Diante de uma criança que experimenta um engasgo ou mesmo uma parada cardiorrespiratória, pais e responsáveis são desafiados a responder rapidamente. Mas, será que saberiam exatamente o que fazer? Desde 2018, um projeto de extensão da Faculdade de Medicina em Botucatu treina professores e funcionários de escolas públicas da cidade para responder a essas situações de emergência com precisão. Em 2024 o número de profissionais treinados foi de 1.100, e em 2025, 900. A ação foi premiada em novembro deste ano no congresso anual da American Heart Associantion (AHA), entidade que define os protocolos a serem seguidos mundialmente em situações de parada cardiorrespiratória dentro e fora de hospitais.
Inicialmente intitulado “Suporte Básico de Vida na Comunidade”, o projeto estabeleceu uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Botucatu. Há três anos, o nome foi atualizado: “Suporte Básico de Vida e Lei Lucas na Comunidade”, justamente para atender à Lei n.º 13.722/2018, conhecida como Lei Lucas, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de primeiros socorros de professores e funcionários de escolas e creches, públicas e privadas, em todo o Brasil. Ela foi sancionada após a morte de Lucas Begalli Zamora de Souza, em setembro de 2017. Na época com 10 anos, o garoto morreu engasgado em uma excursão escolar em Cordeirópolis, no interior de São Paulo.
Atualmente, 100 alunos voluntários dos cursos de medicina, enfermagem, física médica e biomedicina integram o projeto. Todos passaram por treinamento teórico e prático. Eles são divididos em grupos de 6 a 8 integrantes, liderados por um aluno coordenador e um professor. Cada grupo oferece capacitação em uma escola diferente. De acordo com a docente coordenadora do projeto, a médica Joelma Gonçalves Martin, do Departamento de Pediatria, “entre 2023 e 2025, todos os funcionários das escolas de ensino fundamental de Botucatu receberam treinamento anualmente. Alguns profissionais estão recebendo o treinamento pela segunda vez, ou terceira. Montei um verdadeiro exército”, diz ela.
O treinamento oferecido atualmente às escolas é ministrado durante o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, o HTPC, e segue as orientações preconizadas pela AHA. Grupos de 25 profissionais recebem duas horas de exposição teórica e na sequência ocorre o treino prático das manobras de ressuscitação cardiopulmonar e desengasgo com bonecos. Embora a capacitação seja oferecida nos horários de fim do expediente, a adesão da comunidade escolar é grande.
“Quando a gente chega, invariavelmente, vê semblantes cansados. Mas é só começar as aulas que os alunos gostam muito de pôr a mão na massa, perder um pouco do medo de fazer uma massagem cardíaca ou desengasgar uma pessoa”, conta Martin.
Nessas oficinas os alunos também compartilham vivências e depoimentos. “Nós tivemos uma professora que foi para um sítio e lá a criança dela foi encontrada boiando em um tanque de tilápia. A professora fez as manobras que nós ensinamos e a criança, em parada cardiorrespiratória, sobreviveu. Em cada escola, quando a gente volta, há pelo menos um depoimento de alguém que usou o que aprendeu em alguma situação, ou com algum aluno. Podemos ver que estamos impactando a nossa comunidade”, diz a coordenadora do projeto.
As aulas teóricas, preparadas pelos alunos de graduação, são pensadas para promover a interação com os profissionais que estão sendo capacitados. Os graduandos também conduzem, junto com os professores, o treino das manobras. E todas as atividades são realizadas fora dos horários de aula na universidade, o que exige dedicação.
Martin destaca o comprometimento do grupo com a preparação e ministração do treinamento. “Os alunos ficam muito encantados com o interesse das pessoas em aprender. E relatam que saem da universidade com a experiência de ter modificado um cenário na comunidade”, diz.
Após a capacitação, os participantes são submetidos a uma prova que analisa a retenção do conhecimento e oferece parâmetros para a continuidade do trabalho. “Até este momento, temos provado que o treinamento anual, com os alunos usando uma linguagem informal para ensinar, junto com a parte prática, tem contribuído para que esse conhecimento se mantenha forte até um ano depois do aprendizado”.
Cada unidade que passa pelo treinamento recebe uma certificação de escola segura, atendendo ao que é estabelecido pela lei federal. No entanto, a coordenadora do projeto reforça a necessidade de ampliar a divulgação da lei e a cobrança de sua aplicação. “Muitas famílias desconhecem essa obrigatoriedade, senão estariam se mobilizando para cobrar as escolas que não passam pela capacitação”, diz.
