O que pode acontecer quando uma banda de rap se propõe a esquadrinhar o estilo conhecido como MPB, questionando seu significado e investigando novos caminhos ainda não percorridos? A resposta é o álbum Espiral, o mais recente lançamento do grupo Engrenagem Urbana, cujas oito faixas também abrem espaço para gêneros tão diversos como o pagode, o afrobeat e o próprio rap.
O Engrenagem Urbana é formado pelo produtor musical e tecladista Kiko de Sousa, o baterista Wopper Black, o baixista Matheus MxM e o vocalista e MC Samuel Porfirio. O quarteto surgiu no bairro de Itaquera, na zona Leste de São Paulo, um dos sacrossantos redutos do rap paulistano. A proposta, no entanto, sempre foi a de não se limitar à camisa de força de um gênero específico e apostar na mescla de sonoridades, abrindo espaço para o soul, o R&B e até um audacioso “jazz da quebrada”, sempre em busca de novidades e de novos públicos.
O vocalista, MC Samuel, conta que a ideia para o novo trabalho veio de suas interações com músicos de gerações mais novas. “Temos um estúdio onde produzimos artistas de diferentes idades, que fazem músicas urbanas. Eu estava fazendo um som com uns moleques do funk e estávamos sem ideia. Daí o Kiko disse: ‘cara, você gosta tanto de MPB, por que não fazer um disco de MPB?’ Inicialmente, achei genial. Mas depois pensei: pô, eu sou um rapper. Como vou cantar aquelas frases melódicas, buscar uma afinação diferente? Vai ser um grande desafio”, relata o MC.
Ele começou a escutar alguns álbuns de sua coleção, de artistas como Gal Costa, Jorge Ben Jor, Cassiano e Milton Nascimento, entre outros, tendo em mente o questionamento de como produzir músicas que pudessem se ancorar no estilo. “E eles começaram a me dar algumas respostas. Várias músicas que são consideradas MPB, eu pessoalmente enxergo como se fossem raps. Então veio a ideia de escrevermos um edital dizendo que a música do nosso disco iria questionar o que é a MPB. Essa é a ideia principal do Espiral. O que é a MPB? É uma pergunta. Não para os artistas da MPB, mas sim para quem conduz o pensamento do que é a MPB”, explica MC Samuel.
Na perspectiva do cantor, a música consumida na sociedade brasileira contemporânea mudou, e inclui muitos nomes diferentes daqueles que, durante décadas, ficaram rotulados como os compositores de canções da MPB. Daí a oportunidade para debater a ampliação do significado deste termo, um verdadeiro guarda-chuva musical. “Se eu abrir a porta da minha casa agora, dificilmente vai ter alguém lá fora ouvindo Caetano Veloso, Chico Buarque, Sandra de Sá, Tim Maia. Pode até haver, mas a galera hoje está ouvindo outros artistas que também podem ser considerados populares. E por que não inserir o rap nesse contexto? O Racionais não é popular?”, questiona.
Convidados especiais dão brilho ao álbum
Durante a elaboração do trabalho, o quarteto conseguiu engajar um time de peso para fazer as participações especiais. Fernanda Agnes, do Grupo IMBA, empresta seu talento para duas músicas: Abraço e Espiral. Para colaborar com a faixa título – que simboliza a transição e a evolução que a Engrenagem Urbana busca no conceito da espiral – foi deliberadamente selecionada uma mulher trans.
“Conheci a Fernanda dentro do nosso estúdio, gravando uma música com a Preta Ferreira. Ela tem um talento incrível. Fizemos o convite, ela aceitou. Escrevemos o refrão juntos. Ela acabou gravando duas faixas emblemáticas do álbum, inclusive a faixa título. E é muito louco, porque, dentro dessa transição, uma mulher trans também mostra mais um capítulo de evolução da banda em vários quesitos. Principalmente em uma banda formada por homens. A participação de uma mulher trans possui todo um significado amplo, de inclusão, uma preocupação atual que nós temos”, diz.
A cantora Tiê participa da música Duo, que trata das diversas formas de amor. Associada à nova geração puro sangue da MPB, ela trouxe para a composição temas como gravidez e maternidade, enquanto explora a dualidade de somar e dividir com outro pessoa. “A Tiê representa a MPB. Ela foi extremamente humilde, recebeu a gente na casa dela e comprou a ideia”, relata.
E em Aprendiz a banda abre espaço para o pagode dos anos 1990. Quem solta a voz nesta faixa é Marcelinho Freitas, ex-vocalista do Grupo Sem Compromisso. “Esse é um feat que mostra um questionamento sobre o que é MPB. Porque, se olharmos para a periferia de São Paulo, o pagode dos anos 1990 era a música mais notável que tínhamos”, observa o MC.
Outro estilo que o grupo traz à mesa para turbinar o debate é o afrobeat, que influenciou vários de nossos artistas. O estilo aparece na música 23:59, que aborda relacionamentos e contou com os vocais de Anelis Assumpção, filha do cantor e compositor Itamar Assumpção. “A Anelis levou a banda para outro patamar: ‘os caras estão com a nata da música preta do Brasil’. Foi um outro lampejo que tivemos nesses convites. Uma pessoa magnífica que gostou dos refrões que eu escrevi, não alterou nada, chegou e falou: vamos que vamos”, lembra o cantor.
Para alegria dos fãs que já acompanham a banda há uma década, o hip hop é representado por um dos craques do estilo, o cantor Thaíde. Ele traz seus vocais característicos em Sankofa, palavra de um idioma africano que significa adquirir sabedoria a partir do passado e emprega-la na construção do futuro. “O conceito é sempre voltar para trás na busca pela origem, pela essência”, diz Samuel. “Então, se a Engrenagem Urbana veio falar de MPB, ela volta para as suas origens, nesse efeito sankofa, e encontra o pioneiro do rap nacional para atestar que rap é MPB. Thaíde fechou nosso álbum com chave de ouro.”
A trajetória da Engrenagem Urbana
Ativa na cena musical independente há mais de uma década, a Engrenagem Urbana nasceu da parceria de músicos inquietos envolvidos com a movimentação cultural da Zona Leste, região que é referência para o rap nacional. O grupo já lançou quatro álbuns: Mil Histórias De Uma Cidade, Para Mil Corações (2016); Primeira Linha (2022); Engrenagem Urbana (2023) e Espiral (2024) – este está disponível nas plataformas digitais de streaming desde novembro do ano passado.
A Engrenagem Urbana já participou de shows com grandes nomes da música brasileira como, Rincon Sapiência e Xis, e abriu apresentações de Emicida, Tulipa Ruiz, Arnaldo Antunes, Chico César e Banda Black Rio. Também se apresentou nos palcos do Circuito Municipal de Cultura e de duas edições da Virada Cultural, em 2014 e em 2016. O grupo tocou em diversas oportunidades em unidades do Sesc, nas Fábricas de Cultura e em unidades da Fundação Casa, além de ter desenvolvido o projeto “Engrenagem Urbana nas Escolas” para levar música, poesia e informação a escolas da rede pública da periferia da zona Leste.
Confira abaixo a entrevista completa no Podcast MPB Unesp
Imagem acima: Carol Santos.