Pesquisa mapeia 14,3 mil observações de felinos para entender suas interações com humanos

Expansão da atividade econômica no campo afeta diversos biomas, do Cerrado à Amazônia, resultando em paisagens mais fragmentadas, mas os efeitos dessas mudanças sobre grandes gatos selvagens ainda são pouco conhecidos. Estudiosos alertam para dificuldades de convivência entre fazendeiros e animais, que frequentemente descambam para violência.

Os felinos carnívoros de grande porte do Brasil, como onças-pintadas, suçuaranas e jaguatiricas, dependem, para sobreviver, do acesso a áreas naturais preservadas e extensas, nas quais possam dar vazão aos seus instintos de caça. Porém, a expansão da atividade agropecuária em nosso país vem resultando em paisagens naturais cada vez mais fragmentadas, transformando a realidade de biomas como o Cerrado, a Amazônia e o Pantanal. O resultado é uma piora nas condições necessárias para a existência desses animais. Apenas no caso das onças-pintadas, a ONG Global Witness estima que, nos estados do Pará e do Mato Grosso, já foram desmatados 27 milhões de hectares de seu habitat original, uma área maior que o Reino Unido.

Preocupados com as perspectivas de sobrevivência dos grandes felinos no país, um grupo de pesquisadores da Unesp e de outras universidades brasileiras analisou o comportamento de nove espécies, procurando diferenciar aquelas que limitam suas andanças às áreas de habitat selvagem das que costumam ser flagradas circulando perto de estradas, propriedades rurais e outros locais potencialmente perigosos.

No total, foram analisados os dados de cerca de 14,3 mil episódios de avistamento de felinos selvagens, incluindo as coordenadas geográficas onde foram relatados. O objetivo do levantamento é permitir a elaboração de estratégias de conservação mais adequadas a cada espécie, de acordo com seu estilo de vida. Os resultados foram apresentados em um artigo publicado no periódico especializado Biological Conservation.

Em circunstâncias normais, os carnívoros preferem manter sua dieta típica, alimentando-se de presas como capivaras e jacarés na mata nativa. Mas, quando as presas comuns se tornam escassas — devido a secas, caça ilegal, destruição dos habitats por mineração e hidrelétricas ou outras razões —, alguns felinos avançam sobre fazendas atrás de bezerros e galinheiros, e acabam feridos em confrontos com cães de guarda e humanos armados. Por isso, a escassez de trechos contínuos de mata nativa é um dos principais obstáculos à conservação de felinos no Brasil.

Vanesa Bejarano Alegre, que acaba de terminar seu doutorado pelo programa de Ecologia, Evolução e Biodiversidade no Instituto de Biociências (IB) da Unesp, câmpus de Rio Claro, é autora principal do trabalho, fruto de sua colaboração com o Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação (LEEC). Ela explica que análises estatísticas abrangentes como essas são importantes para sistematizar e complementar as observações feitas pelos biólogos de campo. Esses conhecem bem os animais que vivem nas regiões em que conduzem seus estudos, mas não necessariamente conseguem ter a visão do todo e identificar lacunas na literatura disponível.

A lista de avistamentos utilizada no estudo, obtida a partir de várias bases de dados públicas, foi construída a partir de recursos como câmeras fotográficas automáticas (camera traps) camufladas na mata para estudar e recensear os bichos. O mapa de usos do solo do Brasil, que mostra quais trechos do país são cobertos por agropecuária, mata nativa, cidades etc., foi fornecido pela rede MapBiomas.

Cada felino tem seu estilo

Como hipótese para nortear o estudo, Bejarano e seus colegas propuseram a divisão das nove espécies de felinos brasileiros em três categorias ecológicas. São elas: os generalistas, que teriam grande tendência a frequentar locais modificados pelo ser humano; os especialistas flexíveis, que toleram ambientes antrópicos, mas preferem habitats naturais; e os especialistas estritos, que são os mais seletivos, permanecem na mata fechada e evitam se aventurar entre nós. “Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a propor e avaliar uma classificação das espécies de felinos brasileiros baseada em traços ecológicos e na plasticidade dos habitats”, escreveram os autores.

As análises das 14,3 mil observações de felinos reais buscaram então elementos para corroborar, refutar ou corrigir essa classificação teórica em três categorias. Em linhas gerais, os resultados coincidiram, mas alguns casos particulares desafiaram as expectativas.

Um deles foi a categoria dos generalistas, composta pela onça-parda (Puma concolor), o jaguarundi (Herpailurus yagouaroundi) e o gato-do-mato-grande (Leopardus geoffroyi, que, apesar do nome, pesa apenas 4 kg).

As observações sobre a onça-parda confirmaram as hipóteses dos autores, aparecendo com frequência nas cercanias de pastos e plantações. O jaguarundi, por sua vez, parece tão aberto a novas paisagens que apresentou uma peculiar aversão à mata fechada: foi mais comum encontrá-lo próximo de regiões agrícolas. Porém, o gato-do-mato-grande é tão tímido que sequer parece um generalista. Raramente foi avistado próximo a fazendas, o que pôs uma pulga atrás da orelha dos pesquisadores sobre a precisão da literatura preexistente sobre esse animal. “Se você me perguntasse se eu consideraria o gato-do-mato-grande um generalista, diria que não”, diz Bejarano.

