Em Duna, clássico da ficção científica escrito por Frank Herbert, somos apresentados à especiaria, um pó natural precioso capaz de impulsionar naves espaciais em longas jornadas pela galáxia. Grande parte da trama da saga gira em torno de embates políticos entre facções que buscam deter o monopólio de produção e comercialização da especiaria, uma vez que ela é essencial para manter em atividade a base tecnológica da civilização.
Na vida real, a especiaria não existe. Mas cada vez mais as nações terrestres competem entre si para assegurar o acesso às chamadas terras-raras. Esse nome designa um grupo de 17 metais da Tabela Periódica, que possuem propriedades ópticas e magnéticas especiais e que são essenciais para o funcionamento de quase qualquer dispositivo optoeletrônico e magnético. Elas estão presentes em lâmpadas fluorescentes, fibras ópticas para telecomunicações, lasers, equipamentos médicos, reatores nucleares de submarinos e até refinarias de petróleo – provavelmente, a tela em que você está lendo o texto contém terras raras em sua composição. Além de já serem fundamentais para a tecnologia em que se baseia nossa vida moderna, elas também se mostram essenciais para o projeto de transição energética, uma vez que estão presentes na composição dos ímãs e baterias que são empregados em tecnologias que se baseiam em energias renováveis.
E a demanda cresce em altíssima velocidade. Se em 2020 foram extraídas 240 mil toneladas, em 2024 a produção global chegou a cerca de 390 mil toneladas, segundo dados do Serviço Geológico dos Estados Unidos. E a tendência é que, à medida que mais tecnologias são produzidas e desenvolvidas, esse número aumente. Estimativas da Agência Internacional de Energia apontam que, até 2040, a demanda por terras-raras aumentará cerca de sete vezes.
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Embora as fontes de terras-raras sejam abundantes pelo planeta, minerá-las implica desafios e grandes impactos ambientais, o que pode tornar difícil atender os níveis da demanda. Esse descompasso tem servido de estímulo para a busca por outras possibilidades de extração desses componentes. No Instituto de Química da Unesp (IQ-Unesp), câmpus de Araraquara, os estudos nessa área vêm sendo desenvolvidos desde sua criação, em 1961. O professor do IQ Sidney José Lima Ribeiro é um dos pesquisadores que acompanhou a história desse campo, desenvolvendo pesquisas na área desde o seu mestrado, há quase 40 anos. Na última década, o docente passou a coordenar estudos voltados para a reciclagem de terras-raras, a partir de um processo conhecido como “mineração urbana”.
Em síntese, quando lâmpadas, computadores, celulares e outros dispositivos eletrônicos param de funcionar e são jogados no lixo, os minerais ali contidos podem ser reaproveitados para novas aplicações. “Desenvolvendo mecanismos para tratar rejeitos de equipamentos eletrônicos, que possuem terras-raras em grandes quantidades, e procuramos extrair e purificar essas substâncias”, explica Ribeiro.
Recuperadas e reutilizadas
As pesquisas do grupo coordenado por Ribeiro tiveram início em 2018, com financiamento da Fapesp, por meio de um acordo de colaboração entre países latinos e europeus. Naquela época, o grupo focou a recuperação do material a partir de lâmpadas fluorescentes descartadas. Esse tipo de lâmpada funciona a partir da excitação de um gás no interior do tubo, o que gera a luz a partir da emissão de radiação ultravioleta. As terras-raras compõem o pó que reveste os tubos de vidro, e são as responsáveis por converter a radiação UV em luz visível.
“À época, graças ao financiamento da FAPESP, pudemos comprar uma máquina que separa os componentes da lâmpada: o vidro, as partes metálicas e o pó”, conta Ribeiro. O pó normalmente é composto por uma mistura de luminóforos (isto é, substâncias que produzem luz) contendo diferentes terras-raras, como o Európio, o Ítrio e o Térbio. Com o material em mãos, o grupo desenvolveu metodologias para separar as terras-raras do restante dos elementos indesejados.
A primeira etapa dessas metodologias envolve solubilizar o pó em uma mistura líquida. “No caso das lâmpadas, esse pó é bastante insolúvel”, diz o pesquisador. A solução passa por empregar uma combinação específica de diferentes ácidos e agentes complexantes com o objetivo de “sequestrar” seletivamente cada um dos metais. De maneira simplificada, as moléculas dos agentes complexantes se ligam aos componentes das terras-raras, separando-os das substâncias indesejadas.
