Número pequeno de mulheres entre os agraciados com o Nobel nas áreas de ciências é indicativo dos muitos obstáculos que elas ainda enfrentam em suas trajetórias acadêmicas

Docentes da Unesp apontam barreiras históricas e estruturais que continuam dificultando ascensão feminina na academia, e que se refletem na disparidade de gênero entre os laureados com o mais importante prêmio atribuído a cientistas. Ao longo de mais de 120 anos, apenas 65 mulheres foram premiadas, contra 908 homens.

Os anúncios dos ganhadores do Prêmio Nobel de 2024 vieram com uma surpresa: entre os 12 agraciados havia apenas uma mulher, a sul-coreana Han Kang, homenageada com a láurea de literatura. A quase inexistência de mulheres na lista, e a total ausência de nomes femininos nas categorias ligadas à pesquisa científica não passou despercebida, e foi motivo de críticas. Esse quadro, porém, nada tem de exceção, e na verdade seguiu o padrão mais amplo da honraria, que desde sua primeira edição, em 1901, laureou apenas 65 mulheres, contra 908 homens premiados.

Nos campos científicos, com as medalhas de Física, Química e Medicina, a discrepância é ainda maior: em toda a história do Nobel, apenas 25 mulheres foram nomeadas. Ao todo, treze receberam o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina; oito ganharam a honraria de Química; e cinco foram homenageadas com a láurea de Física, representando 3,9% dos prêmios nessas categorias. A Física aparece como o campo com a menor representatividade, com 219 laureados homens para as cinco mulheres (2,2%).

Há bons motivos para debater a escassa presença feminina entre os agraciados com o Nobel. Afinal, o status que ele projeta sobre seus laureados se estende muito além do universo da academia e das instituições de pesquisa, em sintonia com seu mote: prestar reconhecimento a indivíduos cujos trabalhos, no ano anterior,  conferiram o maior benefício à humanidade.

A constatação de quão poucas foram as mulheres agraciadas com um Nobel nas áreas de ciências desde o início do século 20 levanta questões como o apagamento histórico de suas contribuições à pesquisa, e o limitado incentivo para que novas gerações de meninas vejam as carreiras científicas como possíveis de serem seguidas. “O Nobel é a premiação científica mais importante do mundo e, infelizmente, se olharmos o passado vamos encontrar muitas mulheres brilhantes que poderiam ter sido premiadas e que não foram”, diz Vanderlan da Silva Bolzani, pesquisadora do Instituto de Química da Unesp, campus de Araraquara.

Essas temáticas ganham especial destaque em março, quando é celebrado o Dia Internacional da Mulher. “É preciso pontuar que este não é um dia para comemorar, é um dia para refletir. O que podemos fazer para que as mulheres tenham redes de apoio, inclusive no trabalho, para que elas possam se tornar cientistas de ponta?”, questiona Marcia Graminha, diretora e pesquisadora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, câmpus de Araraquara.

A história da láurea é marcada por grandes intermitências no reconhecimento de mulheres; a premiação à canadense Donna Strickland em 2018 quebrou um jejum de 55 anos. Antes dela, o intervalo separando duas físicas premiadas fora ainda maior, com seis décadas distanciando Maria Goeppert-Mayer, ganhadora em 1963, da primeira mulher a receber a distinção, a polonesa Marie Curie, em 1903.

“Existe um preconceito de gênero muito forte dizendo que as mulheres têm uma tendência a ser mais bem-sucedidas em certos papéis em detrimento de outros. Por isso vemos algumas discrepâncias muito grandes, como um baixíssimo número de mulheres em campos como física e química, enquanto nas áreas biológicas esse número aumenta”, diz Graminha. “Isso faz com que as meninas acreditem que não somos tão boas em algumas carreiras. Sendo que, na verdade, nós podemos tudo.”

Em sua maior parte, as láureas destinadas a reconhecer a contribuição de mulheres foram outorgadas nos últimos 20 anos: entre 1901 e 2000, 11 medalhas científicas foram entregues para mulheres, enquanto 14 honrarias foram concedidas entre 2001 e 2024. A razão por trás de números tão baixos está longe de ser a falta de mulheres envolvidas na produção científica de qualidade; em grande parte, a explicação envolve uma série de restrições que, historicamente, as mulheres enfrentaram, e enfrentam, no campo das ciências.

No passado, exclusão foi regra

Uma das primeiras mulheres que serve como referência para a história do conhecimento e da ciência foi Hipátia de Alexandria, filósofa e matemática que viveu no Egito, no século 4. “Historicamente, as mulheres não podiam se destacar. Em especial, nas áreas científicas. Se observarmos a história de Hipátia veremos que, quando começou a ganhar notoriedade, ela foi morta”, conta Bolzani, que foi a primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), durante o mandato entre 2008 e 2010.

Ao longo da história do Ocidente, diversas restrições e limitações foram impostas às mulheres no tocante ao acesso a estudos e a ambientes de transmissão de ideias, como escolas e universidades, o que assegurou que tais espaços e ocupações se mantivessem essencialmente masculinos. Mesmo no século 19, marcado pela efervescência da pesquisa científica e da especulação filosófica, o quadro de exclusão de mulheres se manteve, reduzindo as possibilidades para que mentes criativas femininas pudessem apresentar suas contribuições, ou receber o reconhecimento adequado a suas capacidades.

Foi esse o caso da matemática alemã Emmy Noether (1882 – 1935). O trabalho de Noether lhe valeu elogios por parte de alguns dos maiores nomes da ciência, como David Hilbert e Albert Einstein, que enxergavam nela uma das figuras mais importantes na história da matemática. Suas contribuições para áreas como álgebra, topologia e sistemas dinâmicos impactaram o desenvolvimento da matemática e da física teórica, e até hoje permanecem relevantes.

Após concluir seu doutorado em matemática em 1907, Noether trabalhou no Instituto de Matemática de Erlangen sem remuneração por sete anos. Em 1915, a matemática foi convidada por David Hilbert e Felix Klein para lecionar na Universidade de Göttingen, um centro de pesquisa matemática de renome mundial. O conselho da faculdade, no entanto, não concedeu a Noether a habilitação necessária para que ela assumisse o cargo. Assim, pelos quatro anos seguintes, a pesquisadora ministrou aulas que eram assinadas sob o nome de Hilbert. A cientista assumiu oficialmente o cargo de professora em 1919, porém sem direito a remuneração. Só recebeu o primeiro salário em 1922.

Segundo a pesquisadora Ana Mizher, do Instituto de Física Teórica da Unesp, a ausência histórica de mulheres nas faculdades das chamadas ciências duras, como física, matemática e química, ainda hoje se reflete no menor número de mulheres em cargos de liderança nesses campos. Por consequência, o número de mulheres que alcançam o estágio de receber premiações de alto prestígio, como o Nobel, também será menor. “Por conta dessa predominância de homens, esses acabam se tornando ambientes muito opressores”, diz a física. “Quanto menos mulheres ocuparem esses espaços, menos mulheres irão se sentir interessadas em ocupá-los”, diz.

Nobel tem histórico de pesquisadoras excluídas

Repetindo o mesmo padrão de exclusão que caracterizou a academia historicamente, também a trajetória do Nobel registrou episódios de mulheres deliberadamente excluídas da láurea. Uma delas foi a física austríaca Lise Meitner (1878 – 1968), que colaborou por mais de 30 anos com o químico alemão Otto Hahn, em trabalhos sobre fissão nuclear. O mérito da descoberta sobre como quebrar um núcleo atômico foi atribuído exclusivamente à Hahn, que recebeu o Nobel de Química em 1944. No total, entre 1901 e 1965 Meitner recebeu 48 indicações para o Nobel, sendo 29 vezes  para medalha de Física e 19 vezes para a de Química, porém faleceu sem que o Comitê do Nobel reconhecesse o seu trabalho.

A astrofísica britânica Jocelyn Bell também vivenciou uma situação parecida, quando seu orientador, Antony Hewish, recebeu a láurea de Física em 1974. Hewish e Bell vinham trabalhando em pesquisas que levaram à descoberta dos primeiros pulsares, que são estrelas de nêutrons que emitem pulsos de radiação regularmente entre milissegundos e segundos. Apesar da colaboração, apenas o orientador foi reconhecido na premiação.

Já a química britânica Rosalind Franklin (1920 – 1958) faleceu antes que pudesse receber qualquer reconhecimento. Ao longo de sua carreira, a pesquisadora foi uma das principais envolvidas na descoberta da dupla hélice do DNA, o que permitiu a criação de modelos da molécula. Três dos seus colegas, James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins receberam a honraria de Fisiologia ou Medicina, em 1962, pela descoberta. Segundo o comitê, Franklin não foi considerada para o prêmio por ter falecido em 1958. “Então, não é que as mulheres não estivessem lá. Elas contribuíam com estudos relevantes, mas isso não era reconhecido”, diz Mizher.

Esse padrão parece ter sido deixado para trás em 2018, quando a pesquisadora Donna Strickland dividiu o Nobel de Física com o francês Gérard Mourou. O prêmio foi concedido pela contribuição de ambos nos estudos de lasers, em trabalhos que foram desenvolvidos na época em que Strickland era uma doutoranda sob a supervisão de Mourou. Para Mizher e Bolzani, parte dessa conquista se deveu aos movimentos que passaram a debater abertamente a presença de mulheres na academia, a atribuição de reconhecimento e, inclusive, a esforços de recuperação histórica sobre a contribuição de pesquisadoras que, até então, foram invisibilizadas.

“A academia e o Nobel, ao longo de muitos anos, possuíam um viés de gênero muito forte, que prejudicou outras cientistas. Acho que estamos caminhando para diminuir essas distâncias que nos separam dos homens. Mas ainda há um caminho muito longo pela frente”, diz Graminha.

Desigualdades na academia alcançam até autoria de papers

Além da falta de reconhecimento, as mulheres também enfrentam desafios para se manter nas carreiras científicas e alcançar posições de destaque, que incluem a jornada dupla, pressão pela maternidade, assédios. Dados da Unesco apontam que um em cada três pesquisadores em atividade no planeta é mulher. O número cai quando se trata de pessoas ocupando assentos em academias nacionais de ciência: apenas 12% são mulheres. E em áreas de ponta, como a inteligência artificial, apenas 22% dos profissionais são mulheres.

Isso se deve ao chamado efeito tesoura, que ocorre quando a participação das mulheres, mesmo sendo majoritária em alguns cursos, decresce à medida que a carreira progride em direção aos níveis mais elevados. Esse estreitamento se reflete na quantidade de mulheres que chegam aos estágios em que podem ser prestigiadas por grandes premiações, como é o caso do Nobel. Entretanto, a láurea ainda mantém seu índice bem abaixo da média internacional: enquanto 12% dos assentos de academias nacionais de ciência são ocupados por mulheres, apenas 7% dos prêmios entre 2001 e 2024 foram entregues a mulheres.

E há outras armadilhas, menos claras, mas igualmente efetivas, como a falta de reconhecimento pelos próprios colegas homens. Nesse último quesito, um estudo publicado na revista científica Nature aplicou um questionário em cerca de 9.9778 grupos de pesquisa com o objetivo de descobrir qual a contribuição das mulheres nos artigos publicados.

Como resultado, os pesquisadores descobriram que mulheres têm menos chances de serem inseridas como autoras de trabalhos acadêmicos. A partir dos artigos analisados, o grupo descobriu que as mulheres representam apenas 34,85% dos autores em uma equipe, embora constituam quase metade da força de trabalho (48,25%).

Para Mizher, são necessárias políticas públicas específicas para lidar com a disparidade e fazer com que mais mulheres alcancem cargos elevados, estendendo-se do apoio à maternidade até cotas em universidades que garantam que mais mulheres possam liderar laboratórios e grupos de pesquisa. “É preciso que as universidades forneçam suporte para que as mulheres, que muitas vezes enfrentam jornada dupla, possam trabalhar em condições iguais às dos homens e, assim, também se tornar cientistas de vanguarda”, diz Graminha.

Nesse sentido, Bolzani destaca a importância das premiações que buscam especificamente evidenciar a contribuição de mulheres. No Brasil, o primeiro prêmio a reconhecer o trabalho de cientistas mulheres foi o Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O prêmio, que teve sua primeira edição em 2019, foi criado por Bolzani, enquanto atuava como vice-diretora da organização. Para as pesquisadoras, uma vez que haja mais mulheres atuando pesquisadoras, ocupando posições de liderança e recebendo reconhecimento na forma de prêmios nacionais e internacionais, o movimento natural é que mais mulheres passem a considerar essa trajetória como uma possibilidade concreta.

“Costumo falar sobre o direito que me dou e o direito que me dão”, conta Mizher. “Esse debate está ligado à possibilidade de conseguirmos nos enxergar alcançando esses lugares, mas também é preciso que o nosso entorno permita que isso aconteça. A notícia de que uma mulher foi premiada com um Nobel vai circular entre as pessoas. Essa popularização é muito importante a fim de abrir caminho para que meninas e novas cientistas possam se projetar nesses lugares, e para que o seu entorno aceite que aquele é o lugar delas”, diz.

“Nós avançamos muito se pensarmos que antes as mulheres que se destacavam eram queimadas vivas”, diz Bolzani, “mas hoje elas são relegadas. Temos um longo caminho a percorrer. Precisamos de mais mulheres acadêmicas, de mais mulheres premiadas e de mais mulheres recebendo o Nobel.”