Rede com mais de 80 câmeras monitora impactos das mudanças do clima no ciclo de vida das plantas

Projeto, que acumula uma base de dados de mais de dez anos de registros de diferentes biomas brasileiros, agora se expande para o continente africano com o objetivo de entender as semelhanças e diferenças entre a savana africana e a caatinga brasileira.

A chegada da primavera é comumente associada com a ideia de nascimento e crescimento de folhas, flores e frutos, – que estavam “adormecidos”, após as frias temporadas de outono e inverno. Entretanto, diferentes tipos de vegetação têm ciclo de vida distintos, algumas se desenvolvem no inverno, outras em meios secos, algumas, inclusive, sobrevivem em ambientes de temperaturas extremas. Nesse fluxo de crescimento e queda de folhas, o ambiente tem um papel essencial, sendo ele um dos principais responsáveis por ditar o comportamento da flora ao redor. 

Essa dinâmica, entretanto, é menos exata do que aparenta. O clima, a luminosidade, as chuvas, são alguns exemplos de fatores que podem influenciar no comportamento das plantas: períodos de maior luminosidade, podem fazer com que algumas espécies mantenham sua folhagem por um tempo maior do que o previsto. De forma semelhante, queimadas podem servir para impulsionar o crescimento de alguns tipos de vegetação. Identificar esses padrões de comportamento e a maneira como a flora responde às influências do ambiente, é o foco do campo da fenologia de plantas.

Tradicionalmente, pesquisadores vão até o campo e registram manualmente as características da vegetação que estão estudando, ou utilizam imagens de satélites para acompanhar os progressos em uma área maior. No primeiro caso, uma das principais problemáticas está relacionada ao orçamento para manter o grupo de pesquisa que precisa realizar viagens por, pelo menos, um ano – o tempo mínimo para conseguir obter algum padrão do ciclo de vida da vegetação estudada. O ideal, entretanto, é que essas pesquisas sejam feitas ao longo de muitos anos, até mesmo décadas, para que seja possível perceber como a vegetação responde às mudanças climáticas que ocorrem na região. No caso dos satélites, uma das questões é a baixa resolução das fotos e possíveis interferências, como a presença de nuvens.

Para lidar com esses entraves na pesquisa, há 10 anos, a pesquisadora Leonor Patricia Cerdeira Morellato, docente do Instituto de Biociências da Unesp, no campus Rio Claro, começou a explorar o uso de câmeras fotográficas em estudos de fenologia. Junto com a então mestranda, Bruna Alberton, Morellato instalou uma primeira câmera no Cerrado, no município de Itirapina, interior de São Paulo. O aparelho foi programado para funcionar diariamente, das 6h da manhã até às 6h da noite, tirando fotos de hora em hora, ao final do dia a dupla tinha 13 fotos e, no fim do mês, 390 registros. A investida foi um sucesso e, hoje, o grupo conta com uma rede internacional de câmeras, apelidada de e-Phenology. 

“Essa é a primeira e a maior rede de câmeras dos trópicos”, relata Morellato. Atualmente existem cerca de 80 câmeras instaladas no Cerrado, na Caatinga, na Mata Atlântica e na Amazônia mas, também, em destinos fora do país, como nas savanas da Namíbia, da Angola, da República Democrática do Congo e da Tanzânia. Desde então, o grupo tem estudado não apenas os padrões das vegetações, mas também têm desenvolvido ferramentas computacionais para melhorar a identificação de determinadas espécies e desenvolvido análises sobre a qualidade das imagens espaciais.

A folha é o órgão mais importante da planta

A fenologia compreende diferentes etapas do ciclo vegetal e pode incluir estudos sobre a frutificação, a floração, ou até mesmo analisar a relação entre animais e plantas. O grupo coordenado por Morellato, entretanto, tem como principal foco, o estudo do ciclo de vida das folhas, desde a fase de crescimento até sua queda. “As folhas são um dos órgãos cruciais na vida das plantas”, afirma Alberton, que hoje está desenvolvendo seu pós-doutorado sob supervisão de Morellato “é por meio delas que as plantas se ‘alimentam’ ao retirar o carbono da atmosfera, e realizam as trocas gasosas através da fotossíntese e da respiração”.

