Uma coleta de dados sobre abelhas, pólen e flores realizada na Andaluzia, região sul da Espanha, na década de 1980 foi repetida 35 anos depois – e revelou o impacto já perceptível do aquecimento global no calendário da natureza.
Um grupo de pesquisadores da Universidade de Sevilha, na Espanha, e da Unesp comparou as datas de floração de 269 espécies de plantas do oeste da Andaluzia entre 1985 e 2022 e concluiu que cerca de 90% delas estão florescendo mais cedo que antigamente — 18 dias antes, em média, em relação ao que foi medido nos anos 1980. Além disso, 66,4% registraram períodos de floração mais longos.
O trabalho foi publicado em maio na revista especializada Function Ecology, e contou com a colaboração da bióloga Patrícia Morellato, professora do Instituto de Biociências da Unesp, no câmpus de Rio Claro, e diretora do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas (CBioClima), financiado pela Fapesp.
Segundo os autores do artigo, essa correria primaveril é uma reação às mudanças climáticas: o calor excessivo e outras condições anormais induzem as plantas a iniciarem suas atividades reprodutivas antes da época costumeira. Nas últimas décadas, a temperatura média na Andaluzia subiu de 15,9 ºC em 1985 para 18,3 ºC em 2022, enquanto as chuvas acumuladas ao longo do ano foram de 580 mm para apenas 205 mm.
Impactos na polinização e na produção de alimentos
Esse fenômeno não interessa só por causa do dano óbvio ao ecossistema, ele também pode trazer consequências para a produção agrícola. “Essas mudanças na época de floração não necessariamente são acompanhadas por mudanças nas épocas em que há a presença de polinizadores”, explica Morellato. “Isso pode causar desacoplamentos temporais que prejudicam a polinização das plantas e a sua produção de frutos.”
O problema é especialmente grave considerando que o desencontro entre animais e flores não se dá só no tempo, mas também no espaço, isso porque, conforme a mata nativa é retalhada por áreas de monocultura, insetos e pássaros precisam percorrer maiores distâncias para encontrar néctar. Esse cenário já é realidade, por exemplo, no Centro-Oeste brasileiro — região responsável por cerca de metade da produção agrícola do país.
Um outro estudo, conduzido pela equipe de Morellato na Unesp em parceria com pesquisadores de diversas instituições brasileiras, revelou que 24 plantas selvagens comuns nas beiras de estrada do Cerrado são polinizadas pelos mesmos insetos que visitam plantações de soja, tomate e café. Conforme a mata nativa sai de sincronia com esses animais, culturas valiosas podem perder o serviço de polinização.
“Com a devastação das florestas, há menos polinizadores, que também não vão conseguir alcançar as plantas que eles polinizam”, explica Morellato. “E isso se reflete na produção de alimentos. Um exemplo clássico é o do maracujá, que hoje em dia é polinizado em grande extensão manualmente, porque não há mais abelhas.”

Alterações no período de floração das plantas podem prejudicar a polinização por insetos (Crédito: Daniel Pareja-Bonilla)
O censo das plantas no Mediterrâneo
Nos anos 1980, os pesquisadores conseguiram coletar, para 269 espécies do sul da Espanha, as datas para quatro eventos: a primeira floração de uma espécie, a primeira floração intensa, a última floração intensa e a última floração. Os mesmos dados foram coletados em 2020, e a análise estatística foi empregada para realizar comparações.
Por meio da estatística, foi possível calcular que a data média de todas as plantas analisadas para o quesito da primeira data de floração passou de 17 de abril para 30 de março, uma antecipação de 18 dias. A primeira data de floração intensa foi antecipada de 27 de abril para 13 de março; a última data de floração intensa retroagiu de 20 de maio para 11 de maio e a última data de floração, recuou de 5 de junho para 27 de maio.
