Egressa da Unesp treina atletas com deficiência de países pobres em projeto de legado formulado pelo comitê paralímpico japonês

Especializada no esporte adaptado de alto rendimento, Sharly Yazaki vive no Japão e integrou programa que ofereceu apoio técnico e financeiro para ampliar o número de nações nos Jogos de Tóquio-2020. Iniciativa agora envolverá trabalho com paratletas de nações em conflito.

Sharly Natsu Yazaki nem consegue se lembrar da primeira vez que pisou em uma pista de atletismo. Nascida no município de Mirandópolis, no interior de São Paulo, a modalidade fez parte de sua infância e adolescência, como competidora das principais provas de velocidade. Nada mais natural, portanto, que ao definir seu futuro profissional optasse pela educação física —  mais precisamente, pelo curso de graduação na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, campus de Presidente Prudente, que abriga uma pista de atletismo de certificação nível 2 recém-reformada e habilitada para receber até competições internacionais.

Como estudante de graduação da Unesp, Sharly se dedicou com excelência às disciplinas, trabalhos acadêmicos e pesquisas, mas suas principais memórias estão relacionadas àquela pista, às competições universitárias e à convivência com o professor aposentado Dino CIntra, hoje treinador da finalista olímpica do salto em altura, Valdileia Martins. “Competir no Interunesp é uma das memórias que mais me marcam até hoje. Foi uma experiência intensa e vejo que até hoje é assim. Para quem compete em alto nível, o Interunesp não parece ser grande coisa. Mas, quem estuda na Unesp sabe o orgulho que é poder representar sua unidade”, lembra.

Ao terminar a graduação, Sharly continuou morando em Presidente Prudente e trabalhando em diferentes atividades relacionadas à prática esportiva, como professora de natação, instrutora de corrida e personal trainer. Os compromissos profissionais, entretanto, não a impediram de continuar frequentando o campus e a pista de atletismo, onde acompanhava os treinos ministrados pelo professor Dino Cintra para o curso de Educação Física.

Sua afinidade com o atletismo, que remontava à infância, instigou-a a optar por estudar fora do Brasil e se especializar como treinadora na área. A referência mais imediata para este tipo de formação envolve instituições em países que são potências no esporte, como os Estados Unidos ou certas nações europeias. Mas sua ascendência japonesa e o domínio do idioma ajudaram a abrir algumas portas na terra do sol nascente.

Opção pelo Japão

Sharly foi admitida na Nippon Sport Science University (NSSU), uma instituição reconhecida no Japão pelo ensino e pesquisa nas áreas de educação física, esportes e saúde, além de ostentar entre seus egressos diversos atletas de alto rendimento. Na NSSU, a brasileira foi contemplada com uma bolsa integral da Nippon Foundation oferecida a descendentes de japoneses. “Estudar no Japão era um dos meus sonhos. Quando eu tinha 15 anos visitei o país pela primeira vez e sempre tive vontade de voltar um dia”, lembra.

Em 2017, o Japão já se preparava para receber os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020 e o governo colocou em prática um conjunto de iniciativas que promovessem um legado positivo do evento. A universidade em que a ex-aluna da Unesp estava estudando implementou, com o apoio do governo japonês, o programa NSSU Expansion of Para-sports Participants (NEPP), a fim de multiplicar o número de países participantes na competição paralímpica. A meta era superar o recorde de 164 delegações registrado nos Jogos de Londres-2012.

A estratégia do programa envolvia identificar, em países de baixa renda e com pouca estrutura paralímpica, atletas e treinadores, e estabelecer um cronograma de treinamentos para prepará-los para os Jogos. De tabela, estabelecia-se aproximação e diálogo com os comitês paralímpicos locais, com o intuito de capacitá-los para que pudessem seguir incentivando o esporte adaptado de forma autônoma.

Por fim, o programa também procurou apoiar financeiramente a participação desses atletas em competições internacionais, o que abria oportunidade para que obtivessem sua classificação funcional, de acordo com o seu grau de deficiência. Quando havia concluído  seu mestrado na Universidade, e estava prestes a retornar ao Brasil, Sharly recebeu um convite de seu orientador para ingressar no programa.

“Participar dos Jogos é um processo complicado. Não é apenas se inscrever e pronto. Os atletas são divididos em muitas classes, e é preciso fazer uma classificação funcional prévia. Para isso, o atleta precisa participar de uma competição internacional, onde é feito esse diagnóstico médico. A partir daí, ele recebe um registro no sistema do Comitê Paralímpico Internacional e só então é liberado para competir internacionalmente. Entretanto, dependendo da estrutura do comitê paralímpico local, muitas vezes o atleta não consegue participar, porque esse processo demanda recursos e eles não têm esse dinheiro”, explica Sharly. O projeto trabalhou apenas com atletas do atletismo e da natação, que são justamente as duas modalidades que apresentam mais classes funcionais nos Jogos Paralímpicos.

Sharly na cerimônia de encerramento dos Jogos Paralímpicos de Tóquio-2020

Eventos olímpicos e paralímpicos não eram exatamente uma novidade para a ex-aluna da Unesp. Nos Jogos do Rio-2016, Sharly havia colaborado com uma das maiores emissoras de TV japonesa, a NHK, na transmissão das provas de atletismo olímpico e paralímpico. De dentro da pista, sua função era orientar os profissionais que estavam na cabine de transmissão do Estádio Nilton Santos, o Engenhão, sobre o andamento das competições, destacando a presença e o desempenho de atletas e paratletas japoneses nas provas.

Ainda assim, o trabalho com a NHK era basicamente de observação, assim como sua vivência nas disciplinas de esporte adaptado, cursadas na graduação em educação física da Unesp, não iam muito além da teoria.  O trabalho prático com esportistas com deficiência era algo que não havia experimentado, ainda. “No aspecto da preparação dos atletas, penso que o conteúdo do treino não apresenta muita diferença em relação ao atleta não paralímpico. Mas, o que muda é que o treinamento exige muito mais adaptação”, explica. Em virtude dos diferentes tipos de deficiência e da diversidade de corpos desses atletas, um mesmo programa de treinamento dificilmente vai funcionar para todos os competidores.

Sem piscina, treino no mar

Outro desafio era o perfil dos países participantes do programa, que não desfrutavam de uma infraestrutura adequada para a competição de alto rendimento. Sharly, por ser brasileira e ter fluência no idioma espanhol,  ficou responsável pela coordenação junto aos países da América do Sul e Caribe, que representavam um total de 15 nações.

“As maiores reclamações dos atletas desses países era a falta de estrutura e de apoio para os treinos”, diz a ex-aluna da Unesp. Em toda a região  do Caribe, por exemplo, existe apenas uma piscina olímpica, cujo uso é de prioridade dos atletas olímpicos. Os paralímpicos treinavam no mar. “De fato, é uma situação crítica. Isso muitas vezes se refletia em baixa motivação para os treinos. Tentamos motivá-los através do nosso apoio, e acho que conseguimos mudar um pouco essa mentalidade”, relata a treinadora.

Além do apoio financeiro para se inscrever nas competições internacionais, o programa proporcionava apoio técnico, que incluía visitas aos países para sessões de treinamento e reuniões dos atletas em centros regionais, que contavam com a presença de treinadores estrangeiros com experiência nos esportes adaptados. Estes eventos eram chamados training camps. Um sério desafio enfrentado pelos organizadores do projeto foi a eclosão da pandemia de Covid-19. O caminho adotado foi organizar encontros online com foco nas adaptações dos treinos, respeitando as preocupações sanitárias e o isolamento social.

Training camp para os atletas e treinadores um ano antes dos Jogos de Tóquio com participantes vindos de Papua Nova Guiné, Zâmbia, Malaui, Fiji, Vanuatu, Salomão, Butão, Granada, Maldivas e Paraguai.

“Eu coordenava o training camps e montava os programas de treinamento. A parte técnica dos treinos ficava a cargo dos treinadores de elite que convidávamos. Sabíamos que esse projeto teria um fim, então essa era uma forma de conectarmos ao máximo esses profissionais experientes, de grandes centros esportivos, com os profissionais dos países participantes do programa”, explica Sharly. “O mundo paralímpico não é tão grande quanto o olímpico, são poucas competições internacionais. E ainda hoje, nos eventos esportivos os participantes dos projetos e seus mentores se encontram e mantêm esse vínculo. Vejo como um dos legados positivos do projeto”, diz.

O projeto trabalhou com um total de 43 países. Destes, 31 enviaram representantes nos Jogos de Tóquio-2020. Destes, seis estavam estreando na competição: Paraguai, Butão, Maldivas, Granada, São Vicente e Granadinas, e Guiana. No total, 52 atletas, 22 mulheres e 30 homens participaram do evento. Destes, 24 registraram suas melhores marcas pessoais.

“A pandemia de Covid-19 acabou atrapalhando nossa programação e infelizmente não conseguimos alcançar nosso objetivo de superar 164 delegações nos Jogos. Ainda assim, Tóquio-2020 recebeu 161 nações, superando o número do Rio-2016”, celebra a treinadora. Para se ter uma ideia, os Jogos de Paris-2024 contam com 168 países, sendo três competindo pela primeira vez (Eritreia, Quiribati e Kosovo), além de uma inédita equipe de refugiados.

Quando deixou Presidente Prudente em direção ao Japão, o trabalho com o esporte adaptado de alto rendimento não estava no horizonte de Sharly. Hoje, a ex-aluna da Unesp se prepara para dar continuidade ao projeto, mas desta vez estimulando a participação de atletas de países e regiões em conflito ou refugiados. Olhando para trás, o balanço que faz do projeto é de um processo de aprendizado conjunto, tanto dela quanto dos atletas dos países participantes. “Trabalhar com tantas pessoas de tantos países diferentes foi, para mim, algo enriquecedor do ponto de vista cultural”, afirma.

A experiência com os atletas paralímpicos permitiu a Sharly repensar preconceitos que abrigava inconscientemente. Ela relata um episódio, ainda no início do trabalho, quando ficou em dúvida se as deficiências dos atletas não os impediriam de cumprir os programas de treinamento que ela estava elaborando. “Os treinadores mais experientes respondiam que sim, os paralímpicos podiam fazer tudo que os demais atletas faziam. Notei que aquilo era apenas o meu preconceito se manifestando, mesmo sem eu ter consciência. Fiquei com muita vergonha naquele momento, mas esse episódio simples abriu muito minha mente e a minha perspectiva em relação ao esporte adaptado”, diz.

Imagem acima: Sharly orienta o atleta Mama Saliu, de Guinea Bissau, deficiente visual, classe T 11. O corredor participou dos Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020 e de Paris 2024. Crédito das fotos: arquivo pessoal.