Segundo a pesquisadora, o crescimento das folhas é fortemente afetado por alterações climáticas, ou seja, se o clima começar a mudar, o ciclo de vida das plantas vai acompanhar essa alteração e isso impacta ecossistemas inteiros. Por esse motivo, entender como cada vegetação se comporta e de que maneira ela responde a diferentes estímulos pode ajudar no planejamento de melhores técnicas de conservação, ou mesmo de recuperação de ecossistemas. Um exemplo é uma pesquisa realizada pelo grupo de Morellato, cujo objetivo foi investigar de que maneira a vegetação de campos rupestres, na Serra do Cipó, se recuperava após um evento de queimadas.

Manutenção dos equipamentos e captação de dados das câmeras posicionadas na Serra do Cipó, em áreas que foram atingidas por queimadas naturais. (Crédito: Bruna Alberton)

Campos rupestres são um tipo de vegetação que ocorre em áreas montanhosas do Brasil. Identificados como parte do Cerrado, esses ambientes apresentam uma alta diversidade vegetal, abrigando muitas espécies endêmicas. No artigo Monitoring immediate post-fire vegetation dynamics of tropical mountain grasslands using phenocameras, publicado na revista científica Ecological Informatics, o grupo posicionou câmeras em quatro regiões distintas, que tinham acabado de passar por uma queimada natural. 

Isso permitiu a equipe analisar como o fogo influenciou na velocidade de crescimento das plantas de 4 tipos de vegetação diferentes: pastagens úmidas e turfeira, ambas com mais acesso à água; o afloramento rochoso e a pastagem pedregosa que, como os nomes indicam, apresentam espécies adaptadas para sobreviver a baixas umidades. Comparando as fotografias do desenvolvimento dessas vegetações em situações em que não houve uma queimada, com as imagens que acompanharam o crescimento pós-queimada, o grupo percebeu que todos os quatro tipos de vegetação observadas cresciam mais rapidamente após a queimada, com destaque para as duas áreas mais úmidas. 

“Essas câmeras são boas porque nos permitem identificar melhor qual gatilho faz com que uma planta comece a produzir folhas ou pare com essa produção. Essa detecção me diz o quanto o clima está influenciando a dinâmica daquela vegetação”, afirma Morellato. Nesse sentido, no artigo, Relationship between tropical leaf phenology and ecosystem productivity using phenocameras, o grupo pôde identificar que, enquanto os ciclos de vida da vegetação de Caatinga era influenciada, principalmente, pela disponibilidade de água e pelas chuvas, o Cerrado, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica tinham, como principal gatilho, a quantidade de horas de luz que ficavam expostas ao longo do dia.

Além de permitir identificar esses padrões de comportamento e respostas ao ambiente, o grupo de Morellato percebeu que o uso das câmeras, ou fenocamêras, como também são chamadas, pode ser feito em conjunto com as informações dos satélites. Em especial, elas podem ser utilizadas como mecanismo de validação dos dados obtidos por imagens espaciais. 

A importância da escala

Atualmente, os satélites são uma importante fonte de informação para os estudos de fenologia foliar, pois permitem captar dados de uma ampla região para observar seu verdejamento, ou seja, quantas plantas estão realizando fotossíntese, algo que é possível determinar a partir do quão verde uma área está. A partir do padrão de cor obtido, é possível identificar em qual fase do ciclo de vida as plantas estão e, com isso, traçar os padrões de comportamento da vegetação retratada. Essa técnica, entretanto, tem algumas problemáticas: apesar de captar imagens de uma extensa área geográfica, os satélites podem ter a qualidade da imagem afetada por interferências, como as nuvens ou a distância que estão da Terra, e, além disso, demoram muito tempo para fotografar. Enquanto as fenocâmeras capturam fotografias a cada hora, os satélites costumam gerar uma foto por semana da mesma região. “Esse é um tempo muito longo para acompanhar o desenvolvimento de vegetações que, por vezes, pode acontecer muito rapidamente, em questão de dias”, afirma Alberton.

Além disso, apesar de amplamente utilizado, ainda existem poucos trabalhos validando os valores de verdejamento obtidos pelos satélites. Nesse aspecto, as câmeras podem servir como apoio, confirmando as informações apresentadas nas imagens espaciais a partir de “um olho na Terra”. “A fotografia das fenocâmeras é parecida com o olho humano, ela gera uma imagem RGB”, explica Morellato. Essa sigla se refere aos diferentes comprimentos de onda captados pelo olho e que são capturados em cores: R, para vermelho; G, para verde; e B para azul. “Na foto, nós conseguimos isolar esses canais e filtramos a cor verde e, com isso, podemos entender o verdejamento no sistema e tudo o que está acontecendo. Nós conseguimos ver as plantas produzirem e perderem folhas a partir da cor verde”, diz.

Foto estilo olho-de-peixe captada pela primeira câmera instalada em uma antena em Itirapina: localizado acima das copas, o equipamento está em operação desde 2014. (Crédito: Bruna Alberton)

Assim, é possível comparar os dados de verdejamento obtidos pelas câmeras, que são registros mais confiáveis do que está acontecendo em terra, com as informações registradas pelos satélites e, a partir disso, ver o quanto elas são fidedignas. Buscando explorar os potenciais de combinar as fenocâmeras com os satélites, em colaboração com um grupo internacional, Morellato e Alberton participaram de uma pesquisa na qual analisaram o grau de precisão da imagem obtida pelos três satélites mais utilizados nos estudos de fenologia: o PlanetScope, que conta com uma precisão de 3m;  o Sentinel-2, com 10m de precisão; e o Landsat-8, com 30m. As informações obtidas pelos satélites foram validadas com os dados extraídos das fotografias das fenocâmeras e, a partir disso, foi possível confirmar que o PlanetScope era o mais preciso, seguido pelo Sentinel-2.

“Uma das qualidades do satélite é, justamente, a capacidade de abranger uma grande área geográfica, algo que é limitado no uso das fenocâmeras”, destaca Alberton. Assim, o grupo defende que as fenocâmeras não substituem o uso de imagens espaciais, mas podem validar as informações de satélite e melhorar a acurácia do monitoramento da vegetação.

Novas investidas

Após funcionar de maneira ininterrupta por mais de dez anos, as câmeras que compõem  a rede e-phenology registraram de perto ciclos de vida completos e transformações das vegetações em mais de 30 lugares diferentes. Isso rendeu ao grupo uma extensa base de dados e hoje, um dos focos é tentar entender de que maneira as plantas respondem a eventos climáticos extremos. Essa iniciativa deu origem ao Projeto Temático Fapesp “O impacto da variabilidade climática e dos extremos climáticos na fenologia vegetal e suas implicações na biodiversidade”, feito em colaboração com a Fundação Nacional de Ciências Naturais da China e a Fapesp. Pelos próximos dois anos, o grupo de pesquisa irá identificar quais regiões, onde as câmeras estão instaladas, sofreram com eventos climáticos extremos e vão acompanhar de que maneira a vegetação da área reagiu a esse impacto.

Um dos objetivos desse trabalho é identificar de que maneira essas alterações do clima afetam a biodiversidade, além de desenvolver entendimentos de como a flora responde a secas extremas. “Como já existem modelos de estudos de clima que indicam como o ambiente e o clima irão mudar, ou estão mudando, ao estudar a resposta das plantas, vai ser possível entender mais a fundo os efeitos das mudanças do clima nos diferentes tipos de vegetação”, afirma Morellato.

Além dessa empreitada, em 2022 o grupo iniciou a expansão da rede de fenocâmeras para além do Oceano Atlântico, com o objetivo de estudar as vegetações tropicais sazonalmente secas na África, como é o caso das savanas. Intitulado PhenoChange: rumo a uma rede global de monitoramento fenológico dos trópicos secos e financiado pela FAPESP e pela Agência de Pesquisa e Inovação do Reino Unido (UKRI), o projeto levou à instalação de fenocâmeras  na Namíbia, na Angola, na República Democrática do Congo e na Tanzânia sob a coordenação, no Brasil, da Dra Desirée Marques Ramos e no Reino Unido, do Dr Kyle Dexter, da Universidade de Edimburgo.

Cerca de meio bilhão de anos atrás a África e a América do Sul, faziam parte de um mesmo mega continente, Gondwana, que também incluía a Austrália, a península Arábica, a Índia e a Antártida. Resquícios desse passado podem ser vistos na costa brasileira se “encaixando”, como uma peça de quebra-cabeça, no lado oeste do continente africano. Entretando, o grupo de pesquisa de Morellato desconfia que outras semelhanças perduraram ao longo dos milênios e, uma delas, seria o comportamento das vegetações de cada local.

Com isso em mente, o objetivo da pesquisa é verificar os padrões e as semelhanças de comportamento entre as chamadas “vegetações sazonalmente secas”, como é o caso da caatinga e da savana, em países da África e no Brasil. Compreender como as plantas de cada local respondem ao ambiente, e de que maneira esse comportamento é semelhante ou não, contribui para um entendimento amplo sobre essas vegetações e suas respostas em escala global. Isso, por sua vez, produz informações que podem ser incluídas em trabalhos de modelagem terrestre, que buscam, por exemplo, fazer previsões sobre os impactos das mudanças climáticas. 

Segundo os pesquisadores, os biomas tropicais secos cobrem 18% das terras do planeta e têm um papel importante nos estudos de fenologia por responderem rapidamente ao clima. Apesar disso, eles ainda são pouco estudados, o que gera uma lacuna no desenvolvimento de modelos mais elaborados ou pesquisas que pretendem abordar questões climáticas tropicais e globais. Uma das dificuldades em estudar esses ambientes é a grande área que eles ocupam e os altos custos para ter pesquisadores em campo constantemente, para acompanhar e anotar todas as alterações da vegetação ao longo de anos. Assim, as fenocâmeras se apresentaram como uma importante solução “elas são um método barato e que permitem estudos de larga escala, sem precisar enviar um colaborador regularmente para coletas de campo ao longo de muito tempo”, afirma Morellato. Com as câmeras posicionadas, basta um colaborador ir até o local uma vez ao mês ou, quando são regiões mais distantes, uma vez a cada três meses para recolher os dados. 

Alberton, que viajou para a Namíbia e para a Angola para acompanhar a Dra. Ramos e outros colaboradores nas instalações das câmeras, destaca que cada ambiente tem uma particularidade e um desafio. Enquanto, no Brasil, já enfrentou problemas técnicos causados por formigas, abelhas e vespas, do outro lado do Atlântico, a equipe teve que se adaptar à realidade de grandes mamíferos. “Os babuínos e os elefantes são muito curiosos, eles mexem mesmo nas câmeras. Então, junto com nossos colaboradores de lá, nós precisamos colocar o equipamento em caixas super fechadas, para que elas passem despercebidas”, lembra. Todas essas iniciativas de monitoramento e seus pesquisadores associados estão agora consolidadas em um novo CEPID-FAPESP, o Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Mudanças do Clima, CBioClima recém-lançado, também coordenado pela professora Morellato.

Imagem acima: Instalação da primeira fenocâmera em 2014, em Itirapina, interior de São Paulo (Crédito: Bruna Alberton)