Dependendo do ponto do planeta que escolhem para fincar no chão suas picaretas, os paleontólogos podem até arriscar alguma ideia quanto às espécies de animais pré-históricos ou grupos que têm maior ou menor chance de surgirem das escavações. Os fósseis do célebre T-Rex são encontrados majoritariamente na América do Norte. Na Argentina existiram muitos dinossauros “pescoçudos”, como o gigante Argentinosaurus huinculensis. Já na área entre o Sudeste e o Centro-Oeste do Brasil conhecida como Bacia Bauru, curiosamente, os dinossauros parecem ter sido quase inexistentes. No entanto, a pesquisa nesta região tem revelado uma abundância de fósseis dos chamados crocodiliformes, o nome dado aos ancestrais dos crocodilos atuais.
Entre os crocodiliformes encontrados nesta região incluem-se aqueles pertencentes à família Baurusuchidae, que existiu entre 90 e 72 milhões de anos atrás, formada apenas por répteis exclusivamente terrestres. Até 2021, esta família contava com 11 espécies. Agora, acaba de ganhar mais um integrante, graças ao trabalho de um grupo de pesquisadores que inclui quatro estudiosos da Unesp.
Publicado na revista científica Cretaceous Research, o estudo é fruto do mestrado desenvolvido pelo estudante Kawan Carvalho Martins no Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da Unesp, campus São José do Rio Preto. Nele, os pesquisadores descreveram a espécie Aphaurosuchus kaiju a partir de fragmentos fósseis encontrados na cidade de Jales, em São Paulo, pela equipe de paleontologia da USP de Ribeirão Preto.
Martins explica que, no estudo de crocodilifomes, os ossos cranianos são os mais utilizados para identificar a espécie de cada indivíduo. No caso do A. kaiju, os pesquisadores notaram uma grande depressão na parte frontal do crânio do animal, característica inexistente em outros fósseis da família Baurusuchidae já estudados. “Essa depressão existe de diferentes maneiras em diferentes espécies. No caso do Kaiju, ela é extremamente profunda e apresenta uma crista muito bem marcada”, conta Felipe Montefeltro, orientador da pesquisa e docente do Departamento de Biologia e Zootecnia da Unesp, campus Ilha Solteira.
Reconstruindo um fóssil
A pesquisa em paleontologia apresenta algumas dificuldades intrínsecas. Os fósseis, além de escassos, muitas vezes são encontrados de forma fragmentada ou incompleta. É esse o caso do A. kaiju, único exemplar da sua espécie já encontrado. A equipe trabalhou apenas com 15 fragmentos fósseis, da região do crânio e da mandíbula do animal. Essa mudança metodológica foi marcante para Martins. Ele vinha de uma graduação em biologia, e estava acostumado a estudos que envolvem uma amostra grande de indivíduos. Situados no lado oposto do espectro, por assim dizer, os paleontólogos estão acostumados a trabalhar com um número mínimo de amostras, desde que estas sejam suficientes para transmitir características únicas do indivíduo estudado.
Para que um novo fóssil possa ser enquadrado em um determinado grupo, família ou espécie, é necessário proceder a comparações, buscando semelhanças e diferenças. Para fazer parte de um mesmo grupo, todos os animais devem compartilhar certas semelhanças morfológicas e de comportamento. Porém, essas características diferem levemente entre uma espécie e outra, o que indica quando os pesquisadores estão trabalhando com um indivíduo já conhecido ou com um novo espécime.
“O registro fóssil é falho de várias maneiras”, diz Montefeltro, mas nem sempre um esqueleto inteiro é pré-requisito para proceder aos estudos desses animais. “Se temos partes preservadas que mostram características anatômicas suficientes para diferenciar uma espécie de todas as outras já conhecidas, isso basta, mesmo que não se tenha a anatomia total do organismo”, diz. Felizmente, o grupo de pesquisadores,contou com a feliz coincidência de encontrar, justamente, as partes ósseas mais características na classificação dos Baurusuchidae.
Com os fósseis em mãos, o grupo iniciou um extenso trabalho de comparação, que abarcou tanto diferentes espécies de Baurusuchidae como também famílias e gêneros pertencentes ao grupo. Martins e Montefeltro destacam que uma das principais ferramentas nessa etapa é, justamente, a visão humana. “Sabendo da possibilidade de um novo táxon, é muito importante ir pessoalmente visitar museus e as coleções dos espécimes, para comparar diretamente com as amostras que são objeto de estudo”, diz o docente. Segundo Montefeltro, é nessa etapa, em que se pode mexer e contemplar as peças diretamente, que se dá a observação de todos os detalhes.
Tendo em mente essa necessidade, parte do estudo de mestrado de Martins envolveu a visitação a coleções de fósseis em Minas Gerais e São Paulo. Porém, esta etapa do trabalho foi afetada pela pandemia de Covid-19. Sem poder sair de casa, o então mestrando recorreu a outra ferramenta essencial da paleontologia: a leitura. “A reconstrução de um fóssil também é feita com muita leitura. A partir da literatura, você começa a entender características de cada parte, então, quanto mais se lê, mais se pode saber o que é cada ossículo e onde ele se encaixa no todo”, diz Martins.
“Nós notamos que o espécime apresentava características específicas do gênero Aphaurosuchus, como o formato do crânio e a depressão no osso frontal. Mas não era completamente similar. Isso indicou que se tratava de outra espécie”, diz Juan Vítor Ruiz, coautor do artigo e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da Unesp, campus São José do Rio Preto. Entre as principais diferenças apontadas pelas análises estão a depressão mais profunda, com a presença de uma crista no centro, e a existência de outra crista abaixo do osso da órbita – esta, uma característica inédita em animais desse tipo já conhecidos. O tamanho dos Baurusuchidae variava entre um e três metros de comprimento, porém, estudos para estimar o tamanho ou o peso do A. kaiju ainda não foram realizados.
O indivíduo recebeu o nome de Aphaurosuchus kaiju. “Kaiju” é uma palavra de origem japonesa, que significa “besta estranha”. Apesar de estar presente em antigas lendas nipônicas sobre monstros gigantes, o termo se tornou mundialmente conhecido a partir da popularização do personagem japonês Godzilla, que se encaixa na categoria dos “Kaijus”. “A tradução do nome significa algo como ‘’crocodilo gigante da mordida fraca’ ”, conta Martins. Ele conta que decidiu homenagear o lagarto gigante da cultura pop que deu origem ao seu interesse pela paleontologia quando ainda era criança. Já a primeira parte do nome “Aphaurosuchus”, referente ao gênero, foi cunhada em 2021 em outro trabalho do grupo de Montefeltro, no qual descreveram a espécie irmã Aphaurosuchus escharafacies.
A partir de análises biomecânicas o grupo descobriu que esses animais, apesar do crânio robusto e de serem grandes carnívoros, não tinham muita potência na mordida. “Acreditamos que ele apresentava certa semelhança, na forma como predava, com a forma de predação do Dragão de Cômodo. Ele dá mordidas que cortam a pele e deixam feridas que, com o passar do tempo, permitem que ele efetue a predação”, diz Montefeltro.
O grupo Baurusuchia no globo
Além da descrição da nova espécie, os pesquisadores também conduziram uma revisão da árvore filogenética dos Notosuchia. Este grande grupo abrange os Baurusuchia mas também outras espécies que, apesar de apresentarem anatomia semelhante, foram semiaquáticas, insetívoras e herbívoras, enquanto o animal estudado pelo grupo era exclusivamente terrestre e carnívoro.
“O Kawan fez uma das análises mais abrangentes desse grupo. Ele notou que alguns estudos incluíam um animal encontrado em Madagascar, e outros arrolavam um indivíduo escavado na Espanha. Mas os dois nunca apareciam juntos nas análises dos Baurusuchia”, explica Ruiz. Ele identifica aí uma das principais contribuições do trabalho, ao permitir repensar a distribuição geográfica e também histórica do grupo. “Nós colocamos as informações anatômicas de todos os animais em uma matriz de dados, que permitiu transformar esses dados em uma árvore filogenética. Nela, são explicitadas as relações evolutivas entre os diferentes indivíduos com um ancestral comum”, diz Ruiz.
Até então, acreditava-se que os Baurusuchia eram indivíduos endêmicos da América do Sul, com maior concentração no Brasil, e que existiram principalmente durante o Cretáceo. Ao considerar os trabalhos que tratavam dos indivíduos de Madagascar e da Espanha, a árvore gerada considerou os dois como pertencentes aos Baurusuchia. Essa perspectiva expandiu e complexificou a história do grupo. “O Notosuchia mais antigo que conhecemos é o Razanandrongobe sakalavae, encontrado em Madagascar. Ele existia durante o Jurássico, há mais ou menos 160 milhões de anos”, diz Ruiz. Juntamente com o Ogresuchus furatus, da Espanha, e o Pabwehshi pakistanensis, do Paquistão, estes seriam os primeiros Baurusuchia encontrados fora da América do Sul.
Montefeltro destaca que, apesar da surpresa dos resultados, considerar esses animais como parte do grupo Baurusuchia levanta questões interessantes sobre a paleogeografia desses indivíduos. “Isso indica que o grupo estava distribuído em todo o planeta e, com o passar do tempo, se concentrou principalmente na América do Sul”, diz. “Isso dá pistas para pensar as dinâmicas de evolução do grupo, com os animais mais dispersos geograficamente. Pode ser que tenham sofrido extinção em algumas regiões, especiação em outras e, durante o Cretáceo Superior, acabaram se tornando indivíduos típicos da América do Sul”, diz. Ele aponta também que as novas regiões nas quais se propõem que existiram espécies da família Baurusuchia também apresentam uma grande diversidade de dinossauros carnívoros. Isso diminui a possibilidade de que os crocodilos pré-históricos dominassem essas paisagens. Assim, mesmo considerando uma distribuição maior desses animais no globo, a Bacia Bauru segue mantendo a característica particular de ser o único lugar no mundo onde os crocodiliformes foram os predadores mais abundantes.
Imagem acima: paleoarte com a possível aparência do Aphaurosuchus kaiju. Crédito: Zeinner de Paula.