O processo permitiu ao grupo extrair com sucesso terras-raras a partir das lâmpadas e, uma vez recuperadas, aplicaram seus componentes na produção de novos materiais luminescentes, como filmes finos e cerâmicas, e em sensores ópticos, dispositivos responsáveis por converter luz em sinais eletrônicos.
Bactérias que produzem ácido sulfúrico
Com o sucesso das pesquisas envolvendo lâmpadas fluorescentes, a partir de 2022 o grupo expandiu os estudos para testar a extração de terras-raras a partir de outros materiais. Também desenvolveram uma nova metodologia que envolve a ação de bactérias.
Intitulado “Tesouros no lixo: desenvolvimento de novos materiais e estratégias para extração, recuperação e aplicação de elementos terras-raras em resíduos eletrônicos e da indústria do petróleo”, o projeto é financiado pelo CNPq e tem como pesquisadores, além de Sidney Ribeiro, Elias Paiva Ferreira Neto, Denise Bevilaqua e Douglas F. Franco. Seu objetivo é recuperar terras-raras a partir de material eletrônico descartado, e também a partir de catalisadores da indústria de petróleo, para aplicá-las no desenvolvimento de novos materiais. Para isso, sob a orientação da professora Denise Bevilaqua, também do Instituto de Química da Unesp, os pesquisadores utilizam uma bactéria chamada Acidithiobacillus thiooxidans, conhecida por produzir ácido sulfúrico.
Nesse caso, a recuperação do material ocorre pelo processo de biolixiviação. Como o próprio microrganismo produz os compostos químicos utilizados, essa é considerada uma técnica mais sustentável para extrair os metais dos minérios.
Os minérios são compostos de diferentes elementos químicos, entre os quais estão as terras-raras. Em um primeiro momento, a bactéria produz o ácido sulfúrico que irá dissolver os minerais, o que faz com que os metais sejam liberados na solução. Com o metal separado dos demais componentes, é possível aplicar técnicas de recuperação dos elementos.
“Esse processo também é chamado de biomineração, e é uma técnica bem estabelecida para recuperação de cobre, níquel e ouro, utilizada em vários países”, conta Bevilaqua. “Mas até hoje nunca tinha sido aplicado para a recuperação de terras-raras em lixo eletrônico”, diz ela.
O uso da thiooxidans apresenta diversas vantagens que podem permitir sua aplicação em grande escala. Um dos benefícios está no fato de que bactérias desse tipo se alimentam apenas de carbono atmosférico. Isso facilita a operação por excluir a necessidade de adicionar fontes extras de alimentação destinadas a manter o microrganismo vivo, o que encareceria o processo e aumentaria os riscos de contaminação.
“Em geral o lixo eletrônico é um material muito heterogêneo. Os resíduos têm características muito diferentes e sua recuperação pode ser difícil. Tudo isso torna os processos tradicionais de purificação menos viáveis comercialmente”, diz Bevilaqua. O uso de bactérias facilita muito a operação e permite que o processo possa ser escalonado.
“Isso é possível tanto pelo fato de que elas não demandam fontes extras de carbono como também pela produção do ácido sulfúrico ser feita in loco, o que elimina toda a etapa de compra e transporte de ácido de um local para o outro”, diz a docente. Os resultados das investigações sobre o uso de bactérias para recuperação de terras-raras foram publicados no artigo Sulfuric acid bioproduction and its application in rare earth extraction from phosphogypsum, da revista científica Minerals Engineering.
Trump de olho nas terras-raras da Ucrânia
Um ponto extremamente favorável à prática da reciclagem de terras-raras é sua capacidade de descentralizar a comercialização dessas matérias-primas. Ainda que seja um produto estratégico para todos os países, existe praticamente um monopólio do comércio a cargo da China. Segundo a Agência Internacional de Energia, o país minera cerca de 60% da produção mundial e processa 90% das substâncias comercializadas. “Hoje é muito mais barato comprar o material já purificado da China do que fazer todo o processo de mineração”, diz Ribeiro. O lado problemático deste quadro é que o monopólio tornou os demais países dependentes da comercialização chinesa e os deixa sob ameaças de eventuais restrições, como a proibição de exportação de terras-raras para fabricação de ímãs que foi adotada em 2023.
Essa medida surgiu em um momento de tensionamento de crises internacionais, em especial em um contexto de conflito econômico entre Estados Unidos e China que vem se intensificando desde 2018, quando o governo Trump impôs tarifas sobre produtos chineses. Em dezembro de 2024, em resposta a novas restrições por parte dos EUA em suas exportações, o governo chinês anunciou que iria bloquear a comercialização de terras-raras para os Estados Unidos. Com menos de um mês na Casa Branca, Trump reagiu às restrições e voltou sua atenção para o conflito ucraniano em busca de retorno, anunciando condicionaria a manutenção de ajuda ao governo ucraniano à cessão de áreas ricas em terras-raras aos EUA.
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Em meio aos conflitos internacionais e à crescente demanda por estes materiais para aplicações tanto civis quanto militares, a reciclagem surge como alternativa para assegurar a autonomia dos países e a continuidade de sua indústria de tecnologia. Inclusive, alguns trabalhos apontam que, dadas as dificuldades de mineração de terras raras no meio ambiente, muitas vezes a reciclagem e a mineração urbana podem ser mais rentáveis e eficientes, uma vez que os materiais descartados apresentam grandes quantidades dos componentes desejados.
Brasil desperdiça seu potencial para reciclar
Além de possibilitar atender à demanda internacional de terras-raras, o processo de reciclagem também apresenta um caminho para lidar com a questão da crescente quantidade de lixo eletrônico no mundo. A produção desse tipo de descarte está aumentando cinco vezes mais rápido do que o imaginado, é o que aponta o levantamento de 2024 do Monitor Global de Lixo Eletrônico (GEM), das Nações Unidas. Segundo dados do mesmo relatório, foram produzidos 62 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos em 2022, sendo que apenas 22% desses resíduos constam como reciclados.
Além das terras-raras, muitos dos componentes descartados têm, também, substâncias tóxicas, como é o caso do mercúrio das lâmpadas fluorescentes. “Quando falamos de contaminação de mercúrio, nós sempre lembramos da mineração de ouro na Amazônia, que é um exemplo clássico. Mas o caso dos lixões também é muito sério. A quantidade de mercúrio que deve existir neles, por conta das lâmpadas que são jogadas no lixo, é enorme”, diz Ribeiro. Dados do GEM apontam que 58 mil kg de mercúrio e 45 milhões de kg de plásticos contendo bromo são liberados no meio ambiente todos os anos.
Em 2022, o Brasil foi o segundo país que mais gerou lixo eletrônico, totalizando 2,4 milhões de toneladas. Menos de 3% foram recicladas. Essa realidade poderia colocar o país como uma das possíveis potências no campo da reciclagem de terras raras, ao mesmo tempo que lidaria com um problema nacional crescente. Entretanto, Ribeiro ainda enxerga pouco interesse, seja por parte de empresas ou mesmo do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, em apoiarem tais iniciativas. “Infelizmente, essa é uma experiência que temos no dia a dia. Mais de uma vez, ao longo desses 40 anos, apareceram diversos materiais e processos que eram bastante rentáveis. Na prática, não foram aproveitados”, diz. O docente diz as metodologias para reciclagem existentes hoje são facilmente escalonáveis, não apresentando nenhuma etapa aparentemente impeditiva, e não compreende as razões por trás do pouco interesse na área.
“Os catalisadores que a Petrobras emprega para purificar petróleo possuem terra-rara. E o consumo de catalisadores é imenso! Poderia ser possível suprir o consumo da Petrobras com a reciclagem e mineração urbana. A comunidade científica alerta há décadas para essa possibilidade. Porém, até hoje ninguém substituiu os processos”, diz o docente.
Ainda assim, Ribeiro diz que se mantém otimista. Deposita esperanças nas novas gerações de estudantes, na expectativa de que apareçam pessoas interessadas em se aventurar no campo da inovação e do empreendedorismo. “A esperança é entrar no ciclo produtivo e contribuir para a economia. Ainda mais em um contexto de guerras econômicas”, diz.
Imagem acima: Óxidos de terras raras. No sentido horário, a partir do centro superior: praseodímio, cério, lantânio, neodímio, samário e gadolínio.Crédito: Departamento de Agricultura dos Estados Unidos