Suposta solução para o 16º Problema de Hilbert reacende debate matemático em torno da questão

A publicação de possíveis resultados estimulou a discussão científica em torno do problema que está em aberto há mais de 120 anos. Ao mesmo tempo em que garante a validade dos achados, o debate acadêmico impulsiona o avanço científico a partir do encontro de diferentes ideias e metodologias

Em 1900, enquanto proferia seu discurso de abertura do Congresso Internacional de Matemáticos, em Paris, o matemático David Hilbert afirmou que todo problema tem solução. “Na matemática não existe ignorabimus”, disse, fazendo referência à expressão em latim “Ignoramus et ignorabimus”, usada para representar a ideia de que o conhecimento científico é limitado. Para Hilbert, a certeza de que todo problema tem uma resposta é uma das principais fontes incentivo do cientista e uma importante ferramenta para impulsionar o desenvolvimento do conhecimento matemático.

Na mesma palestra, o pesquisador apresentou uma lista de 23 problemas, muitos dos quais, ainda hoje, seguem sem solução. Dentre eles, o 16º problema tem sido alvo de atenção crescente nos últimos meses, quando um trio de pesquisadores da Unesp propôs uma solução para o desafio matemático que está em aberto há mais de 120 anos. O problema pertence ao campo da geometria e topologia e explora a possibilidade de determinar quantos ciclos limites podem existir em sistemas de equações diferenciais polinomiais de um certo grau, responsáveis por descrever fenômenos em constante mudança, como os climáticos. De maneira simplificada, ele busca entender quantas vezes o comportamento de algo que muda continuamente, como o movimento de um pêndulo, pode se repetir, formando padrões que não se alteram com o tempo.

Se solucionado, o problema pode trazer importantes implicações em áreas como biologia, física, engenharia, meteorologia e computação quântica. Isso abriria portas para o desenvolvimento de ferramentas capazes de gerar previsões mais precisas, por exemplo, tornando possível determinar com mais exatidão a frequência e a intensidade de fenômenos climáticos. 

Devido à sua importância, ao longo do último século, muitos matemáticos se debruçaram sobre essa questão sem, entretanto, conseguir chegar a um desfecho. Por esse motivo, a perspectiva de uma possível resolução foi recebida com entusiasmo pela comunidade. Por outro lado, a complexidade inerente da questão também despertou ceticismo sobre a resposta e deu início ao processo de debates científicos dentro da academia. Passados três meses da publicação do artigo inicial, os matemáticos Douglas D. Novaes, da Unicamp, e Claudio A. Buzzi, do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Unesp, câmpus de São José do Rio Preto, publicaram uma nota de contestação no Arxiv, repositório de acesso aberto de preprints, apresentando alguns possíveis contra-exemplos.

A dupla aponta que uma das principais falhas do trabalho foi não considerar resultados preliminares que já eram bem estabelecidos na comunidade matemática como, por exemplo, a taxa de crescimento da função relacionada aos ciclos limites. “No artigo, eles apontam que o número máximo de ciclos limites é determinado por uma função quadrática, porém, essa é uma taxa de crescimento muito baixa”, afirma Buzzi. “Trabalhos anteriores demonstraram que a cota inferior para o número de ciclos limites deve crescer mais rapidamente que qualquer função quadrática”, completa. 

Silva, Vieira e Leonel, autores do artigo que propôs a solução, publicaram uma nota em resposta à contestação, também no Arxiv. De maneira geral, o grupo de pesquisadores defende que, apesar de terem abordado o problema a partir de uma nova metodologia, seu achado é condizente com os resultados preliminares apontados por Buzzi e Novaes. “Como esse é um resultado muito importante, o reconhecimento e a validação não são instantâneos. Esse é um processo que leva alguns anos e já esperávamos que iriam surgir notas de contestação tendo em vista que não só propomos uma resolução para o problema, mas também desenvolvemos uma teoria nova para isso”, afirma Leonel.

O número de Hilbert

As discussões sobre a solução giram, principalmente, em torno dos números de Hilbert (Hn), que determina a função necessária para resolver o problema. “Dado um inteiro positivo n, o n-ésimo número de Hilbert representa o número máximo de ciclos limites que sistemas podem ter”, explica Novaes, da Unicamp. 

Na matemática, as funções são utilizadas para descrever fenômenos e entender seu comportamento. Por exemplo, na escola aprendemos a trabalhar com funções de grau 1, que são representadas por uma reta e podem descrever a trajetória linear de um carro entre um ponto A e um ponto B. Quando passamos para uma função de grau 2, o nível de complexidade aumenta e a função passa a representar uma curva ou uma parábola. Esse tipo de função é muito utilizada nos cálculos de trajetórias de projéteis, como bolas ou foguetes. Assim, o grau de uma função traz informações importantes como o nível de complexidade de um determinado sistema, a quantidade de curvas e a taxa de crescimento da função. 

Por esse motivo, os números de Hilbert constituem um ponto crucial na resolução do 16º problema: é ele que irá indicar qual é a função e o grau que determinará o número máximo de ciclos limites do sistema. Parte do debate que tem se desdobrado a partir da resolução do problema é, justamente, qual será essa função. Especificamente, o trabalho assinado por Silva, Vieira e Leonel, aponta que o Hn é igual a 2(n – 1)(4(n – 1) – 2), indicando que uma função quadrática deve ser utilizada para descobrir o número máximo de ciclos limites do tipo de sistema proposto no problema. Novaes e Buzzi contestam esse achado, uma vez que o consenso científico é de que o Hn deve ser maior do que qualquer função quadrática, mais especificamente, maior do que n²log n.

Esse resultado teve origem em um trabalho de 1995, desenvolvido pelos matemáticos Christopher e Lloyd. Nele, a dupla não teve a intenção de fornecer um resultado para o 16º Problema de Hilbert, que pede pelo número máximo de ciclos limites de sistemas, mas de encontrar as cotas inferiores para os números de Hilbert. “Isso é algo comum na matemática, nem sempre chegamos ao resultado final, mas encontramos resultados parciais que nos ajudam nessa busca”, explica Novaes.

Para encontrar valores mínimos para os números de Hilbert, Christopher e Lloyd foram atrás de exemplos de sistemas com um número conhecido de ciclos limites. “A filosofia por trás disso foi construir exemplos concretos de sistemas polinomiais com um determinado grau e um determinado número de ciclos limites”, diz Novaes. Embora ainda não saibam qual é a função exata que fornece o número máximo de ciclos limites em qualquer sistema, essa abordagem permitiu avançar no problema ao mostrar casos concretos que ajudam a excluir algumas possibilidades.

Por outro lado, Vieira defende que, mesmo seguindo o achado de Christopher e Lloyd o resultado obtido pelo trio se sustenta. “Se inserirmos o nosso achado dentro do teorema apresentado por Christopher e Lloyd, vamos obter um resultado muito maior do que o apresentado por eles para o número de Hilbert, como deveria ser”, diz o matemático “ou seja, não existe contradição entre os trabalhos”.

Um problema complexo

Para os matemáticos, não é surpresa que esse problema esteja em aberto há tanto tempo. Um dos principais motivos é a quantidade de detalhes que ele contém. “Apesar da formulação do problema ser relativamente simples, quando os especialistas começaram a trabalhar na questão ficou claro que ele encerra muita complexidade: algumas das tentativas de solução publicadas no passado se estendem por centenas de páginas”, diz o matemático Marcelo Viana, diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), no Rio de Janeiro. “Acredito que o problema seja muito mais complexo do que o próprio Hilbert esperava. Isso ajuda a explicar porque, ao longo desses 120 anos, tantos matemáticos acreditaram ter resolvido o problema, mas sempre acabaram descobrindo erros ou lacunas em seus argumentos”, afirma.

A grande quantidade de detalhes contidos no 16º Problema de Hilbert não apenas torna complicada sua solução, mas também os debates acadêmicos em torno do trabalho desenvolvido. Isso porque, após pesquisadores publicarem seus resultados, outros pesquisadores ao redor do mundo olham para o trabalho, refazem as contas e buscam por erros para chegar a um consenso se a solução é válida, ou se existem falhas no caminho.

“Em um problema com este histórico, o primeiro passo deveria ser apresentar o trabalho amplamente à comunidade, dar palestras no país e no exterior, explicar os argumentos para buscar convencer os especialistas. Eu venho conversando com pesquisadores que conhecem bem o tema, sobretudo no exterior, e a impressão geral é que o artigo dos três autores está longe de dar uma solução do 16º problema de Hilbert. A objeção levantada por Novaes e Buzzi é muito séria, e a réplica postada pelos três autores, que eu li com cuidado, não faz muito sentido”, afirma Viana. 

O processo de publicação e validação por pares é algo rotineiro dentro da comunidade científica e é o que garante o avanço dentro de cada campo. “A publicação de um artigo não encerra a responsabilidade do autor, ele também é responsável por difundir aquela ideia dentro da comunidade”, explica Leonel. “Nessa etapa, o autor fica exposto a críticas, tanto negativas, quanto positivas. Eventualmente, também pode acontecer do trabalho ter um erro e, nesses casos, o autor tem a chance de fazer uma correção e melhorar a qualidade do trabalho”, completa. 

No caso da matemática, o Brasil conta com um processo particularmente rigoroso, o que garantiu ao país um lugar no Grupo 5, que reúne as maiores potências mundiais em pesquisa matemática. Desde 2018 o país integra o seleto grupo ao lado da Alemanha, Canadá, China, Israel, Itália, Japão, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos. Isso foi possível graças à pesquisa e aos debates científicos desenvolvidos no país, “a publicação do artigo é um passo do desenvolvimento científico, ela significa que você está comunicando seus resultados e, após isso, começam as análises e os estudos em cima desses resultados”, explica Novaes.

Dada a complexidade do processo, muitas vezes podem levar anos até a comunidade científica chegar a um consenso sobre o resultado, “eu entendo que nós estamos na fase de aceitação, e essas validações requerem um escrutínio, então é uma troca intensa de mensagens e de discussões que passam ponto a ponto de todo o trabalho, com cientistas espalhados ao redor do mundo”, diz Leonel. Vieira completa que, na matemática, para um resultado ser considerado errado é preciso que se apresente um contra-exemplo, ou seja, um exemplo que mostre que o resultado obtido não é válido. “Os contra-exemplos apresentados na contestação não funcionaram para a teoria que desenvolvemos. E, até o momento, ninguém mais apresentou um possível contra-exemplo à nossa teoria”, afirma o matemático.

O futuro da solução do 16º Problema de Hilbert ainda é incerto. Entretanto, independentemente do resultado, o fluxo de discussões e ideias representa o cerne da matemática como uma ciência em constante evolução: a partir de diferentes metodologias e técnicas estabelece-se um debate que extrapola os limites de uma primeira publicação. Assim, seja com a confirmação ou a refutação da nova solução, as discussões que emergem a partir de novas ideias permanecem como oportunidades de aprendizado e avanço dentro da comunidade científica.

Na imagem acima: representação do matemático alemão David Hilbert