Pesquisadores defendem desenvolvimento da aquicultura na Amazônia como ferramenta para combater mudanças climáticas e recuperar floresta

Artigo publicado em Nature Sustainability chama a atenção para tema da produção sustentável de alimentos na região visando debates da COP 30. Criação de peixes e crustáceos pode gerar mesma quantidade de proteína animal obtida pela pecuária usando apenas 2% da área hoje dedicada a criação de gado.

Em novembro próximo, pela primeira vez, a Amazônia vai sediar uma edição da Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas, a COP-30, que ocorrerá em Belém. A presença de autoridades, ativistas, cientistas e líderes da sociedade civil de quase duas centenas de países colocará a floresta amazônica na ribalta mundial por onze dias. Mas, desde já, muitos pesquisadores do Brasil estão apresentando os resultados de seus estudos, propondo  novas possibilidades para um aproveitamento realmente sustentável da maior floresta tropical do mundo.

Um desses estudos, recentemente publicado, é uma investigação dos benefícios da expansão da aquicultura – a criação comercial de peixes e crustáceos – na Amazônia. O objetivo é tornar mais sustentável a produção de proteínas para consumo humano e, por tabela, ajudar tanto na recuperação e preservação da floresta quanto na mitigação dos efeitos do aquecimento global.

O artigo que apresenta os resultados deste estudo envolveu 29 pesquisadores de 12 universidades e institutos de pesquisa. Do Brasil, colaboraram pesquisadores do Centro de Aquicultura da Unesp, câmpus de Jaboticabal, e das federais de Juiz de Fora (UFJF) e de Rondônia (UFRO), além do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). De fora do Brasil, participaram estudiosos da Cornell University, Indiana University, City University of New York, University of Delaware e University of Texas Rio Grande Valley, além do Earth Innovation Institute, de São Francisco, na Califórnia. O texto foi publicado na revista Nature Sustainability.

“O projeto foi motivado pelo potencial da aquicultura para produzir alimento de origem animal de forma mais sustentável do que a produção de gado, que é um dos principais fatores que impulsionam o desmatamento da Amazônia”, explica Felipe S. Pacheco, pesquisador da Cornell University. Ele faz parte de um grupo de pesquisas sobre a Amazônia, liderado pelo professor Alexander S. Flecker, seu colega em Cornell. Coube a Pacheco coordenar o trabalho dos demais pesquisadores que assinam o artigo.

O cerne do estudo está em apresentar o potencial da aquicultura na Amazônia tendo em vista a crescente demanda global por alimentos. Além disso, assinala oportunidades econômicas em uma região que enfrenta desafios como o desmatamento e a perda de biodiversidade.

Há algum tempo, a aquicultura superou a pesca extrativa como principal fonte mundial de alimentos aquáticos. O crescimento desse setor tem sido especialmente notável em regiões com alta diversidade biológica, mas que sofrem com desnutrição persistente e subdesenvolvimento. Esse, aliás, é o caso da Amazônia, assinalam os autores.

Citando dados de outros estudos sobre a região e avaliações de imagens de satélite, os autores lembram que a pecuária é responsável por desmatamento em larga escala e altas emissões de carbono na Amazônia, bioma que, além do Brasil, se espalha por Peru, Equador, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Ao mesmo tempo, a sobrepesca tem resultado em alterações na biodiversidade aquática da região. Nesse contexto desafiador, a aquicultura se destaca como alternativa capaz de aumentar a produção de alimentos com menores impactos ambientais e gerar benefícios socioeconômicos.

A aquicultura, assim como praticamente todas as atividades econômicas, emite carbono na atmosfera em sua cadeia de produção. No entanto, as emissões de gases de efeito estufa  da aquicultura amazônica são inferiores às resultantes da produção de carne suína e até de três a dez vezes menores que as da pecuária. Além disso, apresenta alta produtividade em pequenos espaços.

Aquicultura pode abrir caminho para recuperar áreas degradadas

A criação de peixes na Amazônia vem crescendo. Muitos produtores — incluindo grupos profissionais e criações familiares — já atentaram para o alto potencial de comercialização das proteínas dos peixes. Nos estados de Roraima e Tocantins, no Brasil, além de países como Colômbia e Peru, o trabalho identificou aumento da aquicultura e [a] redução ou estabilização da produção de gado.

Wagner C. Valenti, fundador e ex-diretor do Centro de Aquicultura da Unesp de Jaboticabal, atualmente professor da pós-graduação do Centro, atua neste campo há 40 anos, e, há três décadas, desenvolve pesquisas e projetos de cultivo de peixes na Amazônia. Como a região é farta em rios, córregos e igarapés, é relativamente fácil construir açudes e lagoas para a produção de peixes, observa. “Desde então, defendo a destinação de pastagens degradadas para a aquicultura”, diz.

Tanques de produção de Tambaqui (Colossoma brachypomus) em tanques rede no estado do Amazonas.

Ele conta que a criação de rebanhos bovinos na região amazônica tem baixa produtividade em razão do caráter “super extensivo” da sua produção, com um número pequeno de animais ocupando áreas enormes. Depois do esgotamento de terras que já tinham sido desmatadas para virarem pasto, muitas delas são simplesmente abandonadas. Essas áreas respondem por grande parte dos cerca de 10 milhões de hectares de terras degradadas da floresta, número que corresponde a uma área maior que o estado de Santa Catarina.

“Pela aquicultura, é possível produzir proteína animal em quantidade equivalente à que é gerada pela criação de bois, usando apenas 1% ou 2% da área destinada à pecuária na Amazônia”, relata. “Isso possibilitaria ações de regeneração nos 98% ou 99% restantes.”