Além da atuação nas escolas, desde 2017 o projeto também promove um evento destinado à comunidade em um shopping center de Botucatu. Uma vez ao ano, os integrantes se reúnem e ficam um dia todo à disposição dos munícipes para esclarecer dúvidas e ensinar as manobras de desengasgo e massagem cardíaca. O grupo também deu início, recentemente, a um projeto piloto com adolescentes. “A American Heart Association prevê que, a partir de 10 anos, já é possível iniciar os treinamentos. E nós nos surpreendemos muito, primeiramente, com a vontade deles de aprender. E, depois, com o nível de conhecimento, porque eles já vinham com dúvidas”, finaliza Martin.
Reconhecimento internacional
A American Heart Association realiza, anualmente, um congresso para apresentar o que há de mais recente em pesquisas na área de cardiologia. Como parte do evento, o Prêmio Internacional Paul Dudley White reconhece a equipe de autores com o resumo científico de maior destaque dos países participantes em cada encontro científico da associação. Paul Dudley White foi um dos fundadores da AHA e um defensor da saúde cardiovascular, com destaque nas ações de prevenção.
Na edição deste ano, os resultados do projeto de extensão “Suporte Básico de Vida e Lei Lucas na Comunidade” referentes ao ano de 2024 foram reunidos e submetidos ao evento no resumo científico “Knowledge retention and safety in decision-making in basic life support maneuvers by professionals in public elementary education after training conducted by academics in the health field” (Retenção de conhecimento e segurança na tomada de decisões em manobras básicas de suporte à vida por profissionais da educação básica pública após treinamento conduzido por acadêmicos da área da saúde). Ele foi o representante brasileiro vencedor do Simpósio de Ciência da Ressuscitação.
“O prêmio é destinado a trabalhos que visem, realmente, a prevenção da mortalidade, das sequelas da parada cardiorrespiratória. E é muito gratificante porque ele foi selecionado pelo impacto na comunidade. Agora, a gente tem uma certificação de reconhecimento mundial e o trabalho publicado na revista científica Circulation, que é a mais importante em ressuscitação cardiopulmonar. Então, além de levar o nome da Unesp, é um feedback para os alunos de que o trabalho valeu a pena”, comemora Martin.
Para a docente, a premiação também reforça a robustez da metodologia proposta e a possibilidade de replicação em outras cidades. “Foi factível, houve uma boa adesão e a gente percebeu que a retenção de conhecimento é boa. Então, a combinação de teoria interativa em aulas dinâmicas, prática em bonecos e avaliação posterior é a melhor estratégia, dentre as diversas que a literatura apresenta. Eu, inclusive, já estou com uma parceria com uma docente da Universidade Federal do Pará que vai começar a treinar professores paraenses com essa estrutura que nós montamos”, esclarece.
Atualização das manobras de desengasgo
Em outubro deste ano, a American Heart Association (AHA) atualizou as orientações sobre a forma de agir em casos de engasgo com obstrução das vias aéreas tanto em bebês e crianças, quanto em adultos conscientes. Elas foram publicadas na revista científica Circulation. Com isso, a partir do ano que vem, os treinamentos oferecidos pelo projeto de extensão já irão incluir as manobras novas.
Para desengasgar bebês menores de um ano, deve-se alternar cinco golpes nas costas com a mão espalmada e cinco compressões no peito usando a base da palma da mão. Os movimentos devem seguir até que o corpo estranho seja expelido ou o bebê desmaie. Nesse caso, a massagem cardíaca deve ser iniciada, com compressões no peito feitas com os dois polegares ou a base da palma da mão.
Em crianças acima de um ano e adultos, a indicação é alternar cinco golpes nas costas e cinco golpes abdominais, conhecidos como manobra de Heimlich. Nessa manobra, com a vítima posicionada de costas e levemente inclinada para frente, deve-se colocar um punho fechado acima do umbigo e abaixo do osso do peito. Com a outra mão, segurando-o, são feitos movimentos de compressão para dentro e para cima. Os movimentos alternados devem ser mantidos até o corpo estranho ser removido ou a vítima perder a consciência. No último caso, a massagem cardíaca também deve ser iniciada.
Junto com as manobras, sempre é importante entrar em contato com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU (192).
Imagem acima: oficina do projeto “Suporte Básico de Vida e Lei Lucas na Comunidade
