“Hoje, no Brasil, o aborto é um direito das mulheres protegido constitucionalmente”

Professora de Direito Constitucional da Unesp e autora de livro sobre o tema diz que projeto de lei que equipara aborto tardio ao homicídio doloso contraria jurisprudência já estabelecida pelo STF, e critica clima de atrito entre Legislativo e Judiciário, que deu origem à proposta. “Partidos querem usar corpos das mulheres para fazer promessas de campanha”, diz.

Na última semana, um furacão em forma de projeto de lei varreu o debate público e político brasileiro. O Projeto de Lei 1904/24, que propõe igualar a prática de aborto após a 22ª semana ao homicídio doloso, abrangendo mesmo os casos em que a gravidez se deu por estupro, e a mulher envolvida é menor de idade, despertou críticas até de fora do Brasil. Porém, para Soraya Regina Gasparetto, que é Livre-docente em Direito Constitucional e professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Araraquara, um dos problemas é que se trata simplesmente de uma legislação inconstitucional, que contraria entendimento já estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal há anos.

Soraya Gasparetto há muitos anos acompanha o debate sobre direitos reprodutivos, que se espalha da sociedade civil para o âmbito dos poderes Legislativo e Judiciário. Além de seguir as propostas de legislação e decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, ela também monitora o estado da discussão em outros países. O resultado desta investigação é o livro O caso da gravidez indesejada: dilemas éticos e jurídicos sobre o aborto. a obra conquistou leitores inclusive fora do Brasil, e lhe valeu convites para aulas e palestras na Europa e na América Latina. Nesta entrevista ao Jornal da Unesp, ela apresenta suas críticas ao PL 1904 e fala sobre as diferentes formas como as Cortes Supremas têm examinado e lidado com a questão do direito ao aborto.

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Do ponto de vista do Direito Constitucional, que avaliação a senhora faz do projeto de lei 1904/24, que equipara o aborto realizado após a 22ª semana ao crime de homicídio doloso?

Soraya Gasparetto: O Projeto de Lei 1904 de 2024, além de apresentar uma ideia bastante equivocada, é muito mal feito, no aspecto da técnica legislativa. E, além de ter um objetivo equivocado, e a gente fala assim porque sua proposta é bastante perversa, ele é absolutamente inconstitucional. Na minha avaliação, o que temos é um caso claro de inconstitucionalidade.

Por que inconstitucional?

Soraya Gasparetto: Hoje, no Brasil, o aborto constitui um direito das mulheres protegido constitucionalmente. Em 2016, ao julgar o habeas corpus 124.306, a 1ª Turma do STF examinou um pedido de soltura de médicos denunciados por crime de aborto. Com relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, o tribunal ordenou a soltura porque considerou inconstitucionais as normas do Código Penal que criminalizam o aborto voluntário no primeiro trimestre da gravidez. A decisão invocou os direitos da mulher à liberdade, à integridade física e psíquica, e o direito à igualdade, e ponderou que deve ser protegido o poder de escolha das mulheres. E o STF considerou, também, que a penalização é ineficaz e desnecessária, porque causa sofrimento e riscos de saúde e não impede os abortos ilegais.

E, de acordo com o habeas corpus 124.306, no primeiro trimestre de gravidez não haveria vida. Essa é a grande questão do embate: a partir de que momento se forma a vida. Então, por o Supremo entender que não haveria vida, não haveria também crime na interrupção da gravidez.

Essa é a mais recente decisão definitiva do tribunal sobre o tema. Ora, se o aborto é um direito da mulher no primeiro trimestre da gravidez, sem que ela seja obrigada a justificar sua decisão, o que dizer da punição do aborto de mulheres que sofreram estupro? O que a Câmara dos Deputados deseja legislar só torna mais grave a inconstitucionalidade do Código Penal conforme a jurisprudência do Supremo.

Mas não é estranho pensar que o Código Penal pode ser inconstitucional?

Soraya Gasparetto: A nossa Constituição é de 1988, e o Código Penal é de 1940. É de um outro tempo, anterior à ditadura militar, uma legislação que, em muitos sentidos, não é a mais adequada para a realidade da sociedade. Várias normas do Código Penal já foram questionadas como inconstitucionais. É uma norma muito antiga e desatualizada, que precisaria ser revista. E muitas questões do Código Penal estão em discussão, mas decisões definitivas quanto a sua inconstitucionalidade não acontecem, principalmente por causa dessa resistência que o Poder Legislativo tem em relação às decisões do Supremo.

A própria iniciativa desse PL é mais uma demonstração dessa oposição que vem se consolidando entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo. O Poder Legislativo apresenta esse projeto de lei meio que reagindo à decisão anterior do STF. É uma espécie de embate de poderes, que é uma posição ruim para a democracia. Toda vez que o Poder Judiciário toma uma decisão que não agrada ao Poder Legislativo, o Legislativo tem como reação uma espécie de vingança: ‘se você decidiu isso, então eu vou fazer um projeto de lei pior’. Nesse caso, o pior é a condição de autodeterminação das mulheres acerca do tema do aborto.

Me parece que, em alguma medida, durante um bom tempo houve um respeito entre o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, algo bastante positivo. Mas atualmente essa convivência parece ter mudado um pouco. Do ponto de vista democrático, é muito ruim que, ao invés de dialogarem e tentarem chegar a um consenso, as instituições se vejam nessa situação de confrontação.

É curioso que, de um tempo para cá, os partidos políticos estejam abordando essa pauta, que chamam de pauta de costumes, na forma de propostas políticas de campanha. Então, questões que deveriam ser analisadas mais do ponto de vista da saúde pública, das políticas públicas, e até mesmo do ponto de vista social, vêm sendo tratadas sob aspecto mais religioso, na esfera da pauta de costumes morais.

É importante o legislador entender a relevância da sua atuação também do ponto de vista técnico. Estamos falando de políticas públicas de saúde, de educação e de estrutura da sociedade. Nesse ponto está a importância de que esses temas sejam pensados mais de um ponto de vista técnico do que moral.

E para além da questão constitucional, o que se pode dizer do projeto?

Soraya Gasparetto: Esse projeto de lei acaba equiparando a prática do aborto ao homicídio doloso por parte da gestante. O homicídio doloso é, praticamente, o crime mais grave do Código Penal. E há o grande problema da demora que, muitas vezes, acontece até que a mulher consiga fazer o aborto. Muitas vezes, essa demora se dá por falta de acesso a meios adequados. Então, o projeto de lei poderia pensar em proporcionar uma condição melhor para a saúde sexual reprodutiva das mulheres. Ou poderia pensar na questão do acesso a métodos contraceptivos… São vários os problemas nessa área que poderiam ser tratados. Mas querer equiparar o aborto legal, realizado após a 22ª semana, ao homicídio doloso, como nesse caso, é punir duas vezes a vítima.

E, via de regra, quem vai praticar o aborto após a 22ª semana de gestação é uma menina que sofreu estupro, e demorou muito tempo para constatar que estava grávida. Muitas vezes isso é descoberto na escola, nem a família sabe. Temos meninas de 10, 11, 12 anos que descobrem, muitas vezes, que estão grávidas depois desse período. E, quando isso acontece, ao invés de se dar apoio a essa criança, que não tem a menor condição de ser mãe, pois é uma criança também, se diz que ela não pode fazer um aborto, porque essa gestação já está na 22ª semana. É bastante cruel.

E tenho que dizer também que essa proposta de legislação, além de inconstitucional, tecnicamente ruim e perversa, também é injusta. Porque não estabelece nenhum tipo de punição para o homem, que é tão responsável pela gravidez, ou muito mais responsável pela gravidez, na maioria das vezes, do que a mulher. Em relação ao estupro, nós temos uma previsão sim. Mas, e quanto ao aborto? O homem não tem nenhum tipo de responsabilidade em relação ao aborto? É claro que tem. Mas essa legislação se omite em relação à responsabilidade do homem.

A senhora escreveu um livro que compila as decisões de diversas cortes institucionais sobre o tema do aborto. O que pôde perceber?

Soraya Gasparetto: Eu escrevi junto com o professor Dimitri Dimoulis (FGV). O livro apresenta as decisões de cortes constitucionais em mais de 20 países, incluindo Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Coreia, Espanha, Eslováquia, Turquia, Estados Unidos, França, Hungria, Índia, Irlanda, México e Nova Zelândia… De cada país traduzimos a decisão e fizemos um resumo de, mais ou menos, uma página e meia, para que todos os leitores pudessem contar com um panorama.

Um aspecto bem interessante nesse assunto é que, por se tratar de um tema muito sensível socialmente, os legisladores em geral não querem lidar com ele de uma forma decisiva. Quem acaba tomando as decisões são as cortes constitucionais.

O cenário que temos é o seguinte: toda a Europa legalizou o aborto até a décima segunda semana, e alguns países adotam um prazo um pouco maior. Até em países mais conservadores, como a Turquia, o aborto está legalizado desde 1972. E na França, onde há muitos anos se permite que as mulheres tomem essa decisão, agora esse direito foi adicionado à Constituição.

As cortes constitucionais do mundo vão estabelecer essa decisão a partir de uma definição do momento em que se inicia a vida, e a mulher pode optar por manter ou não a sua gravidez. É um tema de autodeterminação que permite a mulher se perguntar: posso ser mãe nesse momento? Eu tenho condições econômicas, emocionais e sociais?

Em cada país, levam-se em conta também elementos diferentes. Alguns, como a Índia, por exemplo, consideram o aspecto econômico. Será que essa mulher tem condição econômica de manter um filho sem causar privações para ela e para o restante da sua família? Isso é analisado na hora da decisão. Outros avaliam elementos psicológicos: se a pessoa está sofrendo, e que tipo de sofrimento ela enfrenta.

Um ponto que me chama bastante atenção na atualidade é que, em alguns países, temos observado um retrocesso. Nos Estados Unidos, por exemplo, houve uma mudança da jurisprudência depois que a ministra [Ruth] Ginsburg, que era ministra da Suprema Corte americana, morreu. Ela era a fiel da balança, no caso da decisão sobre o aborto. Após a morte dela, e a nomeação de outra juíza mais conservadora, mudou-se a decisão dos Estados Unidos. E de forma curiosa. Não se estabeleceu que o aborto era ilícito, mas sim que cada estado tem o direito de estabelecer sua legislação. Ou seja, cada estado nos Estados Unidos vai ter uma legislação diferente.

No Brasil também temos um movimento mais conservador, que acaba ocasionando um retrocesso e coloca em risco as poucas conquistas das mulheres. Temos uma situação em que os partidos políticos acabam usando o corpo da mulher para fazer promessas de campanha.

Imagem acima: Membros do movimento “Criança não é Mãe” realizam protesto contra o PL 1904 em Brasília. Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil