Eventos climáticos não explicam alta no preço da alimentação em 2024, diz economista da Unesp

Pesquisador especializado na formação de preços dos alimentos no Brasil, José Baccarin contesta a ideia de que problemas na oferta foram a causa para disparada da inflação no setor, e diz que demanda do mercado internacional por commodities como café e carne, além da alta do dólar, levou produtores nacionais a buscarem patamares mais elevados de ganhos. “O governo precisa voltar a pensar no aspecto do abastecimento, que estava um pouco de lado, até pelo sucesso da produção agrícola”, diz.

A inflação dos alimentos em 2024 se tornou um dos grandes temas a ocupar o debate público neste princípio de 2025. O assunto começou a ser martelado ainda no último trimestre de 2024, tanto nas onipresentes redes sociais quanto nos principais veículos de comunicação, e ganhou uma dimensão política quando foi apontado como uma das causas para a queda da popularidade do governo Lula registrada em pesquisas de opinião divulgadas no mês de janeiro.

Muitos dos especialistas que foram consultados pela grande mídia para explicar as causas desse pico de inflação apontaram como fatores importantes as fortes chuvas, as estiagens e as ondas de calor que castigaram diferentes estados brasileiros ao longo do ano. O engenheiro agrônomo e economista José Giacomo Baccarin, porém, é cético quanto à influência dos eventos climáticos. “Não acho que tivemos uma inflação causada por problemas na oferta de alimentos. Por que não houve essa inflação para os produtos que não são exportados pelos produtores brasileiros, como o feijão, a mandioca ou o tomate?”, questiona.

Professor da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, câmpus de Jaboticabal, Baccarin está à frente de um projeto de pesquisa que acompanha os impactos da internacionalização da agricultura brasileira sobre os preços dos alimentos ao consumidor. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele chama a atenção para o fato de que muitos dos alimentos que mais experimentaram a subida de preços estão entre os principais destaques na pauta de exportação do Brasil, como o café e a carne bovina.

Com a subida do valor do dólar nos últimos meses do ano, o mercado internacional ganhou outro patamar de atratividade para o produtor brasileiro, que também passou a praticar no mercado interno os altos valores que obtinha no comércio com outros países, a fim de não perder a oportunidade de lucrar.

“Há uma grande contradição entre o Brasil ser um grande produtor de proteína animal e o brasileiro, principalmente o mais pobre, muitas vezes ter dificuldade para adquirir a sua cesta alimentar mínima. E isso ocorre em um momento em que a agricultura vai muito bem, obrigado, mas o brasileiro tem que sentir isso no seu prato”, diz.

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Dados do IBGE divulgados recentemente sobre a inflação dos alimentos em 2024 apontaram alta de 7,69% em alimentos e bebidas, muito acima da inflação de 4,83% medida pelo IPCA. O que aconteceu em 2024 que motivou tal disparada nos preços?

José Baccarin: Eu acho que ainda mais grave foi o crescimento dos alimentos consumidos no domicílio, que alcançou 8,2%. Essa categoria de Domicílio abrange 70% do consumo de alimentos e bebidas; ou seja,  a comida e a bebida que a gente compra no supermercado. A minha avaliação é que, para começar, houve, por parte do governo, um estresse exagerado em relação a esses aumentos.

Nós temos que olhar para três itens que respondem por 90% desse aumento: as carnes, os lácteos (leite e derivados) e as bebidas e infusões. Aí está incluído o café, que subiu muito de preço. Na categoria dos lácteos está incluído o leite longa vida, e em carnes, entra a carne bovina, principalmente, e a suína. O frango é outra classificação, entra em aves e ovos.

Esses três itens representaram 90% da inflação da alimentação em domicílio durante 2024. Duas coisas aconteceram. Primeiro: os preços internacionais subiram, tanto de carnes quanto do café e do leite. Café e carne nós exportamos, então os exportadores ganham dinheiro lá fora e repassam esse preço para dentro, para o mercado interno. Eles não vão cobrar aqui dentro mais barato do que o preço pelo qual vendem lá fora. Essa é a racionalidade. E no caso do leite, a gente importa pagando mais caro, o que reflete aqui dentro.

