De aparência incomum, com patas curtas, corpo pequeno e uma cabeça que lembra a de um urso filhote, o cachorro-vinagre é um dos canídeos mais enigmáticos da América do Sul. Discreta, a espécie prefere viver às escondidas, próximo a rios e lagos, o que dificulta o trabalho dos biólogos que tentam conhecê-la um pouco mais. Na verdade, esse cão selvagem tem sido tão eficiente em seus esforços para se manter oculto que os cientistas, inicialmente, encontraram apenas os seus fósseis. Só em um segundo momento foram registradas observações de espécimes vivos.
O primeiro estudioso a se envolver no estudo do cachorro-vinagre foi o naturalista dinamarquês Peter Lund. Em 1839, ele se deparou com o fóssil de uma espécie desconhecida durante suas pesquisas nas cavernas da região de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Postulou-se, então, que se tratava de alguma espécie de canídeo que habitara a região e desaparecera na passagem entre o Pleistoceno e o Holoceno, há cerca de 11 mil anos. A espécie desaparecida foi denominada Speothos pacivorus. Porém, três anos depois, Lund surpreendeu-se ao encontrar um grupo de canídeos selvagens, de dimensões aparentemente semelhantes às dos fósseis, transitando livremente pelo sertão do Brasil. Esses animais se tornariam conhecidos popularmente sob o nome de cachorro-vinagre. Mas a observação foi apenas o início de uma trajetória de incertezas quanto à origem do animal e sua classificação correta.
Em 1984, quase quinze décadas após a descoberta do primeiro fóssil em Minas Gerais, a paleontóloga norte-americana Annalisa Berta, ligada à Universidade Estadual de San Diego, realizou um extenso trabalho de descrição do material associado ao Speothos pacivorus. No estudo, a pesquisadora apontou características de sua morfologia que diferiam do observado na anatomia do cachorro-vinagre.
Esse foi um primeiro indício de que, apesar das semelhanças, os fósseis poderiam pertencer a uma espécie diferente. O quadro que emergia era o de duas espécies distintas, mas que coexistiram durante o Pleistoceno. Uma, chamada Speothos pacivorus, teria se extinguido desde então. A segunda, que sobreviveu à passagem das eras, recebeu o nome científico de Speothos venaticus, o cachorro-vinagre.
O trabalho de Berta foi o último estudo que apresentou uma análise detalhada do Speothos pacivorus e, até recentemente, o debate sobre os representantes desses canídeos sul-americanos havia esfriado. Mas, mais recentemente, pesquisadores da Unesp lideraram uma nova investigação, empregando metodologias mais atualizadas para dar continuidade ao debate e estabelecer se, de fato, se trata de duas espécies distintas. Graças aos resultados, que corroboram a hipótese inicial de Berta, o grupo pôde traçar hipóteses sobre o comportamento e os hábitos de ambos os animais e sobre o que levou à sobrevivência do cachorro-vinagre, enquanto o Speothos pacivorus, seu semelhante maior, se deparou com a extinção. O trabalho foi publicado na revista científica Journal of Vertebrate Paleontology.
Para além de uma descrição meramente taxonômica, das semelhanças e diferenças entre os registros fósseis, a compreensão aprofundada desses materiais, e a percepção de que se trata de espécies diferentes, ajudam a remontar o cenário da América do Sul de milhares de anos atrás, cujas paisagens eram dominadas por mamíferos gigantes — a chamada megafauna.
A megafauna da América do Sul
Para retratar a vida na região de Lagoa Santa durante o Pleistoceno, período que se estendeu entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás, podemos imaginar um ambiente de rica biodiversidade de mamíferos herbívoros. A paisagem abrigava animais familiares a nós hoje, mas também versões “turbinadas” de espécies contemporâneas, como preguiças gigantes, tatus de grande porte e roedores avantajados.
A existência desses grandes animais beneficiava especialmente os mamíferos predadores, pois a maior disponibilidade de alimento oferecia mais chances para que diferentes espécies prosperassem. E a família dos canídeos, que reúne lobos, chacais, coiotes e raposas, apresentava uma diversidade de espécies muito maior do que a observada hoje.
Naquela época, essas espécies possuíam hábitos alimentares diferentes. Algumas eram hipercarnívoras, ou seja, baseavam mais de 70% da sua alimentação em carne. “Praticamente todos os felinos são hipercarnívoros. Mas, quando se trata dos canídeos, os hipercarnívoros são exceções”, explica Juan Vítor Ruiz, primeiro autor do artigo, que foi resultado de sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da Unesp, câmpus São José do Rio Preto.
Ele explica que, hoje, em todo o planeta, existem apenas quatro espécies de hipercarnívoros: o lobo-cinzento, o mabeco da África, o dhole da Ásia e o nosso cachorro-vinagre. “No passado, entretanto, além do cachorro-vinagre, existiam pelo menos outras cinco espécies de canídeos hipercarnívoros só na América do Sul. Dentre elas, o Speothos pacivorus”, diz ele.
Por que será que, entre a meia dúzia de espécies que habitavam nosso continente até o fim do Pleistoceno, apenas o cachorro-vinagre chegou até os dias de hoje? Os pesquisadores acreditam que seu tamanho reduzido pode ser a explicação. Os indivíduos dessa espécie chegam a medir, no máximo, 67 cm e pesar cerca de 6 kg. Por outro lado, o Speothos pacivorus, apesar da aparência semelhante, podia chegar a medir quase o dobro do tamanho.
“Levando em conta as características do Pleistoceno, quando existiam versões maiores das espécies atuais, o Speothos pacivorus seria a versão ampliada do cachorro-vinagre e predaria presas similares, como roedores e tatus, porém também em suas versões maiores”, diz Felipe Montefeltro, orientador da pesquisa e docente do Departamento de Biologia e Zootecnia da Unesp, campus Ilha Solteira.

Comparação de tamanho entre S. pacivorus (acima) e o cachorro-vinagre (abaixo). Crédito: Júlia D’Oliveira
“Com a passagem para o Holoceno, ocorreu a extinção de várias linhagens de megaherbívoros. Nossa hipótese é que vários dos animais que se especializaram em se alimentar dessas presas maiores se extinguiram junto com elas”, diz Ruiz. “E sobrou o cachorro-vinagre, que é pequeno e sobrevive à base de animais menores.”
Comparando espécies
O caminho para a formulação dessas hipóteses, no entanto, exigiu uma minuciosa análise dos registros fósseis, tanto do cachorro-vinagre quanto do Speothos pacivorus. O primeiro objetivo era confirmar que realmente se tratava de duas espécies distintas. Para isso, Ruiz trabalhou como pesquisador visitante na Universidade de Tubinga, na Alemanha, durante seu doutorado. A posição permitiu que o pesquisador ficasse próximo do Museu de História Natural da Dinamarca, onde estão arquivados os fósseis coletados por Lund. “Isso me permitiu contato direto com o material”, conta o biólogo, que atualmente realiza seu pós-doutorado no Laboratório de Paleontologia da USP.
“Nessa etapa, eu fiz uma listagem de todo o material existente lá, porque, ainda que o estado de preservação dos fósseis fosse muito bom, eles estavam mal organizados e separados de acordo com classificações antigas”, diz. O pesquisador criou uma base de dados contendo a identificação de todos os registros fósseis de ambas as espécies. A nova base de dados abriga também fotografias de todos os materiais catalogados e a reconstrução do crânio do Speothos pacivorus em um modelo tridimensional.
“A partir desse trabalho, obtivemos um modelo completo, como se o bicho tivesse morrido na semana passada”, diz. “Com ele, pudemos executar os testes envolvendo a parte de biomecânica.”
A primeira etapa, relacionada à identificação e caracterização dos registros fósseis, permitiu comparar os ossos de ambas as espécies em busca de similaridades e diferenças para determinar se eram, de fato, duas espécies distintas. Como esperado, apesar de apresentarem características gerais muito semelhantes, como a adaptação do crânio e da mandíbula para a hipercarnivoria, detalhes mais minuciosos apontaram para diferenças importantes.
Em relação aos dentes, por exemplo, o Speothos pacivorus apresenta um segundo molar inferior com duas raízes, uma condição não observada em Speothos venaticus. Além disso, análises estatísticas identificaram diferenças nas proporções do crânio de ambos os animais, como variações na largura do crânio.

Na foto é possível notar as diferenças de tamanho e proporção entre o crânio do S. pacivorus (esquerda) e o do S. venaticus (direita). Crédito: Juan Vítor Ruiz
“A partir das análises estatísticas e morfológicas, chegamos à conclusão de que estávamos lidando com duas entidades taxonômicas distintas”, diz Ruiz. Para surpresa do grupo, entretanto, apesar das diferenças morfológicas, os testes biomecânicos apontaram para comportamentos muito parecidos entre os dois animais.
Nessa etapa, a equipe investigou o comportamento de captura e consumo de presas em ambas as espécies. “Procuramos simular como o crânio do animal se comportava quando aplicávamos diferentes tipos de forças que recriam os movimentos de captura”, explica Ruiz. Informações como essa podem ser obtidas porque tanto a dentição quanto o crânio e a mandíbula apresentam adaptações específicas de acordo com o comportamento de cada animal.
Assim, utilizando o crânio do cachorro-vinagre e o do Speothos pacivorus, foi possível simular diferentes situações de caça e predação, como mordidas simples, mordidas puxadas para trás e para os lados, além de movimentos de rotação da cabeça, a fim de identificar quais comportamentos tinham maior possibilidade de serem adotados.
“Com essas simulações, percebemos que os dois animais tinham comportamentos muito semelhantes. Provavelmente, adotavam estratégias de caça parecidas. Também teriam limitações semelhantes em relação às suas presas e apresentariam uma ecologia de consumo similar”, diz Montefeltro.
O discretíssimo cachorro-vinagre
Os dois pesquisadores ressaltam que ainda não existe um entendimento pleno sobre os eventos que resultaram em uma extinção em massa de espécies na passagem entre o Pleistoceno e o Holoceno. E tão misterioso quanto esse episódio é o desafio de descobrir que estilo de vida levava o Speothos pacivorus, ou chacal das cavernas.
Para Montefeltro, o estudo do cachorro-vinagre, e de seu contemporâneo mais avantajado, ainda apresenta muitas lacunas que, se preenchidas, podem contribuir para a reconstrução histórica das interações ecológicas da região.
Entretanto, a pesquisa de campo não é simples. Uma dificuldades mais evidentes é a própria raridade do cachorro-vinagre. “É algo emblemático o fato de que essa espécie foi descrita primeiro como fóssil, e depois como vivente. Esse é um sinal claro de sua raridade extrema”, diz o docente. “O cachorro-vinagre é um bicho pequeno, social e inteligente, que vive perto da água, o que torna qualquer avistamento muito difícil. Sequer conhecemos de forma detalhada a dieta que ele adota.” Não à toa, a maioria das notícias envolvendo a espécie trata de avistamentos e aparições inesperadas.
Material na Dinamarca
Outro obstáculo ao avanço dos estudos sobre o Speothos pacivorus e o cachorro-vinagre é a limitação do acesso aos fósseis. Grande parte do material coletado por Peter Lund no século 19 permanece na Dinamarca, o que dificulta análises detalhadas por pesquisadores brasileiros.
Além disso, muitas coleções nacionais sofrem com a falta de conservação adequada, o que leva à perda ou deterioração das amostras. “Nossas coleções científicas são maltratadas. Temos pouquíssimos exemplares desses animais representados em coleções no Brasil. No mundo também, mas o Brasil seria o local mais favorável, porque é aqui que esses animais e esses fósseis estão”, diz Montefeltro.
Pensando nisso, o modelo desenvolvido para reconstruir o crânio do Speothos pacivorus foi disponibilizado virtualmente, permitindo que cientistas de outros lugares possam estudá-lo sem precisar viajar até a Dinamarca.
“Eliminamos um dos grandes obstáculos para analisar o material. Acho que isso é muito bom para nós, brasileiros, por se tratar de um animal do Brasil. E nós sabemos bem como é difícil ir para o exterior apenas para conseguir estudar esses registros”, diz Ruiz.
Imagem acima: Reconstrução artística de um grupo de S. pacivorus predando uma lhama. Crédito: Júlia D’Oliveira