Por que crianças pequenas são capazes de aprender a falar duas ou mais línguas com perfeição?

Pesquisas recentes que combinam linguística e neurociência ampliaram perspectivas sobre desenvolvimento das competências para a linguagem e procuram esclarecer quais são os fatores mais influentes: a aptidão inata ou o aprendizado adquirido a partir do entorno.

Embora tenha apenas 3 anos, a paraense Catarina Rodrigues Ritter já conseguiu alguma projeção na mídia graças às suas capacidades linguísticas. Aos 2, começou a aprender o idioma inglês sem nenhuma instrução formal, além do acesso a desenhos falados naquele idioma e legendados em português (sim, ela sabia ler em português aos 2 anos). Hoje, a pequena Catarina frequenta um curso de inglês, mas já apresenta um desembaraço no idioma anglo-saxão que nem seus pais possuem.

Catarina é um caso de criança com altas habilidades e QI elevadíssimo. Mas toda criança possui a capacidade de aprender simultaneamente dois ou mais idiomas durante a infância, e desenvolver assim uma entonação e uma proficiência que são características dos chamados falantes nativos. Há décadas, estudiosos com as mais diversas formações buscam determinar quais podem ser os fatores que favorecem o aprendizado de idiomas na infância e os que o dificultam em outras fases da vida.

Com um território de apenas 240 mil quilômetros quadrados (comparável ao estado de Goiás), mas com uma população que é quase duas vezes a da Holanda, o país africano de Gana é o laboratório dos sonhos dos linguistas: seus 35 milhões de habitantes usam cerca de 80 idiomas para se comunicarem. Foi em Gana que, no começo de 2024, o linguista Paul Okyere Omane, da Universidade de Potsdam, na Alemanha, conversou com 121 famílias que tinham bebês de três a doze meses e moravam na cidade de Acra, a capital. A pesquisa constatou que 61 desses recém-nascidos ouviam três línguas rotineiramente, 25 deles ouviam quatro línguas e nove ouviam cinco línguas. Uma das crianças tinha cuidadores falantes de seis idiomas diferentes.

Gana abriga 75 grupos étnicos, que falam 73 línguas do oeste africano e dez línguas estrangeiras. Além do inglês, adotado oficialmente por herança da colonização britânica, o ensino básico ganês é ofertado em 11 idiomas diferentes, e a maioria esmagadora da população cresce bilíngue ou multilíngue. “Em lares multigeracionais, membros da família estendida participam ativamente da criação das crianças e, por causa dos casamentos interétnicos, eles podem falar diversas línguas”, escreve Omane em um artigo publicado no periódico Cognitive Development. Ainda que o contexto em Gana impressione, essa diversidade de idiomas também ocorre em outros lugares do mundo, como Luxemburgo, Índia ou na comunidade aborígene da ilha de Warruwi, na Austrália, lar de um grupo de 400 indígenas que usam, ao todo, nove línguas.

Como é possível que todo Homo sapiens, independentemente do acesso à educação formal ou das condições socioeconômicas de sua família e comunidade, seja capaz de adquirir uma, duas ou mais línguas sem qualquer instrução explícita? Com exceção de instintos básicos, como andar e comer, não há outras habilidades humanas tão universais e imunes à desigualdade.

Esse questionamento não é recente e intriga a humanidade desde pelo menos desde a Antiguidade. O historiador grego Heródoto relata que Psamético I, monarca do Egito entre 664 a.C. e 610 a.C., teria enviado dois irmãos gêmeos recém-nascidos para uma ilha deserta a fim de descobrir se, sem qualquer contato com outros humanos, os dois bebês passariam a falar o idioma que vem “instalado de fábrica” na nossa espécie. Uma espécie de língua original. Não se sabe se o experimento realmente ocorreu ou o que teria decorrido daí.

O bilinguismo no cérebro

Um dos meios de sanar essa dúvida é acompanhar ao vivo o cérebro de uma pessoa bilíngue. Diferentes técnicas que permitem observar o órgão em tempo real, como tomografias e ressonâncias magnéticas, mostram que pessoas bilíngues ativam sempre as mesmas áreas do cérebro ao falar, independentemente de qual idioma esteja em uso.

O português brasileiro, por exemplo, exige sete vogais diferentes — sem contar as nasais —, enquanto o inglês exige doze. Cabe mencionar que essa contagem considera a fonética, não a ortografia. Nesse sentido, as palavras “vô” e “vó” são um exemplo de como a vogal “o” pode ser usada de duas formas distintas. Acontece que várias das vogais do português também estão na lista de vogais do inglês, de modo que não é necessário armazenar um dado repetido em bases de dados diferentes: basta que haja um sistema capaz de decidir se deve recuperar aquele som no contexto lusófono ou anglófono, conforme a necessidade.

“Esse é um fenômeno que se chama coativação. O cérebro de um bilíngue sempre ativa as duas línguas — seja para conversar, seja para fazer recuperação lexical [quando você está tentando se lembrar de uma palavra]”, explica o linguista Marcelo Rosa, professor e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Há um mecanismo de inibição da língua que eu não estou usando em favor da língua que eu estou usando. A criança faz isso desde muito cedo, com áreas do cérebro que realizam controle inibitório — muitas delas localizadas no córtex pré-frontal, que ainda está se desenvolvendo na infância.”

O córtex pré-frontal é a parte do cérebro que fica logo atrás da testa e abriga, grosso modo, os circuitos responsáveis por tornar o comportamento humano diferente do de outros animais. Ali moram a capacidade de planejamento de longo prazo, o raciocínio lógico e os filtros sociais básicos que nos permitem viver em comunidade. As evidências disponíveis até agora mostram que as duas línguas de uma pessoa bilíngue não são armazenadas e processadas separadamente, mas que é possível adquiri-las e diferenciá-las sem confusão, porque o córtex pré-frontal faz o trabalho de adequar o falante à situação.

As crianças se confundem?

Hoje, é consenso entre linguistas que não há problema em se dirigir a um bebê em dois ou mais idiomas. Há evidências de que crianças criadas desde cedo como bilíngues ou multilíngues podem apresentar pequenos atrasos na aquisição de linguagem em relação aos seus pares monolíngues, mas esse delay é irrelevante a longo prazo. “Vamos supor que uma criança monolíngue está em uma fase inicial de desenvolvimento em que ela tem um vocabulário de 400 palavras”, explica a linguista Elaine Grolla, professora da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos em Aquisição de Linguagem (LEAL). “Aí você compara com uma criança bilíngue na mesma fase, que conhece 300 palavras em uma língua e 300 na outra. Sendo assim, ela está realmente atrasada? Na verdade, o número absoluto é maior. Então essa é uma comparação muito difícil.”

A linguista Alessandra del Ré, professora na Faculdade de Ciências e Letras do câmpus da Unesp em Araraquara, diz que, durante algum tempo, os estudiosos do campo discutiam sobre um suposto “período crítico”, após o qual não seria mais possível aprender línguas com a proficiência de um nativo. “Hoje, não se fala mais em período crítico, mas em um período em que haveria mais sensibilidade ou receptividade para receber determinadas informações. Isso, no entanto, seria influenciado por questões de contexto, personalidade e motivação”, diz ela.

Sabe-se hoje que o ritmo da aquisição em cada uma das línguas vai variar conforme o tempo de exposição da criança a elas. A docente de Araraquara cita o exemplo de uma criança bilíngue que foi objeto de um estudo que ela conduziu na França. “Ela nasceu na França, tinha pai francês e mãe brasileira, e foi para a escola com 2 anos e 6 meses. Antes da escola, a mãe, a irmã, as amigas da irmã e a babá falavam com ela em português. Quando comecei a gravar essa menina, aos 2 anos, ela tinha um português com muito mais vocabulário que o francês. Mas, após ingressar na escola, aconteceu o contrário, e hoje, o francês domina”.

“O que acho interessante, no contexto da aquisição da linguagem, é pensar nas diferenças”, diz del Ré. “Cada família tem uma política linguística diferente. Há famílias em que o pai faz questão de que se fale a língua dele em casa. Mas há famílias em que o pai não faz questão. Como isso será gerenciado? Essa é uma decisão da família”, pondera.

Também é possível que crianças que crescem em famílias onde são faladas duas línguas confundam certos aspectos de ambas no início. E há indícios de que línguas parecidas, como português e espanhol, exigem mais tempo para se estabelecerem como entidades separadas na cabeça dos jovens aprendizes.

A tabela abaixo resume as características de cada etapa da aquisição de uma língua por um bebê recém-nascido — e inclui notas breves sobre alguns aspectos bem observados desse processo quando ele ocorre em um contexto bilíngue. Embora a duração de cada etapa varie de criança para criança, já está bem verificado que todas elas percorrem as mesmas etapas na mesma sequência, o que é uma evidência da regularidade biológica desse processo. Essa regularidade é o assunto da próxima seção.

Uma capacidade inata, como andar ou mamar

A grande maioria das crianças brasileiras chega aos quatro ou cinco anos de idade ciente de que basta adicionar a letra “s” ao final de uma palavra para criar um plural, ou de que “você” precisa ser conjugado com o verbo na terceira pessoa do singular — ainda que se trate de um pronome de segunda pessoa. As crianças não saberiam explicar tais regras, mas conseguem empregá-las diariamente em centenas de frases, talvez cometendo um ou outro equívoco na conjugação de um verbo irregular, por exemplo.

O aspecto dessa cena que realmente impressiona os linguistas, porém, é que o filhote de Homo sapiens, embora ainda incapaz de amarrar os próprios sapatos, já consegue inferir a regra de formação de um verbo no passado e aplicá-la corretamente, mesmo que esse conteúdo nunca tenha sido ensinado explicitamente a ele. Trata-se de um traço que diferencia a linguagem de outras habilidades.

A capacidade que as crianças têm de aprender uma ou mais línguas aos trancos e barrancos, conforme captam fragmentos de conversas dos adultos e dão sentido a eles por conta própria, é chamada pelos linguistas de “argumento da pobreza do estímulo”. Essa é uma evidência a favor da ideia de que a linguagem é uma capacidade inata, um instinto, assim como os instintos para andar ou para mamar.

Essa caracterização da linguagem está no centro de discussões acaloradas, que reproduzem um enfrentamento acadêmico mais amplo entre argumentos que favorecem fatores biológicos versus fatores socioculturais na determinação do comportamento humano. Nesse contexto, opõe-se a perspectiva de que a linguagem seria um artefato exclusivamente cultural à de que ela dependeria de algo como um software, que já vem instalado de fábrica em nossos cérebros.

O linguista Noam Chomsky é, talvez, o nome mais influente dessa discussão. Entre as décadas de 1950 e 1960, quando trabalhava no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, Chomsky causou um rebuliço acadêmico ao propor que os seres humanos já nascem com diversas regras e princípios gramaticais básicos, decorrentes da nossa programação genética enquanto animais especializados em organizar informações com sons. Os bebês “só” teriam o trabalho de encaixar, nesse arcabouço pré-existente, as particularidades de cada língua ou línguas com as quais convivem desde cedo.

Chomsky não ignora essas particularidades. Ele propõe que essa predisposição inata se soma a um processo de ajuste fino às características de cada língua. Essa combinação explicaria a regularidade notável nas etapas da aquisição de linguagem listadas na tabela acima — e o fato de que toda criança é capaz de aprender uma ou mais línguas rapidamente, mesmo com a miríade de variáveis sociais, culturais e econômicas envolvidas.

Existem boas evidências a favor do argumento inatista de base chomskyana. Elas vêm de experimentos engenhosos que verificam, por exemplo, a maneira como as crianças generalizam regras gramaticais ou parecem blindadas contra certos erros de ordem das palavras desde muito cedo.

Porém, há também trabalhos sugerindo que o input linguístico fornecido por pais, familiares, colegas etc. seria suficiente para que as crianças inferissem pelo menos algumas regras da gramática de sua língua materna, sem necessidade de que haja um módulo cerebral com regras pré-determinadas. O grau exato em que a linguagem humana é uma habilidade inata, portanto, é um debate que permanece em aberto.

Imagem acima: Deposit photos