E o segundo motivo foi a desvalorização cambial. A moeda brasileira perdeu 27% de valor no ano passado, e muito dessa perda se concentrou no final do ano. E se analisarmos quando se deu essa subida de preço, em especial no que diz respeito às carnes, vemos que aconteceu de setembro a outubro. Até agosto, as carnes tinham ficado 2,5% mais baratas. De setembro a outubro, subiram 23%.

Houve um movimento muito forte de aumento das carnes, que representou 63% da inflação na alimentação em domicílio. A carne é o principal gasto que as pessoas têm no Brasil. Ela representa quase 20% da média dos gastos do brasileiro no supermercado. Isso resultou em um impacto muito grande. Por isso digo que houve um estresse demasiado, porque pareceu que esse crescimento foi algo generalizado. Mas não foi. E eu penso que houve um movimento especulativo no câmbio no final do ano que também levou os preços a aumentarem tanto.

O ano passado foi muito complicado para a agricultura brasileira do ponto de vista climático. Houve estiagens, e também muita chuva em estados agrícolas, que em alguns casos foi até sem precedentes...

José Baccarin: Eu acho que influenciou pouco. Existe aquilo que é chamado de inflação de oferta, quando falta produção, e tem a outra, a inflação de demanda, que ocorre quando as pessoas estão com muito dinheiro para comprar. Acho que nem uma nem outra aconteceram no Brasil, de maneira geral, no ano passado. Eu digo isso primeiro porque houve queda de produção, mas em produtos exportáveis. Se isso não vier acompanhado de uma quebra na produção mundial, a queda no Brasil pode não refletir no preço. Às vezes vem, né, como foi o caso do café. Pode o preço até cair. Assim como uma superprodução pode vir acompanhada de preço subindo no mercado internacional. Nós somos uma parte da produção mundial, muito significativa na maioria das vezes, mas somos uma parte.

Se você pegar os produtos de exportação, aumentou o preço da soja, aumentou o preço da carne, aumentou o preço do café, mas caiu o preço do açúcar e o preço do trigo no mercado internacional. Então, se a gente pegar fenômenos climáticos do ano passado, houve algo muito impressionante que foi o fogaréu dos canaviais no interior de São Paulo. Isso comprometeu a oferta, mas não a ponto de fazer os preços aumentarem. Então, não acredito que tenha sido essa a explicação. E se você pegar os produtos de mercado interno como  arroz, feijão, ovos, farinha de mandioca, alface, cebola, tomate, batata verá que a maior parte caiu de preço. O tomate caiu mais de 20%, o feijão caiu 9%. O único que subiu consideravelmente foi o arroz, que subiu 8,2%, mas mesmo assim bem abaixo do que se esperava diante da catástrofe climática do Rio Grande do Sul no ano passado.

Agora, no mundo, pode ser. Podemos ter sofrido uma queda de oferta mundial. E é possível que isso tenha se relacionado a eventos climáticos, mas não foi algo localizado no Brasil.

No primeiro trimestre do ano passado os alimentos já tinham subido muito de preço. Em alguns casos, o crescimento chegou a 57%. O governo demorou a se mobilizar ou reconhecer que havia esse problema? A impressão é que só agora esse assunto está na agenda governamental, e que estão sendo debatidas possíveis atitudes.

José Baccarin: O preço dos alimentos é algo complicado. Não é igual ao preço dos produtos industrializados, que mantém uma certa estabilidade durante o ano todo, ou mesmo por vários anos. Os alimentos tinham subido muito no primeiro trimestre do ano passado, mas se acomodaram no segundo trimestre. E até agosto, os alimentos chegaram a ter uma deflação, se não me engano em julho ou agosto, por conta da sazonalidade. No meio do ano temos a safra de grãos, a safra de tomate, safra de batata, e é mais fácil produzir hortaliças. E no final do ano, esses produtos tendem a aumentar de preço.

Os preços tinham se amenizado até agosto, e nos últimos quatro meses a coisa desandou. Os alimentos estavam chegando próximos dos outros produtos da cesta do IPCA. A coisa desandou muito por conta do preço da carne. Eu fiz uma conta: se as carnes tivessem mantido o preço em que estavam entre setembro e dezembro, quando tinha caído de 2,5%, o IPCA no Brasil seria de 4,3% em 2024. Isso mostra a importância desse movimento que se concentrou nos últimos meses do ano.

