Desde que os celulares passaram a dispor de boas câmeras, o ato de fotografar se tornou onipresente em nosso cotidiano. Registramos o congestionamento na estrada, o prato do almoço, o look do dia, a pose engraçada do bicho de estimação… A esses flagrantes da vida doméstica somam-se os registros de ocasiões mais tradicionais, como reuniões de família, festas de aniversário, casamentos e confraternizações em geral.
Todo esse dilúvio de imagens é salvo no cartão de memória do celular e, de lá, vai para a nuvem ou, eventualmente, para uma pasta do computador. Os mais cuidadosos talvez façam cópias em um HD externo, torcendo para que o disco nunca deixe de funcionar. Mas, quando o material fica disperso entre as pastas na nuvem, as pastas do computador e as pastas do HD, fica difícil encontrar qualquer coisa. Faça o teste: abra seus arquivos e tente encontrar a imagem do momento aniversário de cinco anos da sua sobrinha, por exemplo. Difícil, não é mesmo?
E mesmo no âmbito das empresas e instituições, que em geral recorrem a profissionais para fazer as fotos, editá-las e submetê-las a tratamento, é possível que, se não forem adotados processos de preservação digital, simplesmente se perca o rastro do material em meio ao limbo informacional. Esses processos vão muito além do mero backup, pois exigem que equipes formadas por profissionais de diversas áreas do conhecimento pensem e desenvolvam as melhores estratégias para garantir o acesso, a integridade e a autenticidade das fotografias por um longo tempo futuro.
“Normalmente, quando se trata da fotografia digital, não há muito cuidado com a preservação. As fotografias particulares são colocadas em pastinhas e só, parece que as pessoas não pensam que, futuramente, terão de encontrar esses arquivos. Depois, para localizá-las novamente, as pessoas recorrem não ao computador, mas à nossa memória”, reflete Telma Madio, docente no Departamento de Ciência da Informação (DCI) da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, em Marília.
Um dos fatores que dificultam e muito a busca por fotos nos arquivos caseiros é que, diferentemente do que ocorre com os documentos, não é possível encontrar a resposta certa recorrendo à busca por palavras. Para Telma, que é docente do Departamento de Ciência da Informação da FFC e integrante da Comissão Permanente de Preservação Digital (CPPD) da Unesp, a solução passa justamente por passar a tratar as fotografias como documentos de arquivo. “É preciso que haja esse cuidado com a identificação desse documento, tanto quanto nos preocupamos com a preservação digital. Porque, no ambiente digital, se não houver esse cuidado, perde-se tudo”, diz ela.
A fim de implementar as diretrizes da Política de preservação digital para documentos de arquivo da Unesp nos acervos fotográficos da universidade, Telma Madio está coordenando um projeto piloto para criar um repositório digital a partir das fotografias do acervo da Assessoria de Comunicação e Imprensa (ACI) da Unesp. No conjunto estão armazenadas fotos que remontam ao ano de 1976, quando ocorreu a fundação da Unesp, e perpassam toda a trajetória do Jornal da Unesp, que foi lançado em 1985.
Martha Martins de Morais, que é gerente de projetos e de redes sociais da ACI, conta que quando a atual gestão assumiu a ACI, em 2021, procurou fazer um diagnóstico do material fotográfico acumulado. Foram identificadas 400 caixas do tipo arquivo guardadas no Departamento de Ciência da Informação (DCI). O material havia sido encaminhado para receber tratamento arquivístico anos atrás, mas o processo não foi concluído. “Considerando a importância da preservação e do acesso ao material para a ACI e para a comunidade unespiana, propusemos à professora Telma uma parceria para dar continuidade ao tratamento do acervo”, diz Martha. Pela parceria, a ACI custeia a contratação de cinco alunos de graduação e um de pós-graduação que executam o tratamento do material sob a supervisão da docente. As atividades incluem identificação, classificação, ordenação, seleção, notação e acondicionamento das fotos, além de sua digitalização. O trabalho teve início em 2022 e deve durar dois anos. Ao fim, o acervo tratado será retornado para a ACI, que fica na sede da reitoria, em São Paulo.
O novo repositório fotográfico poderá ser livremente acessado por meio de uma plataforma online que será disponibilizada futuramente. A busca na plataforma será facilitada pela catalogação detalhada das imagens. Os usuários da plataforma poderão, ainda, baixar as imagens em baixa resolução, para utilização não comercial. As cópias em alta resolução serão mantidas em um ambiente de preservação digital nos servidores da Unesp.
A foto como documento histórico
A estratégia adotada pelo grupo de Telma Madio na preservação digital das fotos da Unesp começa com o entendimento de que, além de serem consideradas objetos digitais, as imagens precisam ser vistas como documentos de arquivo.
Para o campo da preservação digital, objeto digital é qualquer material digital que contenha informação. No contexto da Unesp, isso inclui materiais didáticos, registros de videoconferências, revistas eletrônicas, teses e dissertações, hotsites de eventos, processos, ofícios, diplomas, e-mails, páginas Web, programas da TV Unesp, podcasts e notícias produzidos todos os dias, além dos acervos digitais de museus e centros de documentação, por exemplo. Já para a arquivologia, o documento de arquivo é um documento produzido e conservado com objetivos funcionais, que são determinados pelas intenções da instituição. Os documentos são tratados em conjuntos que contribuirão para a constituição da memória institucional.
É comum pensar texto e imagem como entes fundamentalmente diferentes. Afinal, um segue a linguagem das palavras e a outra dispõe as informações de maneira distinta, às vezes mais sutil. Porém, dentro de um arquivo, uma fotografia apresenta valor igual ao de um ofício, por exemplo, pois ambos são documentos. “Embora a fotografia seja um suporte de outro tipo, tem o mesmo valor de um documento textual. Ela tem um caráter de documento de arquivo, documento histórico, que para a memória da Unesp é muito importante”, diz Madio.
A finalidade do tratamento arquivístico é promover a sua acessibilidade e reportar ao usuário toda a informação que um documento contém. Para o caso das fotografias digitais e digitalizadas, isso significa que o arquivo precisa ser descrito em metadados – “etiquetas” que permitem recuperar a informação contida nele. No projeto piloto liderado por Telma Madio, cada foto precisa ser descrita por meio do preenchimento de 28 campos com dados sobre seu contexto de produção, que incluem a origem e o propósito da foto, a autoria e o suporte original, além de informes técnicos sobre os equipamentos usados na produção e na conversão da imagem. Também é preciso registrar se as fotos foram feitas por meio de contratos com a Unesp ou se foram doações ao acervo, e, no caso das fotografias analógicas, identificar as matrizes (os cromos, negativos e positivos) correspondentes.
Outro ponto importante diz respeito à seleção do que deve ser preservado. No caso das fotografias, os critérios adotados variam, abarcando desde aspectos contextuais do material até questões técnicas, como problemas de foco, cortes inadequados e apresentação de cenas repetidas ou muito parecidas. As decisões do que deve ser mantido ou descartado têm sempre de passar pela avaliação da Comissão de Avaliação de Documentos e Acesso da Unesp e se justificam tanto por critérios relativos à intencionalidade do material institucional quanto por critérios de acesso.
“Não adianta guardar todas as fotografias, não é possível trabalhar com esse montante de imagens produzidas. No tempo em que havia apenas máquinas analógicas, quando um fotógrafo saía para fazer um registro levava dois, três rolos de filmes. E cada rolo permitia que se registrasse 36 imagens. Não há condições de guardar tanto material. Senão, acabamos nos perdendo e não trabalhando nada”, diz.
Soluções tecnológicas para os dilemas do digital
A preservação digital tem por objetivo garantir que os arquivos digitais possam ser acessados por qualquer pessoa, hoje e no futuro, mesmo que as tecnologias então utilizadas não sejam as mesmas existentes à época em que o arquivo foi criado – sempre garantindo que o material de fato corresponde ao que é apresentado em sua descrição, e que não foram feitas alterações em seu conteúdo. Alcançar esse objetivo envolve uma série de processos técnicos e de gestão, entre os quais eventuais migrações de suporte e de formato.
Na fotografia, mudanças relevantes de formato já aconteceram em função das tecnologias disponíveis. Telma Madio diz que, no passado, era comum que o processo profissional de digitalização de imagens incluísse salvá-las como arquivos do tipo TIFF. Criado nos anos 1980 para uso na editoração de publicações impressas, esse tipo de arquivo permite salvar imagens de alta qualidade sem perder informações visuais devido à compactação.
O problema é que os arquivos TIFF ocupam muito espaço de armazenamento. Com a enorme proliferação da fotografia digital, ficou evidente que seria proibitivo salvar como arquivos TIFF todas as fotos que se queria preservar. A solução atual é migrar as imagens para o formato PNG, que é compatível com 16 milhões de cores e não perde informação durante a compactação, gerando arquivos menores do que aqueles salvos como TIFF. Contudo, esse formato ainda não é o que estará disponível em acesso livre para download no novo repositório. Lá, as imagens disponibilizadas para download estarão em JPG, formato mais compacto, para garantir a agilidade da pesquisa na plataforma.
“É importante dizer que a digitalização não é ‘a solução’ para a organização dos acervos e sim uma das etapas que um tratamento técnico prevê”, diz Martha de Morais. “É muito comum que diante de um acervo de fotografias analógicas desorganizado, muita gente ingenuamente considere que se procedida a digitalização, a organização e o acesso aconteçam quase ‘magicamente’. Mas, o que acontece muitas vezes é a digitalização da bagunça”, diz. Ela explica que a digitalização cumpre duas funções: conectar as fotografias acondicionadas em centenas de caixas ao usuário e assegurar a preservação das informações em outro suporte, contribuindo para a preservação da história institucional.
Na avaliação de Telma Madio, o esforço para preservar os acervos de fotografia em um mundo onde as tecnologias rapidamente caem em obsolescência trará benefícios para a sociedade, por assegurar um tratamento técnico-arquivístico a um tipo de documento que normalmente é deixado de lado. “(O projeto) vai preservar a memória da Unesp, não apenas pela fotografia em si, mas pelo registro de todas essas atividades que a Unesp efetuou ao longo desses anos todos. E vai possibilitar que pessoas de vários estados, do mundo, tenham acesso aos documentos de uma forma identificada, processada, com todas as informações garantidas e disponíveis”, diz.
Martha de Morais aponta como outros benefícios a valorização da atividade dos profissionais de arquivologia e um efeito pedagógico, no sentido de apresentar para o público unespiano os benefícios que esse trabalho proporciona aos usuários. “Procure no seu HD por fotos tiradas durante sua última viagem antes da pandemia. Você consegue fazer essa pesquisa por tema, por data, por local, por nome, pelo fotógrafo, por uma palavra-chave? Não. Mas após o tratamento arquivístico, isso é possível”, enfatiza. Também há a expectativa de que o projeto possa estimular outras unidades da universidade a incluir suas próprias fotos no novo repositório, desde que esse material também seja submetido a um tratamento profissional e técnico.