Outras espécies se mostraram mais de acordo com o esperado. Especialistas flexíveis, como Panthera onca e Leopardus pardalis, evitam estradas, mas utilizam paisagens naturais heterogêneas. Já aqueles classificados como especialistas estritamente florestais (L. wiedii, L. guttulus e L. tigrinus) mostraram uma elevada dependência da cobertura florestal, e geralmente evitam habitats abertos. Chamou a atenção o fato de que os efeitos da proximidade de estradas variavam de acordo com cada espécie, e nem sempre se alinharam com a classificação ecológica proposta pelos autores.

“Comprovamos a hipótese, mas com exceções. Sempre há exceções”, diz Bejarano. A pesquisadora pondera, porém, que as conclusões do estudo podem refletir a escassez ou os vieses presentes em dados públicos sobre determinadas espécies, e não o comportamento real dos animais analisados.

A convivência é difícil, mas está melhorando

Raíssa Sepúlveda Alves, mestre pelo Instituto de Biociências (IB) da Unesp de Rio Claro, bióloga de campo da ONG Panthera Brasil e coautora do artigo com Bejarano, conta que os conflitos entre humanos e onças já foram piores. “Há uns quinze anos, era bem mais complicado. Mesmo nos casos em que o gado morria por outra causa, a onça era sempre considerada culpada, e as pessoas retaliavam”, diz. “Por isso, a Panthera criou manuais com técnicas de manejo que evitam a predação.”

Além de medidas de segurança básicas e relativamente fáceis de implantar em curto prazo, como recolher o gado para currais distantes da mata durante a noite, instalar cercas elétricas e deixar os bezerros em instalações protegidas, a iniciativa de promover novas frentes de atividade econômica, para além da pecuária, ajuda a estreitar os laços entre a população e a fauna.

“O turismo de observação de onça vem se desenvolvendo paralelamente na região de Porto Jofre, às margens do Rio Cuiabá”, diz Sepúlveda. “As pessoas perceberam que podiam ganhar dinheiro com os animais, e as onças passaram a valer mais vivas do que mortas. Elas deixaram de ser vilãs para muita gente. E a Panthera sempre atuou ali em colaboração, divulgando e incentivando boas práticas de observação.”

Bejarano explica que cada grupamento humano lida de uma forma com a presença de grandes felinos. “As comunidades têm perspectivas diferentes sobre a natureza. Algumas matam por matar, outras não. Não há uma fórmula secreta para tudo. O Brasil é tão enorme, é um continente. Imagine quantas pessoas, mentalidades, pensamentos existem. Esse, eu acho, é o maior desafio na preservação de grandes carnívoros.”

Além da convivência complicada com o Homo sapiens, Bejarano conta que as próprias táticas usadas pelas presas para escapar de seus predadores podem pôr os gatos selvagens em apuros: “Muitos estudos avaliam o movimento de animais como cervos em lugares mais iluminados, tentando evitar a predação por grandes felinos. Mas isso começa a mudar o comportamento desses animais. Ao não encontrarem suas presas habituais dentro da floresta, eles começam a se aproximar das áreas antrópicas.”

Ainda que não ocorra um incidente mais grave, como um atropelamento, a necessidade de forragear em áreas de agropecuária e beiras de estrada tem consequências de longo prazo. Experimentos com caixas de som mostram que ruídos de origem humana deixam esses animais muito mais estressados do que, por exemplo, o barulho de uma rã ou de um grilo. As refeições, nessas circunstâncias, acabam sendo mais rápidas do que seria saudável, e os níveis de cortisol no sangue ficam mais altos, o que pode reduzir a expectativa de vida dos felinos em longo prazo.

“Menos de 5% do Pantanal está dentro de uma unidade de conservação formalmente protegida”, diz Raíssa Sepúlveda. “A grande maioria são propriedades privadas, e é por isso que a Panthera investiu bastante em esforços de coexistência entre os produtores e as onças.” Atualmente, além da atuação junto à Panthera — organização beneficente de proteção de felinos que foi fundada nos EUA em 2006 e tem um braço brasileiro desde 2014 —, Sepúlveda faz doutorado em Ecologia na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Ao longo de sua carreira, algumas de suas aventuras foram monitorar jaguatiricas por quatro anos usando camera traps e pôr colares de GPS em 15 indivíduos.

Conhecendo na pele as dificuldades do trabalho de campo — pesquisas como as citadas acima exigem longas incursões em áreas alagadas e abafadas do Pantanal, com roupas longas e grossas para evitar picadas de mosquito —, Sepúlveda explica que um dos trunfos do novo artigo científico é justamente usar um método que reaproveita material já coletado em novas análises.

“Algo bem importante nesse artigo é empregar dados já disponíveis em plataformas abertas. São anos de informações que foram coletadas por diversas razões. Às vezes, camera traps foram instaladas por um grupo de pesquisa por um motivo específico — como, por exemplo, a visualização de antas —, mas acabam registrando outras espécies. Então, elas podem e devem ser usadas para outros trabalhos. É importante que os pesquisadores compartilhem seus dados.”

“É uma análise bastante simples, que pode ser feita para outras espécies do Brasil, utilizando também dados abertos”, explica Bejarano. “E esse trabalho revela quais informações temos ou não temos. Há biomas enormes, como a Amazônia, sofrendo com a falta de dados. Não há tantos como se imagina, ou eles não são abertos.” Atualmente, Bejarano continua seu trabalho conservacionista como pós-doutoranda no Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Imagem acima: divulgação.