Descendentes de escravizados que voltaram à África no século 19, os Tabom tornaram-se um sub-grupo étnico local, mas não esqueceram o Brasil

Após a Revolta dos Malês, milhares de negros libertos se viram sem opções diante da perseguição ensejada pela elite do Império e decidiram voltar ao continente de seus antepassados. Hoje, a comunidade preserva memórias da vivência na América, e até o nome que adotou se originou da língua portuguesa.

A partir do final do século 18, e ao longo de todo o século 19, alguns homens e mulheres negros que residiam nas Américas e se libertaram da condição de escravizados decidiram empreender a longa jornada através do Atlântico e se estabelecer na África de onde vieram seus ancestrais. Embora pertencessem a diferentes grupos, o principal destino desses ex-escravizados era a região da África Ocidental. Porém, os motivos que levaram estes grupos a empreender esses retornos, o modo como cada um lidou com as circunstâncias desta volta e as interações que estabeleceram com os povos que encontraram do outro lado do Atlântico variaram bastante. Um destes grupos, denominado de Tabom, é o objeto de uma pesquisa conduzida pelo antropólogo Andreas Hofbauer, docente do Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília.

Hofbauer tem dedicado boa parte de sua trajetória acadêmica ao estudo de diferentes casos envolvendo as diásporas dos povos africanos. Pelo termo de diáspora, os pesquisadores se referem a um processo em que um grupo é forçado a deixar seu lugar de origem, muitas vezes em resposta a eventos extremamente violentos. É o caso da diáspora dos judeus, iniciada na Antiguidade, e também dos negros africanos, iniciada pela escravidão em larga escala.

Apesar de se deslocarem para muito longe de sua terra natal, os grupos de uma diáspora conseguem estabelecer redes de alcance transcontinental, que permitem que sujeitos que compartilham uma mesma identidade étnica ou cultural se mantenham num contexto de contato e de trocas. Um dos grupos estudados anteriormente por Hofbauer é o denominado siddi, afrodescendentes que residem na Índia há alguns séculos. Sua livre-docência focou a relação escravista entre indianos e a África, e sobretudo a luta dos siddi por melhores condições de vida no país asiático. O trabalho resultou no livro Diáspora africana na Índia – Sobre castas, raças e lutas, lançado em 2021 pela Editora Unesp, que foi agraciado com o ICAS Book Prize 2023, concedido pela International Convention of Asian Scholars, na categoria Língua Portuguesa e Espanhola.

Austríaco de nascimento, com doutorado pela Universidade de São Paulo e livre-docência pela Unesp, Hofbauer mais recentemente passou a investigar os deslocamentos de ex-escravizados das Américas de volta à África. Entre os tópicos que despertaram o seu interesse estão as diferentes maneiras pelas quais esses grupos heterogêneos de “retornados” se inseriram nas comunidades que permaneceram no continente africano. Seu foco está em um grupo proveniente do Brasil denominado Tabom, que se estabeleceu na região hoje conhecida como Gana.

Membros da comunidade Tabom tocam o agbe no pátio da Brazil House, centro cultural na cidade de Acra, em Gana

 “Me interessam as várias formas como esses grupos, arrancados da África, se inseriram na nova sociedade. Procuro compreender a contextualização desse processo, bem como as estratégias desenvolvidas para sobreviver, reagir e combater as discriminações, e as diversas formas de racismo sofridas pelas populações afrodiaspóricas”, diz o antropólogo.

As atividades previstas no projeto, que começou a tomar forma em 2019, incluem estudos bibliográficos e visitas às comunidades dos Tabom. A etapa de estudo de campo, porém, teve que ser postergada devido ao início e aos desdobramentos da pandemia de Covid-19. Hofbauer optou então por mapear a literatura existente acerca dos movimentos desses grupos através do Atlântico e no estudo da história desses deslocamentos. O resultado foi o ensaio Dos Retornos à África Ocidental – Diferenças e Semelhanças, publicado na revista Afro-Ásia, do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

A Revolta dos Malês

O docente do campus de Marília explica que o movimento de partida dos Tabom do Brasil está relacionado à Revolta dos Malês, um dos principais levantes de escravos em território brasileiro, que teve lugar em 1835, na Bahia. O  termo “malê” se referia aos negros islamizados e vinha da palavra iorubá para muçulmano, imalê. Na Bahia, os negros falantes da língua iorubá, originários de uma região que atualmente faz parte da Nigéria, eram chamados de nagôs. À época, vivia na Bahia uma minoria de ex-escravizados libertos que inclusive conseguiram alcançar algum grau de prosperidade.

