O lírico e o trágico na obra de Conceição Evaristo

Autora mineira tornou-se este ano a primeira mulher negra a ser convidada para integrar a Academia Mineira de Letras. Pesquisa analisa contos e romances para esmiuçar elementos característicos de seu trabalho e destaca abordagem inovadora da estética realista e tratamento particular da linguagem, ancorado em sua formação teórica em literatura.

Poucos nomes da literatura brasileira experimentaram um 2024 tão significativo como a escritora Conceição Evaristo, 77. Seu nome esteve nas páginas dos veículos de cultura que a celebraram como a primeira mulher negra a ser selecionada para integrar a Academia Mineira de Letras, teve sua vida contada em uma biografia, foi escolhida como personagem a ser homenageada na Feita Literária das Periferias em 2025 (evento que tem apoio do Ministério da Cultura) e viu seus versos “Nem todo viajante anda estradas”, que integram o poema Da calma e do silêncio, escolhidos para nomear a 36ª edição Bienal de São Paulo, que se iniciará ano que vem.

Embora sua obra esteja granjeando reconhecimento neste momento, Conceição não teve uma trajetória fácil no meio literário. Filha de empregada doméstica, nascida e crescida em uma favela de Belo Horizonte, a autora, hoje doutora em Literatura Comparada, demorou a ser considerada uma escritora séria, e sua obra ainda é relativamente pouco estudada nas universidades brasileiras. Um dos estudos pioneiros foi uma tese de doutorado defendida em 2023 no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, câmpus de Araraquara, pelo pesquisador Wagner Santos Araújo.

Araújo diz que um dos fatores que dificultaram a carreira literária de Conceição Evaristo foi uma certa elitização que vigorava no mercado editorial nacional até meados dos anos 2010. Aquele contexto tornava difícil encontrar autores negros na seção de literatura brasileira. Araújo diz que, no caso de Conceição, cuja escrita sempre foi centrada na experiência de mulheres negras e periféricas, a rejeição era dupla, e tanto a autora quanto seus temas eram tidos como secundários.

Admirador de romances e livros de contos como Becos da Memória (1988) e Olhos d’água (2014), o pesquisador quis fazer um movimento diferente e investigar os méritos literários da mineira, indo além das discussões sobre representatividade. “Queria colocá-la no cenário da crítica literária por meio de uma pesquisa que valorizasse a sua poética em diferentes gêneros textuais”, diz Araújo, que já possuía um doutorado em Linguística antes de ser aprovado no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Unesp em Araraquara. “Para isso, analisei diferentes tipos de prosa considerando a experiência e as memórias de mulheres negras no contexto da realidade brasileira.”

A pesquisa de Araújo sustenta que os textos de Conceição não seguem o modelo do realismo europeu ou brasileiro do século 19, e sim constroem o que ele denomina “realismo evarístico”: uma fusão de memória, crítica social, poesia e “escrevivência”—  conceito criado pela autora para se referir às histórias autobiográficas e coletivas marcadas por racismo e exclusão social. “Ela não apenas descreve a realidade objetiva, mas a transforma por meio de simbologias, metáforas e elementos subjetivos que conectam experiências individuais a perspectivas coletivas”, explica o pesquisador.

De acordo com a tese de Araújo, intitulada “As dimensões da poética realista nas narrativas de Conceição Evaristo“, a escritora dialoga com tradições como o realismo fantástico e o anímico, mas com um olhar afrocentrado. Um exemplo disso está em Ponciá Vicêncio (2017), romance em que a memória e os traumas da escravização permeiam os personagens de forma quase espiritual, misturando passado e presente de maneira fluida.

Outro exemplo é a presença dos simbolismos em Olhos d’água, conto de livro homônimo de 2014 em que a água se torna uma representação das lágrimas, da ancestralidade e do renascimento das personagens negras. Esse tipo de recurso, segundo Araújo, não busca descrever o impossível, mas dar nova camada de significado à realidade vivida.

Obra não se limita à militância

Araújo ressalta que, embora as questões ligadas à militância negra estejam presentes nos textos, não constituem o fator para o apelo que a literatura de Conceição exerce sobre seus leitores. O grande trunfo está no trabalho de linguagem. “O projeto literário dela é rico em representações que tratam de assuntos sérios dentro de um jogo metafórico”, opina o pesquisador.

Um exemplo dado por Araújo é o conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, presente em Olhos d’água, que narra a história de uma menina que é atingida por uma bala perdida enquanto brinca. As palavras e o tom escolhidos por Evaristo alternam entre a inocência poética e a secura dos fatos — uma literatura de contrastes. A tese observa que Evaristo frequentemente contrapõe em suas obras o lírico ao trágico, o belo ao cruel, a esperança e o desencanto. Em Ponciá Vicêncio, por exemplo, a descrição de momentos de paz e afeto são frequentemente seguidas por cenas de dor ou conflito.

Outro elemento característico da literatura de Conceição é o uso da oralidade. A autora incorpora expressões populares e cadências da fala cotidiana que dão autenticidade aos personagens e retratam o linguajar presente na vida nas periferias. Segundo a análise de Araújo, essa oralidade, uma tradição narrativa afro-brasileira, é uma escolha tão estilística quanto política. Sua função, afirma o pesquisador, é amplificar as histórias marginalizadas.

Transformar política em poesia

Paulo César Andrade da Silva, professor de Teoria da Literatura na Unesp de Araraquara e orientador de Araújo, pensa que a maior qualidade da mineira está em transformar questões políticas e sociais em matéria de poesia. É esse olhar poético que a destaca no cenário da literatura contemporânea. “Dos anos 1970 para cá, a gente observa um tipo de literatura que é muito centrado no discurso ou numa ética instrumental que se preocupa mais em levar uma mensagem, resultando, muitas vezes, num baixo nível estético”, diz. “E se nós falamos de literatura, não pode ser só política. No caso de Conceição Evaristo, ela tensiona muito bem questões estéticas e sociais com alta voltagem lírica.”

Andrade da Silva ressalta que, nesse esforço de construção de linguagem, a autora emprega a memória como sua principal matéria-prima. Como Araújo mostra na tese, a memória serve para prolongar o passado no presente. “Essa memória esticada no presente permite uma elaboração contínua de metáforas que evidenciam a subjetividade de mulheres negras e desafia os estereótipos”, opina. “Promove, no fim, uma reflexão crítica bastante criativa.”

Segundo os estudiosos, ao prezar por uma memória ancestral, a escritora expande a interioridade de suas personagens para uma experiência coletiva comum às mulheres negras e periféricas.

“Ela não escreve sozinha. Ela coloca partes do que viveu, partes do que a vizinha viveu, e combina em livros que aparentemente são fáceis, mas que verticalmente possuem recursos complexos e maravilhosos”, diz Cláudia Maria Ceneviva Nigro, do Departamento de Letras Modernas do campus da Unesp em São José do Rio Preto, que também pesquisa a obra da autora mineira. “Ela é um exemplo de que não existe esse intervalo entre vida e literatura. Na contemporaneidade, percebemos que ninguém é capaz de retratar uma essência. Sempre existem várias perspectivas. E a literatura da Conceição é muito consciente disso”, analisa.

Conceição Evaristo se encaixa, de acordo com Nigro e Andrade da Silva, no grupo dos escritores que são também críticos. “Como ela possui doutorado na área de literatura, a formação teórica caminha junto com o trabalho criativo, e uma coisa retroalimenta a outra”, diz Andrade da Silva. “Isso confere a ela um respeito por parte de outros críticos.” Nigro ressalta que, ainda que a escritora possua bastante bagagem teórica, ela passa longe do academicismo e de uma prosa pessimista e puramente cerebral. “Mesmo descrevendo um mundo horrível, ela ainda encontra espaço para a esperança e o poder do afeto”, diz.

Araújo diz enxergar, nas histórias de Conceição, elementos da sua própria família nordestina, que lutou para superar a pobreza. “Quando comecei a tese, ainda estava no processo de luto pela perda da minha mãe. Sempre a vi como uma mulher batalhadora, como aquelas retratadas nos livros da Conceição, então o processo todo foi quase terapêutico. E com um detalhe importante: minha mãe também se chamava Conceição.”

Graças a essa dimensão mais ampla e social da escrita da autora mineira, o pesquisador interpreta o crescente reconhecimento que sua obra tem alcançado como a celebração de “um processo coletivo de pertencimento. E um processo que foi renegado por muito tempo”, diz.

Imagem acima:  Conceição Evaristo em 2024, durante lançamento da Cátedra Pequena África, na sua Casa Escrevivência, na zona portuária da capital fluminense. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil