderléa passou a transitar em diferentes vertentes da música popular. Gravou compositores como Caetano Veloso, Djavan, Egberto Gismonti, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Jorge Mautner, Luis Melodia, Raul Seixas e Zé Ramalho, além da dupla Roberto e Erasmo.
Com uma agenda ampla, Ternurinha segue excursionando por todo o país apresentando um repertório que transita por várias fases. Em sua carreira fonográfica, ela conseguiu registrar alguns álbuns que são reconhecidos como pérolas, como o CD Wanderléa Maravilhosa, que ganhou status de obra cult graças à sonoridade muito moderna. Outro destaque são as canções de Vamos que eu já vou, disco que teve produção musical de Egberto Gismonti, seu então namorado. Outra obra de destaque é o CD/ DVD Nova Estação, trabalho que lhe rendeu o prêmio APCA, além de duas indicações para o Prêmio Nacional de Música Brasileira e ao Grammy Latino na categoria melhor álbum de MPB. Recentemente foi lançado um Box contendo seis CDS de toda sua fase dos anos 1970, além de sucessos da Jovem Guarda como Pare o Casamento, Prova de Fogo, Te amo e tantas outras.
Em maio de 2023, a artista lançou o álbum Wanderléa canta choros pelo Selo Sesc. Com excelentes críticas na mídia especializada, a obra apresenta clássicos de compositores como Ernesto Nazareth, Pixinguinha e Waldir Azevedo, além da canção inédita Um Chorinho para Wandeca, composta por Douglas Germano e João Poleto. “Trata-se de um sonho de infância que me foi concedido por meio do Danilo Miranda. Ele me deu a possibilidade de gravar nomes como Ernesto Nazareth, Abel Ferreira, Waldir Azevedo e outros clássicos maravilhosos que eu ouvia quando criança”, diz. “Este trabalho mostra a diversidade da minha obra, e amplia o leque de artistas que já gravei. Em janeiro estou de volta aos palcos”, diz.
Confira abaixo a entrevista completa com a Ternurinha no Podcast MPB Unesp.
Imagem acima: divulgação.