Sistema de previsão de enchentes desenvolvido na Faculdade de Ciências de Bauru vai ajudar no monitoramento de riscos

Estudo usa dados de radar atmosférico e modelagem do solo para estimar a probabilidade de que chuvas resultem em inundações na cidade de Lençóis Paulista. Nova ferramenta será disponibilizada online para a população a partir de 2026.

Na madrugada entre os dias 12 e 13 de janeiro de 2016, no centro do estado de São Paulo, um temporal de 213 mm rompeu dezesseis represas ao longo do Rio Lençóis e seus tributários, desencadeando uma enxurrada que alagou a cidade de Lençóis Paulista. Em bairros como Vila Contente e Vila Baccili, mais próximos da várzea, a inundação atingiu três metros de altura; casas térreas ficaram submersas até o telhado. O saldo da tragédia foi dois mortos, 997 desabrigados e R$ 26 milhões em prejuízo.

Esse foi apenas um dentre nove alagamentos notáveis que atingiram os 80 mil habitantes de Lençóis Paulista nos últimos dez anos. Para lidar com o problema — que tende a piorar nas próximas décadas, conforme o aquecimento global aumenta a frequência e intensidade de eventos climáticos extremos —, uma das providências da prefeitura foi buscar ajuda do Instituto de Pesquisas Meteorológicas (IPMet) da Unesp, no município de Bauru, a 40 km de distância.

O professor Demerval Moreira, docente do Departamento de Física e Meteorologia da Faculdade de Ciências da Unesp, do câmpus de Bauru, e colaborador do IPMet por anos, atendeu ao pedido. Ele convidou sua então aluna de graduação em meteorologia na mesma faculdade, Thaísa Giovana Lopes, para um projeto de iniciação científica: criar um índice de probabilidade de inundação (Flood Probability Index, ou FPI, em inglês) capaz de prever o risco de enchentes em Lençóis usando apenas os dados de chuva coletados pelo radar meteorológico de Bauru.

Deu certo: dez anos após a tragédia, o sistema de alerta estará disponível online para a população a partir do verão de 2026, e o artigo científico sobre o trabalho foi publicado em maio no periódico especializado Atmosphere.

Trunfo do FPI é ser eficaz mesmo baseando-se em poucos dados

O radar meteorológico é capaz de detectar chuvas porque emite ondas eletromagnéticas que colidem com as gotas d’água na atmosfera e são refletidas de volta em direção ao aparelho — exatamente como ocorre com a detecção de um avião ou helicóptero. Como a velocidade da luz é fixa, o tempo transcorrido entre a emissão e o retorno das ondas permite determinar a distância da chuva detectada. Esse é um método particularmente útil em regiões onde não há uma rede robusta de pluviômetros para registrar o volume de precipitação, como é o caso de Lençóis Paulista. Manter esses equipamentos é caro e complexo.

O risco de enchentes depende não apenas da quantidade de chuvas, mas também da capacidade do solo de absorvê-la. Superfícies impermeáveis, como asfalto e concreto, naturalmente, são péssimas no quesito infiltração, motivo pelo qual zonas urbanas sempre inundam com mais frequência e mais rapidamente, em especial em áreas construídas sobre rios e córregos canalizados. Mas mesmo uma área rural pode alagar: basta que o solo atinja seu limite de saturação e não consiga mais armazenar água em seu interior.

“Às vezes cai uma chuva adoidada, mas a inundação não acontece porque o solo está seco”, explica o professor. “Mas há ocasiões em que até uma chuva mais fraca acaba inundando porque o solo já acumulava umidade desde outros dias.” Seria difícil monitorar a presença de água no solo ao longo de toda a área de uma bacia hidrográfica, considerando que cada tipo de solo presente em uma região absorverá água em um ritmo diferente, e que é preciso ter dados sobre umidade em várias profundidades: quanto mais profunda for uma camada, menos as condições climáticas na superfície a afetam.

Por isso, Moreira simula as condições do solo paulista desde 2016 usando um software chamado Jules — sigla de Joint UK Land Environment Simulator —, desenvolvido na Inglaterra e disponibilizado gratuitamente para uso não comercial. Esse programa se alimenta de dados sobre temperatura, chuva e ventos disponíveis em tempo real para determinar a absorção e evaporação de água conforme as características do solo local, sem que seja preciso instalar uma rede de equipamentos de medição.

“Nosso trabalho é inovador porque usa dois dados de que dispomos efetivamente, que são o radar e a modelagem do solo”, diz Moreira. “Não temos muitas medidas feitas in situ. Procuramos, mas não havia nenhum pluviômetro nessa bacia [bacia hidrográfica do Rio Lençóis].” Outros índices de previsão de enchentes já nascem mais sofisticados justamente porque contam com essa vantagem: “Também desenvolvo um projeto para estudar a inundação em São Carlos. Lá, porém, existem pluviômetros instalados na cidade inteira. Isso vai facilitar. Em Lençóis isso não existe, mas mesmo assim alcançamos um bom resultado”, conta Moreira.

Índice representa risco como número entre 0 e 1

O índice criado pelo docente e a estudante trabalha com os dados de precipitação coletados pelo radar, calcula as interações entre o solo e a água da chuva usando o software Jules e então fornece um número de zero a um. Resultados mais próximos de um indicam maior probabilidade de alagamento. Durante o inverno, que é a estação seca em São Paulo, o FPI costuma ficar ao redor de 0,2. Já no verão, com chuvas frequentes, espera-se algo como 0,7. “Houve só um caso que atingiu a pontuação máxima: a chuva de 2016, que foi, justamente, a maior enchente que ocorreu em Lençóis Paulista”, diz Thaísa em referência à tragédia de 12 de janeiro.

A tabela abaixo mostra o FPI nos dias em que ocorreram os nove alagamentos considerados no estudo. Valores acima de 0,736, obtidos para cinco dentre as oito ocorrências, são considerados de risco “alto” ou “muito alto”. Naturalmente, essas são contas retroativas: Thaísa e Moreira usam os dados de radar meteorológico colhidos em cada uma dessas datas e aplicam o software de modelagem do solo para descobrir como o índice teria se comportado caso já estivesse disponível à época dos acontecimentos.

A tabela abaixo, por sua vez, compara os índices obtidos nas nove enchentes analisadas com os índices gerados por milhares de outras situações comuns, quando não houve inundações. Note que, na maior parte do tempo, o FPI permanece no patamar considerado baixo (70% dos casos analisados) ou moderado (25% dos casos). A calibração do modelo depende justamente da comparação entre as condições do solo em dias em que houve e não houve um alagamento.

O índice não é infalível: três ocorrências reais de inundação atingiram apenas o nível “moderado” no FPI. Mas sua eficácia tem se mostrado expressiva, especialmente considerando as limitações de acesso a equipamentos meteorológicos em Lençóis Paulista.

É possível aplicar a técnica com apenas dois sensores (microfones) na superfície ou aumentar o número para seis ou oito. Do mesmo jeito que um celular calcula sua posição no espaço com base no tempo que os sinais de cada satélite de GPS demoram para alcançá-lo, os microfones captam o som do vazamento com diferentes intensidades conforme a distância do buraco no cano, o que permite calcular sua localização exata.

Outra dificuldade enfrentada pelo sistema envolve as inciativas das autoridades em busca de soluções. Estas, muitas vezes, são bem-sucedidas em atenuar, aos poucos, o problema das inundações. Esses pequenos sucessos afetam a calibração do índice.

Por exemplo: obras recentes de ampliação de represas na região aumentaram a capacidade de retenção de água da bacia hidrográfica de 1,1 milhão para 1,3 milhões m³. Com esse aperfeiçoamento, a quantidade de chuva necessária para causar um alagamento se torna maior. Isso pode explicar por que, embora Lençóis Paulista tenha registrado FPIs de 0,85 em algumas ocasiões nos anos de 2021 e 2024, não houve inundações.

“É um produto que contribui para a população, que é frequentemente afetada pelas inundações”, diz Thaísa, que concluiu a graduação e agora cursa o mestrado no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). “Mas o trabalho de desenvolvimento do modelo também trouxe ganho de conhecimento para nós, pesquisadores.”

Imagem acima: visão do rio Lençóis. Crédito:  Katia Sartori/ Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0 International.