Os autores consideraram a primeira data de floração intensa como o primeiro dia em que se verificou que mais da metade da população de uma espécie de planta deu flores. A primeira data de floração foi definida pelo momento em que um único exemplar da espécie floresceu. Por sua vez, a última data de floração intensa é o último dia em que mais de 50% dos indivíduos da espécie exibem flores. Já a última data de floração equivale ao último dia em que qualquer espécime é visto florido, ainda que se trate de apenas um indivíduo.
Os pesquisadores identificaram uma lista de traços que torna uma planta mais propensa a adiantar o início de sua floração. Por exemplo: altura baixa, folhas largas, flores grandes e caules lenhosos (ou seja, feitos de madeira e mais rígidos) são típicos das apressadinhas. Além disso, se a espécie em questão já tem uma floração normalmente precoce em relação aos padrões do bioma — ou se seu período de floração é mais curto que a média —, aumentam as chances de queimar a largada.
Classificar as plantas por suas semelhanças, como altura, tamanho das folhas, é uma estratégia importante para pesquisadores dessa área. Espécies que compartilham certas características (os chamados “grupos funcionais”) tendem a reagir de maneira parecida às mudanças climáticas. Agrupá-las por esses traços é mais instrutivo do que avaliar as 269 plantas individualmente – porque permite inferir como outras espécies, que sequer foram observadas, se comportariam em circunstâncias similares.
Uma hipótese aventada pelos autores é que as plantas que sofrem com a floração precoce são as que usam a temperatura ambiente como gatilho para dar início à temporada reprodutiva. Existem espécies que consideram outras variáveis, como a duração do dia – que aumenta progressivamente do inverno para o verão não é afetada pelas mudanças climáticas, pois diz respeito apenas à rotação da Terra e seu eixo de inclinação. Novos estudos poderão comprovar ou descartar essa ideia.
Várias outras hipóteses listadas pelos autores antes do estudo, baseadas em resultados mais antigos, acabaram rendendo resultados surpreendentes. Por exemplo, esperava-se que as herbáceas (plantas de caule verde, mais macio) tivessem florações mais adiantadas que os arbustos e árvores lenhosas, mas ocorreu o contrário. Isso evidencia o quanto as respostas fenológicas às mudanças climáticas dependem do contexto: plantas com traços semelhantes podem reagir de maneiras diferentes em ecossistemas diferentes.
Os resultados do artigo mostraram que houve uma antecipação, isto é, um avanço na primeira data de floração em 88,4% das espécies. A primeira data de floração intensa avançou em 85%, a última data de floração intensa avançou em 75,1% e a última data de floração avançou em 72% das espécies. Essas mudanças resultaram em um aumento líquido na duração da floração, que se tornou mais longa em 64,4% das espécies, e a duração da floração intensa aumentou em 63,4% das espécies.
No entanto, a distribuição do número de espécies florescendo foi significativamente diferente quando comparados dois períodos do ano: de novembro a março e de agosto a outubro. O intervalo de tempo entre novembro e março dobrou em número de espécies florescendo do período de amostragem de 1980 para 2020; em contraste, de agosto a outubro esse número diminuiu em cerca de um terço.
A Sonchus oleraceus (133 dias) foi a espécie que apresentou o maior avanço em sua primeira data de floração: 133 dias. A Teesdalia coronopifolia foi a espécie que mais aumentou sua duração de floração, chegando a 111 dias. A Verbena officinalis foi a espécie que apresentou o maior atraso na data da primeira floração, 26 dias, e a Echium gaditanum foi a espécie que mais diminuiu a duração da floração, chegando a 110 dias.

Pesquisa comparou datas de floração de 269 espécies de plantas do oeste da Andaluzia entre 1985 e 2022 (Crédito: Daniel Pareja-Bonilla)
Comparações entre o Brasil e a Europa
Morellatto se interessou pela vegetação do sul da Península Ibérica porque ela oferece uma combinação peculiar de características. Trata-se de uma região razoavelmente quente e com grande biodiversidade — mais próxima da riqueza da Amazônia ou da Mata Atlântica do que as florestas do norte da Europa, que abrigam pouquíssimas espécies para os padrões tropicais.
