Como podemos avaliar a real importância de um amigo em nossa rede de relações sociais? Um exercício prático possível consiste em nos afastarmos dele temporariamente. Se este afastamento resultar num enfraquecimento de nossas conexões com outros amigos em comum, ou mesmo na quebra destas conexões, poderemos constatar o quanto essa pessoa específica contribui para o nosso “ecossistema social” particular. Pois algo semelhante pode estar ocorrendo nos campos rupestres brasileiros, segundo um estudo que reuniu pesquisadores da Universidade Estadual de Montes Claros, da Universidade Federal de Minas Gerais e do Laboratório de Fenologia do Instituto de Biociências da Unesp, câmpus de Rio Claro. Os resultados da pesquisa foram publicados na revista Biological Conservation.
A vegetação de campo rupestre que foi objeto desse estudo se caracteriza por sua flora altamente diversa. Esta flora evoluiu, principalmente, nos topos das montanhas da antiga Cadeia do Espinhaço, que se espalha pelos estados de Minas Gerais e da Bahia, e forma um sistema semelhante a um arquipélago dominado por campos e afloramentos rochosos, situados a mais de 1.100 m do nível do mar.
O objetivo dos pesquisadores era mapear as interações entre plantas e animais polinizadores no ecossistema de campos rupestres, que tem sido extremamente afetado pelas ações humanas, e experimentado uma significativa perda de biodiversidade. Mais especificamente, buscavam determinar, dentre as milhares de conexões planta-polinizador que existem nesse ecossistema, quais possuem um caráter mais fundamental, a ponto de que sua interrupção possa resultar em um colapso de toda a comunidade ecológica.
Foco nas interações mais importantes
No estudo, o grupo de pesquisadores empregou uma metodologia inovadora. A fase de coleta de dados se deu em duas etapas, conduzidas em 2012 e 2016, na região da Serra do Cipó, que fica em Minas Gerais, a 130 km de Belo Horizonte. As saídas de campo foram realizadas em sete locais, cobrindo uma faixa altitudinal de 1.073 a 1.260 m acima do nível do mar, e todos apresentavam características semelhantes em termos de exposição ao vento, substrato do solo, estrutura da vegetação e presença de espécies florais. Os dados, coletados durante aproximadamente 500 horas de observações realizadas a cada ano, registraram 1.018 interações do tipo planta-polinizador. Outras 246 interações planta-polinizador extras foram acrescentadas em uma análise complementar.
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“Além de uma gama bastante completa de dados, analisamos as informações a partir de ferramentas que medem quais conexões são mais preponderantes nas comunidades”, diz a bióloga Patrícia Morellato, diretora do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas (CBioClima) e líder do Laboratório de Fenologia.
O processo de polinização é um serviço ecossistêmico essencial, em escala global: sem ele, alimentos e commodities não estariam disponíveis. Isso torna os polinizadores peças-chaves em qualquer quebra-cabeça ecológico. No entanto, cada vez mais os elos que unem plantas e animais polinizadores estão se quebrando devido a ações humanas, como as mudanças no uso na terra (desmatamento para a produção de monoculturas), o emprego de pesticidas e a introdução de espécies invasoras – para não falar nas mudanças climáticas.
“É por essas razões que é essencial entendemos como essas redes complexas operam, e quais são as vulnerabilidades que apresentam”, diz Morellato. A importância de compreender os campos rupestres é reforçada pelo fato de que abrigam estimados 15% da diversidade de plantas vasculares do país. “Estamos falando de um ambiente com alto grau de endemismo, e sob forte pressão ambiental”, diz.
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Por meio de programas específicos, os pesquisadores produziram tabelas e gráficos que evidenciaram a contextualização do papel de cada espécie no ecossistema. A análise dos dados mostrou que a rede de interações entre plantas e polinizadores no campo rupestre abrange 481 espécies, que desenvolvem 1.264 interações.
Espécie de beija-flor está entre as mais importantes
“Além da nossa análise das redes, que é relativamente simples, os nossos resultados também trazem informações para a perspectiva da conservação”, diz Beatriz Lopes Monteiro, primeira autora do estudo publicado. “A maioria dos esforços para avaliar as espécies sob risco na natureza foca na distribuição e na abundância dos grupos. Mas agora trouxemos a perspectiva da funcionalidade. As espécies que classificamos como as mais importantes são as que mais interagem na rede. Conseguimos apresentar uma ampliação muito importante do nosso olhar para elas”, diz Monteiro, que também está ligada ao Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças Climáticas (CBioClima).
Das 163 espécies de plantas avaliadas, 20 são consideradas ameaçadas. E quatro delas (Lychnophora rupestris, Richterago conduplicata, Vellozia epidendroides e Vochysia pygmaea) estão no núcleo da rede, ou seja, apresentam um peso importante para toda a comunidade. Sendo que as duas primeiras, inclusive, só existem na Serra do Cipó.
Do lado dos animais que costumam visitar as plantas atrás de pólen, três espécies que emergiram da rede também são consideradas endêmicas do campo rupestre: o beija-flor Augastes scutatus e as abelhas Xylocopa abbreviata e Xylocopa truxali. Entre os polinizadores, apenas abelhas, beija-flores e uma espécie de formiga (Cephalotes pusillus) foram considerados espécies nucleares da rede, mostram as análises.
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Papel da abelha africana é controverso
A pesquisa brasileira também mostrou que a abelha africanizada Apis mellifera já pode ser encontrada nos campos rupestres. Essa constatação não é, necessariamente, uma boa notícia, embora o debate entre os especialistas ainda siga em aberto.
Do ponto de vista analítico, os dados mostraram que as abelhas africanizadas estão fazendo a polinização de plantas do campo rupestre. Ou seja, já desempenham um papel no ecossistema, que ainda precisa ser mais bem entendido, segundo as cientistas. “É preciso ser feita uma avaliação ainda mais cautelosa. Mas é uma espécie que está visitando muitas flores”, diz Morellato.
“Tenho que ser parcimoniosa, porque não posso ignorar o que a literatura nos informa”, diz Monteiro. “Como mostram alguns estudos, a apis mellifera pode competir com as abelhas nativas. Se, no longo prazo, ela tomar o nicho das abelhas nativas, ou de espécies que sejam mais especialistas em termos da busca por alimento nas flores, essas espécies tendem a ter problemas”, diz.
Tomando por base estudos feitos com a espécie africanizada em outras regiões, pode ser que a Apis mellifera não seja uma polinizadora tão eficiente das espécies endêmicas que existem nos campos rupestres. Isso poderia resultar em uma espécie de simplificação na riqueza da biodiversidade local. “Tal visão é um pouco ‘apocalíptica’ ”, diz Monteiro.
“Ela é uma espécie invasora, mas está presente na Serra do Cipó há muitos anos. Não deve haver um meio para nos livrarmos dela. Mas precisamos entender melhor quais impactos ela causa, para lidar melhor com eles. Isso pode ser interessante”, diz.
Imagem acima: o Beija-Flor-de-Gravata-Verde (Augastes scutatus). Crédito: Nortondefei/Wikimedia Commons