Eu acho que houve um estresse exagerado no começo deste ano porque pegou quatro meses que influenciaram muito [no resultado final medido da inflação]. É correta a preocupação do presidente da República com a inflação dos alimentos, porque ela atinge os mais pobres. Mas esse fenômeno vem acontecendo desde 2007 no Brasil. É que 2023 foi um ano tranquilo, sem pressão dos alimentos. Isso durou por um bom tempo.

O que eu acho mais necessário, neste momento, é conversar com os frigoríficos. Entender por que a carne subiu tanto de preço em quatro meses. O Congresso ou a Presidência da República pode chamar os frigoríficos, e ver qual a razão. Não acho que seja o ciclo pecuário. Não está faltando boi no Brasil. Não se sente a falta de boi em quatro meses. O preço ia caindo, e de repente subiu tanto assim?

Em médio e longo prazo, o governo precisa fazer um acompanhamento mais preciso e antecipatório dos preços dos alimentos. Não é fácil. Muitas coisas acontecem no mercado internacional. Acho que um grande problema que nós tivemos no ano passado foi o descontrole cambial. A desvalorização da moeda nacional, que gerou muita especulação, ajudou no aumento excessivo dos preços. É preciso ter uma política cambial de maior acompanhamento. Câmbio flutuante sim, mas até certo ponto. Não pode deixar degringolar como degringolou no ano passado.

O governo começou a aventar, nos meios de comunicação, uma série de possibilidades e estratégias de ação para tentar interferir nos preços, como reduzir tarifas de importação para certos gêneros alimentícios e interferir no próximo Plano Safra, para estimular a pequena produção agrícola. E falou-se até em uma medida que teria como objeto os serviços de vale-alimentação. Qual delas tem potencial para equilibrar os preços nos próximos meses?

José Baccarin: Nós já tivemos uma notícia boa neste ano. O chamado IPCA-15 [medido entre os dias 15 do mês anterior e o mês de referência] de janeiro já veio muito baixo. A alimentação deu uma baixada. Então, pode ser que a gente inicie o ano com essa tensão menor. Por isso, é preciso ir um pouco mais devagar, não é preciso embarcar em um estresse tão grande assim.

Em relação às medidas como alterações no vale-alimentação e aumento da demanda, na minha avaliação essa abordagem é sempre interessante para um país com tamanha desigualdade de renda como o Brasil. Tudo que se puder fazer para aumentar o consumo popular de alimentos, no meu entender, é correto. Isso não provoca inflação de alimentos. Nós não tivemos demanda excessiva pressionando o preço dos alimentos no ano passado. Quem está dizendo isso está errado. Tivemos queda de desemprego, aumento de renda dos salários, as famílias tiveram mais dinheiro para gastar, os supermercados movimentaram mais, mas não foi isso. É um diagnóstico errado, na minha avaliação.

Todo aumento de renda é bem-vindo. Penso que a gente precisa trabalhar isso no médio prazo, pelo estímulo a alguns produtos que, às vezes, têm uma produção fraca no Brasil. Produtos que têm mercado internacional muito pequeno. Eu incluiria aí feijão, arroz, mandioca, hortaliças, grande parte das frutas. E incluiria também o leite, porque nós somos importadores.

Incentivar esse tipo de produção, de preferência por agricultores familiares, para que a gente disponha de uma produção um pouco mais folgada. E como esses produtos em geral não são exportados, é importante proporcionar alguma segurança para o agricultor. De forma que, se a produção for excessiva e os preços caírem muito, talvez em alguns casos seja importante formar estoques reguladores.

O arroz é um caso típico. O feijão é mais difícil porque quando ele é estocado ele perde valor culinário. A farinha de mandioca também, poderíamos ter estoques. Seria uma política antecipatória, de estímulo à produção daqueles produtos que têm uma oferta muito ajustada com a demanda, em que, diante de qualquer oscilação, os preços sobem muito.

Outra questão é começar a pensar em como a gente discrimina os produtos que são exportados: o que fica para o mercado interno e o que vai para o mercado internacional. Hoje é a iniciativa privada que tem todo o poder para fazer isso.

O que houve no final do ano? O dólar ficou valorizado, houve aumento de preço internacional, o Brasil exportou mais e isso desabasteceu o mercado interno. Temos que pensar em meios para que o governo possa agir nesses momentos. Com a soja aconteceu a mesma coisa. Ela não tem um grande efeito na inflação diretamente, porque o óleo de soja disparou, mas o peso dele no que a gente gasta é pequeno. Mas temos que pensar em ações públicas para poder garantir o abastecimento do mercado interno em momentos de pico do mercado internacional.