Após a repressão da Revolta, a elite da província adotou uma série de medidas discriminatórias que dificultavam, e muito, a vida dos ex-escravizados. Tais ações, afirma o professor, incluíam leis que dificultavam a sua ascensão social, por exemplo impedindo os libertos de se tornarem cidadãos de fato ou instituindo impostos específicos para este grupo. Daí a decisão de parte desta comunidade de buscar condições menos adversas na África.

“Aqueles que decidiram retornar eram, em geral, pessoas dentro da população negra que tinham uma melhor condição financeira, uma vez que a própria travessia do Atlântico era cara”, diz o antropólogo. “Calcula-se que aproximadamente oito mil ex-escravizados voltaram para a África nessa situação. A maioria se estabeleceu no que hoje é a Nigéria, Benim e Togo. Um pequeno grupo se estabeleceu em Gana, e esta é a região menos pesquisada”, diz.

A aventura da volta

Apesar de optarem por voltar à África, a grande maioria dos retornados não se estabeleciam nos mesmos territórios habitados por seus ancestrais. Alguns tentaram, mas esbarraram em vários obstáculos. Um deles era a dificuldade para rastrear de forma acurada seus territórios ou aldeias de origem no contexto do tráfico de negros do século 19. E mesmo nos casos em que tal identificação foi possível, nem sempre havia condições favoráveis ao estabelecimento de populações vindas de fora.  Guerras e conflitos entre diferentes povos negros varriam com frequência a África Ocidental, em especial no seu interior. A partir dos fortes construídos nas costas do continente, as potências europeias incentivavam tais conflitos, já que os prisioneiros de guerra comercializados pelos vencedores serviam como base para o comércio de escravos.

Registro realizado por volta de 1890 da reunião do chefe dos Tabom (João Antônio Nelson, que posteriormente adotou o título Nii Azumah II, à esquerda, sentado), com outros chefes do grupo étnico Gã. O uso das vestimentas “ocidentalizadas” era uma forma que os primeiros chefes Tabom  usavam para se diferenciar dos demais e ressaltar sua experiência de vida no Brasil. A pessoa de barba branca era o chefe supremo dos Gã, Tackie Tawiah I, a quem todos os demais estavam subordinados.

“Existem relatos de pessoas que retornaram para a Nigéria e conseguiram se dirigir até o lugar de origem de seus ancestrais, apenas para descobrir que a aldeia havia sido arrasada”,relata Hofbauer  “O mais seguro era se estabelecer pelo litoral mesmo. A maioria dos retornados que chegou a  Benim, Nigeria, Togo e Gana ficou no litoral. Lá, eles se estruturam em torno das figuras mais poderosas e influentes que existiam por lá”, diz.

Um grupo qualificado

Estabelecidos principalmente em Acra, atual capital de Gana, os retornados se comunicavam principalmente em português e nas línguas de seus ancestrais, não dominando o idioma local. Por isso, era comum que empregassem no contato com os nativos a expressão “está bom?”. A corruptela acabou por nomear o grupo recém-chegado, os Tabom.

Os Tabom se integraram perfeitamente em um pequeno grupo étnico que habitava o litoral desde o século 16, chamado Gãs, que ergueram um estado em torno da cidade de Gã Mashie, hoje denominada Acra.  Os Gãs possuem uma estrutura social específica, na qual a figura mais importante é o rei. Abaixo dele, existem sub-reinos, que possuem seus respectivos governantes. “Os Tabom formam hoje praticamente um subgrupo Gã. Eles possuem um rei, que é chamado de Tabom Mantse. Esse rei é eleito entre os integrantes de duas linhagens que remontam ao grande líder original, que conduziu a primeira leva do grupo até Gana, e é reconhecido como o ancestral maior. Os reis são eleitos de forma alternada entre estas duas linhagens.”

Hofbauer explica que inicialmente a inserção entre os Gãs  também foi facilitada pelo fato de os Tabom dominarem tecnologias ainda pouco conhecidas na região. Um exemplo é a capacidade de perfurar poços, que teve, à época, um impacto importante ao facilitar o acesso dos habitantes à água potável. Junto com esse conhecimento, muitos dos ex-escravizados dominavam ofícios que foram valorizados no novo território, como alfaiate, sapateiro ou construtor de casas. “Ainda hoje existem poços que foram perfurados pela primeira geração de Tabom”, diz o antropólogo. E o fato de que os recém-chegados falavam português, que era a língua franca do comércio em grande parte do litoral da África Ocidental havia dois séculos, era outro atrativo.

Há indícios de que muitos dos primeiros Tabom tinham nomes muçulmanos, e a primeira mesquita de Acra foi construída por retornados. Por outro lado, esses homens da primeira geração apresentavam-se em público com roupas que sinalizavam o pertencimento a um “mundo da modernidade”, aproximando-se, assim, conscientemente ou não, daquele dos colonizadores europeus e, portanto, dos brancos. “Os Gã viram os Tabom como pessoas que tinham a possibilidade de dinamizar o comércio com o novo mundo.”

O Brasil relembrado e imaginado

Se o termo “Tabom” une, de certo modo, os descendentes daqueles que retornaram do Brasil, houve também dispersões, casamentos com integrantes de populações locais e transformações e adaptações em seus hábitos e costumes. O mais comum é que, quando perguntados sobre sua proveniência, os Tabom relatem uma percepção difusa do que seja o Brasil e evoquem alguns elementos da cultura brasileira. Mesmo assim, em suas viagens de campo a Acra, Hofbauer identificou elementos de tradições e práticas culturais que remetem ao Brasil.

 “Os Tabom conservam uma memória do Brasil que os diferencia dos demais grupos étnicos locais, e que está fixada em alguns elementos culturais”, diz o antropólogo, que em janeiro deste ano vivenciou sua estadia mais longa junto ao grupo desde o início do projeto.

Mural com referências ao Brasil e à chegada dos Tabom em Gana, que foi pintado no pátio da Brazil House.

Um exemplo dessa diferenciação é a  relação dos Tabom com a cultura iorubá e a referência a Xangô, uma das divindades presentes nas religiões de matriz africana. “Nas suas cerimônias, os Tabom cantam em iorubá, como fazem algumas nações de candomblé que estão no Brasil. Só que no candomblé, isto é, no Brasil, as referências a Xangô e às divindades iorubás servem como afirmações de uma identidade africana, de uma africanidade. Ou seja: é um esforço para se ligar, pelo menos simbolicamente ou mitologicamente, à África. No caso dos Tabom, ocorre o inverso. Quando invocam Xangô, eles lembram do Brasil, porque, para eles, foi essa divindade quem assegurou a volta deles à África”, explica.

Um dos momentos em que a identidade Tabom é celebrada é o agbe. Trata-se de uma tradição musical com elementos performáticos que envolve toques de tambor, danças e cantigas,  e incorpora diversos elementos iorubás (vários nomes dos instrumentos usados são de origem iorubana, por exemplo). O toque do agbe ocorre em funerais e em rituais dedicados a Xangô. Durante as cerimônias fúnebres, há um momento em que as pessoas presentes despacham o espírito do defunto de volta ao Brasil, para lá reencontrar-se com os ancestrais.

O pesquisador pode constatar a importância destes elementos ao testemunhar um funeral, no início deste ano. A falecida era uma proeminente sacerdotisa (Woyoo) da região, a única sacerdotisa de Xangô, e seu corpo foi objeto de diferentes procedimentos rituais. Em uma cerimônia testemunhada pelo antropólogo, os presentes entoaram cantigas em iorubá e conduziram danças ao redor do corpo, carregando objetos que deviam acompanhar a defunto em seu caminho para se inserir no mundo dos espíritos ancestrais. O ritual simbolizava o envio dos pertences para o Brasil. “De forma simbólico e performática, esses elementos remetem a um retorno da falecida ao país. Em seguida, a sacerdotisa foi colocada em um caixão que ostentava duas grandes e vistosas bandeiras do Brasil”, lembra o pesquisador.


Cânticos e danças ao redor do corpo de uma proeminente sacerdotisa (woyoo) da comunidade Tabom cerimônia fúnebre na cidade de Acra, em Gana
 

A cerimônia ainda percorreu diversas ruas do bairro em que vive a comunidade Tabom durante horas. Neste período, outros rituais fúnebres foram realizados, até que finalmente o corpo fosse enterrado. “Em alguns momentos específicos da vida dos Tabom, que são fundamentais para eles, aparece a ideia de que vieram de outro lugar, e uma identificação com um mundo diferente, que é o Brasil. Foi isso que se evocou no funeral”, diz.

E, para tornar ainda mais difícil a tarefa de mapear seus percursos do outro lado do mar, sabe-se que tanto os Tabom quanto outras comunidades de retornados das Américas valeram-se de suas conexões com a terra de origem e de seus domínios das línguas europeias para lucrarem com a escravidão. Alguns destes indivíduos se estabeleceram no litoral da África Ocidental e passaram a colaborar com o tráfico de escravos pelo Atlântico, que ainda era uma atividade econômica importante apesar de proibida pela coroa britânica ainda no início do século 19, em 1807.

“Ainda não consegui conversar sobre a escravidão com os Tabom, eles não falam sobre isso. Esse assunto envolve famílias em que alguns ancestrais foram traficantes de escravos e outros foram escravizados. Este tema segue, para muitos, como um tabu. Não só aqui, mas na África em geral”, diz Hofbauer.

Durante suas duas primeiras passagens pela Presidência da República, Luis Inácio Lula da Sila visitou por duas vezes a cidade de Acra, numa demonstração de apreço pelos laços que unem os Tabom ao Brasil. Seu ministro da Cultura, Gilberto Gil, apresentou-se por lá, e graças ao apoio da embaixada brasileira no país foi inaugurada uma casa destinada a servir como centro cultural, intitulado Brazil House, e cuja sala principal foi nomeada em homenagem ao intelectual negro brasileiro Abdias Nascimento. No momento, porém, o centro está vazio e inativo.

Enterro de uma proeminente sacerdotisa (woyoo) Tabom que leva em seu caixão duas bandeiras do Brasil

No entanto, talvez seja possível vislumbrar, no modo como os Tabom se adaptaram ao grupo dos Gã, e à sociedade de Gana, algum traço da cultura que eles deixaram para trás, quando deram adeus à América. Isso fica mais claro quando se comparam os Tabom a outros grupos de retornados oriundos dos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, a reorganização dos negros levados como escravizados se deu, em grande medida, nas igrejas protestantes. Nesse contexto, as reivindicações por liberdade e igualdade, articuladas pelos líderes, mesclaram-se com um espírito de evangelizar e “combater o mal” nesse mundo. Essa perspectiva resultou, posteriormente,  em um processo diferente de adaptação à África.

A Libéria, país situado na África Ocidental e que faz fronteira com a Guiné e Serra Leoa, foi fundada por negros libertos vindos dos EUA. Além de falantes do inglês, eles eram praticantes da religião protestante – em alguns casos, atuando como pastores. “Os retornos foram bem organizados e planejados, e financiados inicialmente pela American Colonization Society (ACS). Surgiu uma hierarquia interna em que a elite governante era formada por pastores e outros intelectuais vindos dos EUA. O idioma inglês foi imposto aos africanos que vivam por ali. Havia o objetivo de missionar e civilizar os africanos, e os escritos que as pessoas dessas elites produziram poderiam ter sido escritos por brancos da época, pelo tom em que se referiam aos negros africanos”, explica Andreas.

“Os líderes perseguiam um projeto civilizatório e de missão cristã, que se inspirava nitidamente no modelo da sociedade norte-americana. Uma espécie de EUA na África, mas com africanos e para africanos. Até a bandeira era uma imitação da bandeira dos EUA. O resultado final foi bastante problemático, já que resultou em muitos conflitos, e durante muito tempo.”

Na Bahia, os negros conseguiram reagrupar-se dentro das confrarias negras e, paralelamente, também em casas de candomblé muitas vezes – neste último caso, sobretudo os ex-escravizados. Isso resultou em um rompimento menos drástico com as cosmovisões africanas por parte dessa população. “Este fato repercutiu também na maneira como se inseriram na África após seu retorno”, diz Andreas.” Ao invés de civilizar os africanos, os Tabom se integraram mais facilmente, pois, em termos de estrutura social e política e de valores, estavam mais próximos do modo como as populações nativas viviam por lá. “Ao invés de querer transformar a sociedade ganesa, os Tabom tornaram-se um subgrupo dos Gãs sem deixar de cultivar certas práticas culturais por meio das quais lembram e afirmam seu vínculo com o Brasil.”

Imagem acima: membros da família Nelson reunidos em cerimônia festiva no casarão Alasha, um dos principais núcleos da família na cidade de Acra. Créditos das imagens: Andreas Hofsbauer.