Futuro incerto para a Síria após o fim da guerra civil

Especialista em relações internacionais, docente da Unesp analisa a rápida queda do regime de Bashar al-Assad e a diversidade de interesses entre os rebeldes que tomaram o poder. Discussões sobre o futuro do país vão ser influenciadas pelos vários atores internacionais que apoiaram grupos durante o conflito, e que temem instabilidade na região.

A queda súbita e inesperada do regime de Bashar al-Assad jogou a Síria em um momentos decisivo de sua história. Não está claro se os vários grupos rebeldes que tomaram o poder após uma campanha relâmpago de apenas onze dias irão privilegiar a construção de uma era de paz e reconciliação entre os diversos grupos religiosos locais ou vão dar preferência a um governo islâmico radical. Essa é a avaliação de Sérgio Luiz Cruz Aguilar, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, câmpus de Marília, e especialista em relações internacionais.

A derrubada da família Assad, após mais de 50 anos no poder, foi sacramentada em 8 de dezembro, quando grupos rebeldes sírios entraram na capital, Damasco, após menos de duas semanas de combates no noroeste do pais. A ação pareceu pegar o regime desprevenido. Bashar al-Assad, líder do país desde o ano 2000, fugiu para a Rússia com sua família, onde obteve asilo político. A rápida entrada dos insurgentes em Damasco também surpreendeu os cidadãos e o resto do mundo.

Mas, na verdade, este  foi o capítulo final de uma guerra civil que se iniciou ainda em 2011, como parte do movimento conhecido como Primavera Árabe. Na época, o regime de Bashar al-Assad reprimiu uma revolta pró-democracia. À repressão, seguiu-se a formação de uma força rebelde, conhecida como Exército Sírio Livre, para combater as tropas do governo. Seguiram-se anos de guerra civil intensa. À certa altura, o Estado Islâmico, um grupo terrorista rebelde, também conseguiu se firmar no país e chegou a controlar 70% do território sírio.

Os combates aumentaram à medida que outros atores regionais e potências mundiais — incluindo Arábia Saudita, Irã, Estados Unidos e Rússia — se envolveram com os grupos beligerantes. O resultado foi o que alguns observadores descreveram como uma “guerra por procuração”. A Rússia, tradicional aliado da Síria, apoiou o governo de Bashar al-Assad para combater o Estado Islâmico e os rebeldes, enquanto os Estados Unidos lideraram uma coalizão internacional para repelir o grupo terrorista.

Após um acordo de cessar-fogo em 2020, o conflito permaneceu em grande parte “adormecido”, com pequenos confrontos entre os rebeldes e o regime de Assad. De acordo com a ONU, mais de 300 mil civis foram mortos em mais de uma década de guerra, e milhões de pessoas foram deslocadas pela região.

Sérgio Luiz Cruz Aguilar avalia os primeiros dias após a queda do regime da família Assad. “Como em qualquer conflito desse tipo, a situação continua muito fluida. A gente não tem exatamente um número de vítimas, nem sabe qual é a situação de segurança nas cidades ocupadas pelos rebeldes, principalmente na capital. Isso entre outras questões. O que se sabe é que realmente o governo colapsou”, diz.

 “Com certeza, os acontecimentos na Síria têm relação com os dois principais apoiadores de Assad, a Rússia, que está priorizando a guerra na Ucrânia, e o Irã, que em razão dos acontecimentos dos últimos meses não pode usar plenamente seus proxys que atuavam na região, como o Hezbollah”, diz.

Esse quadro enfraqueceu as forças do governo sírio mais recentemente. Porém, o fato é que, desde que foi estabelecido o cessar fogo em 2020, “os rebeldes foram se reestruturando, adquirindo mais capacidade e fazendo acertos e arranjos entre eles. Isso permitiu que vários grupos se juntassem numa grande e nova frente, e até planejassem juntos essa ofensiva. Eles usaram o vácuo provocado pelos apoiadores do Assad para avançar no país”, analisa.

Segundo Aguilar, o estado de fraqueza das forças do governo ficou evidenciada pelo fato de que a ofensiva levou poucos dias, e a marcha da coligação de grupos rebeldes para a capital enfrentou pouca resistência. Em onze dias, a Aliança Rebelde Armada ocupou as cidades mais importantes e conquistou a capital.

“Essa coligação, chamada de Comando de Operações Militares, é liderada pelo grupo Hayat Tahrir al Sham (HTS). Na realidade, a coalizão é composta por várias facções islâmicas e moderados que, apesar das suas diferenças, sempre estiveram unidas contra o regime de Assad, contra o Estado Islâmico e contra as milícias apoiadas pelo Irã”, diz Aguillar.

 O chefe do HTS, Abul Mohammed Al Jolanne, na realidade foi o líder da Al Nusra, que era afiliada da Al Qaeda na Síria. Com o tempo, ele buscou distanciar as suas forças do islamismo radical, tanto é que a Nusra combateu o Estado Islâmico dentro da Síria. “Em 2016, ele anunciou a separação da Al-Qaeda para criar uma frente antiregime, focada realmente na Síria, frente essa que agrupou outras facções locais. Primeiro, chamou-se Frente para a Conquista do Levante e mais tarde mudou o nome para Hayat Tahrir al Sham, o que significa, numa tradução literal, Organização para Libertação do Levante”, diz.

A nova coligação congrega vários grupos que controlam o território no país, dentre eles o Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, e as forças democráticas sírias, que são lideradas pelos curdos e que a Turquia vê como uma organização terrorista. O próprio HTS é considerado uma organização terrorista pelos Estados Unidos. “Essa descrição indica bem a complexidade da questão síria. Na realidade, a gente percebe uma evolução das forças rebeldes com o decorrer da guerra. Esses grupos rebeldes nunca foram totalmente unidos. Eles são compostos tanto por grupos liberais moderados, como por forças fundamentalistas islâmicas. A única coisa que realmente unia a todos era a oposição ao governo de Bashar al-Assad.”

Aguillar destaca a encruzilhada que se apresenta para o país no momento. Não está claro se os rebeldes irão buscar paz e reconciliação entre os sírios ou a instalação de um governo islâmico radical em um país que é heterogêneo em termos étnicos e religiosos. “A questão é de que forma se darão os arranjos de transição a fim de permitir, num primeiro momento, a continuidade do funcionamento das instituições sírias. A construção desse novo estado pós-guerra civil estará ligada a esses arranjos e, logicamente, à postura dos atores internacionais e regionais que têm interesses na resolução do conflito, mas também possuem suas agendas para o país e a região”, analisa.

Para Aguilar, as mudanças políticas na Síria irão afetar a comunidade internacional de diversas maneiras. A oferta de asilo político para Assad na Rússia é uma ação de praxe, tendo em vista a aliança de longa data entre o Bashar al-Assad e o Vladimir Putin. “O asilo é considerado um instituto humanitário no âmbito do direito internacional. Outros ditadores receberam asilo de países na história sem problema. Porém, a questão da Síria gera implicações sobre toda a região, e sobre o sistema internacional. Rússia, Turquia, Estados Unidos, Irã, Egito, Iraque, Jordânia, Qatar e Arábia Saudita, dentre outros, continuarão sendo fundamentais no futuro do processo político sírio.  A maior parte se mostra cautelosa e preocupada, mas  há alguns otimistas em relação ao futuro da Síria”, diz.

O presidente norte-americano Joe Biden descreveu o fim do governo do Assad como um ato fundamental de justiça, e afirmou que os Estados Unidos vão colaborar com grupos sírios no processo de transição para um país independente e soberano. Mas, ao mesmo tempo, reiterou que os EUA continuarão a lutar contra o Estado Islâmico. Nesses últimos dias, inclusive, houve bombardeios norte-americanos a posições do grupo terrorista.


“Toda essa mudança de poder na Síria está envolta em incertezas. Principalmente porque, dentro dos rebeldes, há uma série de grupos com interesses diferentes. Essa reorganização é fundamental porque, dependendo de como se realize, pode levar a uma maior instabilidade no país. O Estado Islâmico, por exemplo, pode tentar tirar vantagem desse vácuo de poder para aumentar a sua capacidade e até tentar novamente controlar certos territórios.”

Dados indicam que cerca de 14 milhões de sírios se tornaram desalojados ou refugiados durante a guerra civil, e o destino dessas pessoas também é motivo de preocupação. “Parte deles, com certeza, vai retornar às suas casas. Mas dependendo de como esse processo político se desenrolar, outros podem buscar partir, como desalojados e refugiados. E é uma preocupação principalmente para países da Europa como Alemanha, Áustria e Reino Unido, os quais no domingo (8/12) suspenderam os pedidos de asilo de cidadão sírio”, diz Aguillar.


Confira abaixo a entrevista com o professor no Podcast Mundo e Política.

Imagem acima: população celebra a queda de Assad em Damasco, em 8/12. Crédito: Depositphotos.