Há uma grande contradição no fato de o Brasil ser hoje o maior fornecedor de proteínas animais para o mundo, um dos grandes produtores de alimentos, e o brasileiro, principalmente o mais pobre, muitas vezes ter dificuldade para adquirir a sua cesta alimentar mínima. Temos problemas de insegurança alimentar. E isso ocorre em um momento em que a agricultura está indo bem. Não temos crise agrícola. A agricultura vai muito bem, obrigado, mas o brasileiro tem que sentir isso no seu prato. Temos que conciliar as coisas, e acho possível fazer isso.

Muitos analistas atribuem o aumento do preço de vários itens como café, leite e laranja às condições climáticas, ao calor, ao frio e à geada. Por que você discorda dessa explicação?

José Baccarin: Veja, nós não produzimos leite suficiente. Somos importadores. Os preços de importação aumentaram porque subiu a cotação no mercado internacional. Pode ser que tenha caído a produção nacional de leite. Seria preciso  pegar os números e confirmar isso. Mas, mesmo que a produção nacional tenha diminuído, se a gente não exporta, de onde veio o aumento? Veio do mercado internacional. E não estou descartando que no mercado internacional tenha tido diminuição na produção.

Quanto aos demais itens… Não vejo que a produção de carne no Brasil tenha sofrido algum baque. Existe um ciclo pecuário, é verdade. Leva dois anos para engordar o animal. Com o café, é a mesma coisa. Existe um ciclo de três anos. Não é um ajuste tão simples quanto das culturas anuais ou do frango, que está pronto para abate em 40 dias, em que você ajusta a produção mais rapidamente. Mas eu não vejo que só a queda no Brasil tenha provocado esse efeito.

Talvez em alguma cadeia, como a do café, até possa ter ocorrido, uma vez que temos 30% da produção mundial e tivemos problemas climáticos. Assim como teve no Vietnã, que hoje é o segundo ou terceiro produtor mundial, disputando com a Colômbia. Então foram dois países importantes com problemas na produção. É preciso estudar esse tema.

O que acho é que, quando o problema surgiu, todos começaram a defender este argumento, mas não apresentaram dados da queda de produção, no Brasil ou no exterior. Se não me apresentarem esses números, vou dizer que o que ocorreu no Brasil não foi um problema de oferta. Será que a oferta só cairia para os produtos exportados? Por que não caiu no feijão, não caiu na mandioca, não caiu no tomate? Então, temos vários itens cuja produção não caiu ano passado.

Até mesmo no caso do arroz: no começo do ano passado, após a tragédia no Rio Grande do Sul, falaram de uma crise violenta [de abastecimento] que talvez fizesse o preço dobrar. Houve um aumento de 8%.

Essas coisas devem ser medidas, estudadas, recuperadas. Recuperar a capacidade do Brasil de pensar no abastecimento. O Brasil, até pelo sucesso que teve na agricultura, abandonou essa questão. Precisamos começar a repensar.

Agora o que aconteceu no ano passado, tenho muita convicção de que foi algo localizado nas cadeias e não algo relacionado a um problema generalizado de oferta no Brasil. Se deveu a um aumento de preço internacional, e a uma desvalorização cambial absurda. Isso não acontecia antes, porque o câmbio normalmente compensava o aumento de preço internacional. Ou seja, quando aumentava os preços internacionais a moeda nacional se valorizava. O ano passado aumentou um pouco o preço internacional e a moeda nacional se desvalorizou em quase 30%.

Ou seja, qual é a variável que a gente tem que considerar neste momento? A taxa de câmbio. Precisamos dispor de uma moeda mais valorizada para que isso não volte a acontecer. É uma conexão do Brasil com o mercado internacional, que é benéfica para o país, mas cujo custo a gente precisa observar e tentar reparar.

O mais rico, quando aumenta a carne, ele se incomoda um pouco. O mais pobre tira a carne do seu prato porque a sua cesta é muito restrita. O pobre gasta 30% ou 40% da sua renda com alimentação. O mais rico gasta 5% ou 10%. O efeito da inflação de alimentos é diferenciado segundo a renda das pessoas.

Imagem acima: supermercado em Brasília, em 10de janeiro. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil