No dia 15 de fevereiro de 2022, o céu desabou sobre a cidade de Petrópolis, RJ. Entre 16h20 e 19h20, nuvens despejaram sobre a cidade 258 mm de chuvas, volume equivalente a toda a precipitação acumulada nos 30 dias anteriores. A ação das águas ensejou 269 deslizamentos de terra em diferentes áreas da cidade, que destruíram casas e soterraram moradores. Ao fim do dia, o balanço da Defesa Civil da cidade registrava milhares de desabrigados e 241 mortos. O evento foi classificado como a maior chuva a atingir a cidade desde 1932.
A tragédia em Petrópolis motivou uma investigação por professores do Programa de Pós-Graduação em Desastres Naturais (PPGDN). O PPGDN é fruto de associação entre o Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp de São José dos Campos e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão responsável por conduzir monitoramento e pesquisas sobre ameaças ambientais em território nacional. Toda a pesquisa foi organizada por Enner Alcântara, coordenador do programa de pós-graduação, e contou com a participação de outros 20 pesquisadores de áreas variadas de conhecimento. “Petrópolis tem um longo histórico de desastres relacionados a eventos extremos, com ocorrência de deslizamento de terra e alagamentos”, diz Alcântara. “Um estudo profundo do que desencadeou a chuva intensa e suas consequências é importante para subsidiar as melhores práticas em políticas públicas para que seja possível reduzir o risco de desastres.” Os resultados da investigação foram divulgados em artigo publicado na revista Natural Hazards and Earth System Science, ligada à União Europeia de Geociências.
Projeto multidisciplinar
Docente colaboradora da pós-graduação em desastres naturais e pesquisadora do Cemaden, Luciana Londe é uma das autoras do artigo. Ela destaca o caráter multidisciplinar no projeto. “O estudo dos desastres é multidisciplinar por excelência. Este, em particular, envolveu geólogos, hidrólogos, meteorologistas e físicos”, diz. Mas, além dessas ciências, também é preciso compreender como vivem as pessoas que integram aquele ambiente. “Essa é a minha especialidade, entender como ocorre a integração entre a sociedade e os riscos no local, que no caso é a cidade de Petrópolis”, diz ela.
Dentre as linhas de investigação adotadas, incluíram-se levantamentos sobre o clima e a intensidade das chuvas na região, estudos de topologia, para evidenciar elevações, deformações e estabilidade, e o mapeamento urbano, que exibiu a distribuição da população na área.
Londe, que é doutora em sensoriamento remoto, participou da compilação e análise de dados obtidos pela Defesa Civil de Petrópolis e pelos núcleos comunitários de proteção e defesa civil (NUPDEC), e do próprio Cemaden.
A Defesa Civil açambarca um conjunto de ações preventivas, envolvendo resgate, assistência e reconstrução, que visam evitar ou minimizar os efeitos dos desastres na população, e pode atuar antes, durante e depois das tragédias. Uma vez que sua ação tem como foco retenção e precaução, ela pode disponibilizar dados e registros de todas as ocorrências, e pode contribuir bastante para a análise dos eventos em Petrópolis.
Já os NUPDECS servem de elo entre a população e a Defesa Civil, porque são integrados por cidadãos comuns engajados em colaborar para ações preventivas em áreas de risco, além de orientar e prestar socorro imediato aos necessitados. Toda sua ação é estritamente voluntária. Para seu levantamento, Londe destacou a ação do NUPDEC Vale do Cuiabá, um dos bairros de Petrópolis, que monitora os riscos em quatro comunidades do município.
Por fim, há os dados que são estruturados pelo próprio Cemaden através de um método conhecido como definição de base territorial estatística de risco ( identificada pela sigla BATER). Luciana Londe explica como funciona a metodologia. “O censo, conduzido pelo IBGE, mapeia dados de domicílios os quais não podem ser divulgados, porque isso fere o compromisso de sigilo com a população. Para respeitar essa cláusula de sigilo, faz-se o agrupamento desses dados em setores censitários, que compõem um grupo de moradias. Mas esses setores não necessariamente se ligam com as áreas de risco, que é o objetivo do nosso levantamento. Então, por meio do método BATER, podemos desagregar os dados de cada setor e depois agrupá-los novamente, de acordo com a delimitação das áreas de risco”, diz. Uma vez que disponham dos resultados, os pesquisadores do Cemaden podem, entre outras coisas, analisar as condições de saneamento básico de cada região — um elemento agravante nos casos de desastres — e o perfil da população em risco. Graças a este conjunto heterogêneo de dados, foi possível montar o quebra-cabeças das circunstâncias que resultaram em aproximadamente 60 residências afetadas direta ou indiretamente pelos deslizamentos de terra, e na perda de centenas de vidas em poucas horas.
O estudo meteorológico abrangeu dados sobre a distribuição de chuvas nos meses de janeiro e fevereiro entre os anos de 1977 e 2022. A análise mostrou que o amontado de precipitação registrado em fevereiro do ano passado foi o segundo maior dos últimos 46 anos. Somente no dia da tragédia choveu cerca de 258 mm. Ao final do mês, o total registrado havia alcançado os 650 mm, um crescimento de mais de 180% em relação à a média esperada para o período, que era de 229 mm.
A influência do relevo
Mas apenas os dados da chuva não bastam para explicar. A análise topográfica do relevo revelou que, nas áreas de encostas que estavam voltadas para a face leste, o risco de desabamentos chegava a ser 30% maior. Já as que faceavam o oeste registraram apenas 1% de ocorrências. A explicação para tamanha diferença está na ação da maior exposição do solo destas áreas ao vento e ao sol, além de outras variáveis como o crescimento de vegetação, que é maior na região oeste. Além disso, as áreas com declividades entre 45° e 60°registraram aproximadamente 11% das ocorrências de deslizamentos de terra. As enchentes ocorreram principalmente devido ao alto volume de chuva em um curto período, com saturação do solo, aumentando o escoamento “A ocupação desordenada e em áreas de alta declividade torna Petrópolis vulnerável a novos desastres. Nas regiões com declividade acentuada, e com ocupação irregular, o escoamento derivado das chuvas apresentou grande força, o que aumentou o potencial de distribuição”, explica Alcântara.
O levantamento recuperou a ocorrência de 1161 desastres socioambientais no município de Petrópolis entre 1940 até 1990, incluindo deslizamentos de terra e de lama, rolamento de pedras e enchentes. “As ameaças naturais sempre existiram, estão presentes em todo o Sudeste brasileiro. A área serrana do Rio de Janeiro e o litoral norte de São Paulo são dois exemplos, mas em toda essa região de Mata Atlântica a ocorrência de deslizamentos é um processo natural, devido às características geográficas como a intensidade das chuvas e à morfologia dos morros. Mas o que pode tornar um evento desses um desastre é a presença de pessoas que podem ser afetadas” diz a pesquisadora.
Londe reforça que a ação humana também desempenha um importante papel no desfecho dos desastres ligados a ocorrência de chuvas e deslizamentos. “O evento natural é apenas um entre muitos fatores que determinam os riscos. Outros incluem, por exemplo, a vulnerabilidade da população que reside na região ameaçada e a capacidade de resposta. Sempre existe um componente social. Por isso, costumo usar o termo desastres socioambientais. Até porque o uso deste termo estabelece certas responsabilidades. Ou seja, existem instituições, gestores e grupo de pessoas que têm determinadas obrigações sobre a prevenção de cada desastre.”
É preciso melhorar o planejamento e a resposta
As questões ligadas à política habitacional, que empurram muitas pessoas para residir em áreas de risco, também são problemáticas. “Os interesses privados determinam tanto em quais áreas os condomínios de luxo serão erguidos quanto determina que outras regiões não são comercialmente interessantes. É para esses lados que a população pobre é empurrada. Existe um ordenamento urbano, só que não é o mais justo, adequado ou moral, socialmente falando.”
Alcântara considera que o estudo evidenciou que o poder público pouco fez para contribuir para a redução do risco de desastres em Petrópolis. “O estudo indicou, de forma clara, as principais fragilidades que tornaram a cidade vulnerável ao desastre”, diz.
Londe comenta que os estudos que o Cemanden conduz sobre essas tragédias podem ajudar a prevenir casos futuros, mas sozinhos não bastam. “Nossos conhecimentos técnicos estão muito desenvolvidos, mas ainda precisamos melhorar as políticas públicas. Principalmente, as relacionadas ao uso e ocupação do solo. Também é preciso aprimorar a comunicação de risco. No modelo atual, os alertas são gerados pelo Cemaden e comunicados ao Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Esse órgão atua em nível federal, e se comunica com as defesas civis municipais. A partir daí, cada prefeitura tem autonomia para tomar decisões. Mas, às vezes, há problemas nesse fluxo de comunicação, e o resultado é que a informação não chega à população ou é entregue tardiamente”, diz.
Alcântara pensa da mesma forma. “Existem evidências de que eventos extremos, como o ocorrido em Petrópolis, serão no futuro mais frequentes e de maior intensidade. É necessário que o poder público conduza planejamentos detalhados a fim de reduzir o risco de desastres. Isso pode ser feito pela utilização, a atualização ou a produção de mapas de risco, por ações que busquem evitar que construções sejam implementadas em áreas vulneráveis, que apresentem declividade acentuada, e pela redução da retirada de vegetação. Esse planejamento é urgente”, diz.
Créditos das fotos: Prefeitura de Maricá (fotos 1 e 3) e Márcio Roberto Magalhães de Andrade (foto 2).