“A vegetação mediterrânea é muito diversa. E não está em um clima tão frio, com uma estação em que as plantas não conseguem se reproduzir ou crescer”, diz a pesquisadora. De fato, o estudo concluiu que “as respostas detectadas para as comunidades altamente diversas do Mediterrâneo são similares às descritas para vegetações tropicais que passam por secas sazonais [como a Caatinga brasileira], ambas tolhidas por estiagens severas e altas temperaturas”.
Por outro, ainda se trata de um bioma europeu – o que significa que, historicamente, ele foi privilegiado porque recebeu mais biólogos, que tinham mais verba de pesquisa e faziam coletas de dados maiores e mais frequentes. Não há muitos estudos sobre a flora brasileira que datam de várias décadas atrás e que possamos reaproveitar em novos trabalhos.
As conclusões do estudo espanhol não se traduzem automaticamente para a realidade brasileira, mas o fenômeno das plantas apressadinhas em resposta ao aquecimento global tem sido verificado em diversos países e biomas. Em 2022, uma equipe da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, revisou os resultados de 400 mil coletas de dados sobre 406 espécies mundo afora e verificou que as primeiras datas de floração registradas entre 1753 e 1986 ocorreram, em média, um mês antes do que vem ocorrendo nas últimas quatro décadas.
O adiantamento acentuado de 0,51 dia por ano encontrado pela equipe espanhola condiz com os achados de outro estudo realizado na Península Ibérica, em 2002, que calculou uma antecipação de 0,46 dia por ano entre 1952 e 2000 — e é esperado em ambientes quentes e secos, mais vulneráveis às mudanças climáticas. “Na região do Mediterrâneo, as temperaturas estão subindo 20% acima da média global. Há áreas onde o impacto das mudanças climáticas é muito maior”, diz o doutorando Daniel Pareja-Bonilla, primeiro autor do estudo.
Parceria que funciona como uma máquina do tempo
Ao registrar as datas de floração das plantas mediterrâneas entre 2020 e 2022, Daniel Pareja-Bonilla seguiu os passos de seu orientador Pedro Ortiz – que fez o trabalho de campo de seu próprio doutorado na mesma região entre 1985 e 1987, e coletou os dados que serviram de base para a comparação do estudo atual. Ambos exploraram, com três décadas de diferença, uma mesma área de 24,7 km² nas proximidades de Hinojos, um povoado de apenas 3,6 mil habitantes a 30 km do litoral andaluz.
Usar anotações antigas em estudos novos é um desafio porque, de modo a gerar dados atuais realmente comparáveis aos antigos, é preciso reproduzir com a maior precisão possível o passo-a-passo seguido pelos pesquisadores de décadas ou séculos atrás. O exercício de recriar metodologias do passado fica mais fácil, é claro, se seus antepassados acadêmicos dão uma mãozinha.
“O Pedro Ortiz veio a campo comigo por várias semanas no início — posteriormente, voltou mais algumas vezes”, conta Pareja-Bonilla. “Nos esforçamos para coletar os dados da mesma forma e esclarecer os principais vieses que poderíamos ter, a fim de melhorar a comparação”, afirma. Ortiz explica que há um enorme interesse em contrapor dados antigos com os atuais no contexto das mudanças climáticas — mas que é difícil garantir que os números de décadas ou até séculos atrás sejam realmente compatíveis com os do presente.
Na época da coleta original, Ortiz estudava apicultura, e o registro das datas de floração não era seu foco. Mas ele conduziu a pesquisa com diligência – e o esmero com as flores, com o perdão do trocadilho, deu frutos: “Salvo seu efeito sobre apicultura, os dados fenológicos da minha tese não haviam sido analisados em nenhum outro artigo. O jovem Pedro não sabia o grande valor do banco de dados que ele compilou para sua tese.”
Na imagem acima: conjunto de plantas florescendo em região do sul da Espanha (Crédito: Daniel Pareja-Bonilla)