Para Pacheco, não se pode perder de vista o fato de que a sustentabilidade também está intimamente ligada aos fatores sociais e econômicos de uma região. “Tendemos a pensar muito no aspecto ambiental e, muitas vezes, nos esquecemos dos outros dois pilares, que são a sociedade e a economia”, diz. Ele avalia que a expansão da aquicultura deve, necessariamente, considerar a cultura e as comunidades locais. “Porque, se isso não for levado em consideração, o que acontece é que os grandes produtores prevalecem, e começa a existir um distanciamento entre a comunidade que vive lá e o setor produtivo, ampliando a pobreza”, relata.

Riscos e gargalos da aquicultura

Embora a expansão da aquicultura na região amazônica ofereça oportunidades para melhorar o desenvolvimento econômico, a segurança alimentar, recuperar a floresta e reduzir as emissões, ela também implica alguns riscos ambientais, com potenciais impactos sobre a biodiversidade local.

De acordo com o artigo, a fragmentação dos rios está entre as ameaças mais significativas aos ecossistemas de água doce, tanto em escala global quanto na própria Amazônia. Muitas pequenas barragens para fins aquícolas já foram construídas em toda a bacia amazônica, particularmente na região metropolitana de Manaus e nos estados do Acre e Rondônia.

Tais obstáculos podem afetar os padrões migratórios dos peixes, alterar os regimes de fluxo natural dos rios e levar à perda de habitats. Essa ruptura tende a reduzir a biodiversidade aquática e a impactar negativamente determinadas espécies, inclusive aquelas de valor econômico. Os impactos são especialmente preocupantes na Amazônia, onde muitas espécies de peixes dependem de movimentos sazonais ao longo dos rios para completar seus ciclos de vida, avaliam os pesquisadores.

Outro risco identificado pelo artigo está relacionado à introdução indiscriminada de espécies exóticas na região. O trabalho pondera que “o cultivo de peixes não nativos na Amazônia representa uma ameaça crescente à biodiversidade”. Os pesquisadores descobriram que a primeira introdução documentada de peixes exóticos na Amazônia data de 1939; porém, essa prática se intensificou nas últimas duas décadas — cerca de 75% das ocorrências de peixes não nativos na região foram registradas entre 2000 e 2020.

Muitos desses peixes não nativos estão diretamente ligados à aquicultura. Entre eles, destacam-se o pirarucu, a tilápia e a truta arco-íris. O pirarucu, nativo do rio Amazonas, estava restrito às chamadas terras baixas, mas foi introduzido em outras partes por meio da aquicultura e agora é designada como invasora na Bolívia e em Rondônia. Embora os impactos de sua presença sobre as espécies nativas e os ecossistemas ainda sejam incertos, trata-se do maior peixe de água doce da América do Sul e um predador de topo, o que pode levar a mudanças na teia alimentar e a efeitos em cascata nos ecossistemas.

Já as tilápias, apesar de sua alta aceitação no mercado consumidor, são conhecidas por alterar processos ecossistêmicos aquáticos globalmente. “Em vários ecossistemas ao redor do mundo, as tilápias competiram com espécies nativas, alteraram habitats e até hibridizaram com peixes nativos, levando à perda de integridade genética”, explica o artigo.

Maior incentivo e políticas públicas

Os autores ponderam que a utilização de terras desmatadas ou degradadas que foram abandonadas para fins de aquicultura poderá representar uma oportunidade única, com muitos benefícios para a população local e o meio ambiente, mas exigirá marcos regulatórios robustos e a implantação de políticas públicas específicas.

Aquicultores alimentando peixes no estado do Tocantins.

“Eu não sou muito fã de tilápia — essa espécie pode interferir e modificar a fauna amazônica local”, diz Sebastian A. Heilpern, da Cornell University. “Um exemplo de marco regulatório eficaz seria aquele que incentiva os produtores a criarem espécies nativas.”

Outro fator importante a ser regulamentado envolve os locais onde a aquicultura seria autorizada. “Muitas vezes, vemos que os tanques são construídos em canais de rios, o que traz um conjunto de problemas ambientais. Outro marco regulatório poderia incentivar os produtores a construírem tanques em pastagens degradadas”, diz Heilpern.

Valenti afirma que também seria necessário conduzir um zoneamento para definir as possibilidades de uso de cada área da Amazônia, conforme a sua aptidão. “A Amazônia tem tanta terra já degradada que não é preciso cortar uma árvore sequer para aumentar a produção de alimentos”, diz Valenti. “Bastam políticas públicas e marcos regulatórios que caminhem nesse sentido.”

O pesquisador defende ainda o estabelecimento de incentivos para empresários que migrem da pecuária extensiva para a aquicultura e a recuperação ambiental. “Vamos supor: se um produtor de bois migrar para a produção de peixes e recuperar 98% da terra, reflorestando-a com biodiversidade e tudo mais, ele teria incentivos fiscais, facilidade de crédito, e assim por diante”, diz.

Para fomentar o debate sobre a aquicultura na Amazônia, Valenti e outros pesquisadores estão finalizando uma carta com suas reflexões sobre o setor, que será apresentada e debatida na COP-30, em Belém.

“No fim das contas, precisamos de comida, certo? E, ao mesmo tempo, a produção de alimentos gera impactos ambientais, sociais e nutricionais”, diz Heilpern. “Espero que o tema da alimentação seja discutido em Belém como algo a ser produzido na Amazônia. Para as pessoas de lá, e também para as que vivem fora de lá. E esse sistema alimentar mais sustentável a ser construído na Amazônia pode incluir a aquicultura”, diz.

Imagem acima: produção de aquicultura no Tocantins. Crédito das imagens: Felipe Pacheco.