“Se criamos um pacto de silêncio, impedimos que o outro desenvolva sua consciência”

Historiador, ativista e brasilianista, James N. Green analisa o surgimento e as dificuldades enfrentadas pelo movimento LGBTQIA+ no Brasil, e os desafios representados pela ascensão de governos de extrema-direita em todo o planeta. “Historicamente, a ultradireita aponta a homossexualidade como exemplo de decadência da sociedade. Nosso desafio é forjar alianças interacionais para enfrentá-la.”

Há 60 anos, uma articulação entre políticos conservadores, elites econômicas e forças armadas, somada à expressiva pressão de setores da população, resultou em um golpe de Estado e na consequente implantação de um regime militar. O retorno da democracia só veio mais de duas décadas depois, e exigiu, por parte dos mais diversos setores da sociedade, manifestações e mobilizações em defesa da liberdade e de direitos. Estudantes, artistas e intelectuais, por exemplo, formaram a linha de frente na famosa passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro, em 1968.Os operários do ABC que protagonizavam as primeiras grandes greves do país após o golpe produziram uma célebre comemoração de 1º de maio no ano de 1980. No caso da comunidade LGBTQIA+ brasileira, porém, sua mobilização contra a opressão exercida pelo regime militar e em defesa do retorno à democracia é pouco conhecida, e menos ainda, debatida. Este é justamente o tópico de pesquisa e de interesse do historiador, brasilianista e ativista James N. Green, professor da Brown University.

Autor do livro “Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil no século XX”, Green combina sua vivência política com o rigor acadêmico para explorar e evidenciar histórias muitas vezes não contadas. Seu trabalho busca entrelaçar a história do Brasil à história dos movimentos democráticos, esmiuçando o surgimento e o estabelecimento de movimentos sociais e políticos LGBTQIA+. Não por acaso, sua mais recente obra,  “Escritos de um viado vermelho”, publicada pela Editora Unesp, teve seu lançamento marcado para este ano em que se completam seis décadas do golpe.

O novo livro é uma coletânea de ensaios de Green, em que relata as circunstâncias que originaram seu envolvimento com o Brasil, país sobre o qual não dispunha de qualquer informação e cuja língua ignorava por completo. Os textos abordam sua militância em movimentos LGBTQIA+, em organizações de defesa da democracia e direitos humanos e em iniciativas de solidariedade dos Estados Unidos com o Brasil. Green relata o surgimento do movimento LGBTQIA+ no Brasil, nos anos finais da ditadura e, em especial, seu envolvimento no Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, a primeira organização LGBTQIA+ politizada do Brasil, da qual foi um dos fundadores, e cuja ala mais à esquerda liderou. O autor também destrincha a tensão entre os partidos e movimentos de esquerda e os ativistas LGBTQIA+, assim como as relações entre os Estados Unidos e o Brasil. “Qualquer movimento social, qualquer povo, precisa entender sua história e seu passado, para saber de onde veio e para onde vai”, diz Green.

O historiador veio ao Brasil durante as comemorações do Mês do Orgulho LGBTQIA+ para a turnê de lançamento do livro. Além da agenda de divulgação e promoção, Green aproveitou o momento para participar da 28ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, considerada a maior do mundo e que, este ano, contou com mais de 3 milhões de pessoas.

Em entrevista exclusiva ao Jornal da Unesp, o ativista fala sobre sua trajetória, as diferenças e semelhanças entre os movimentos LGBTQIA+ nos Estados Unidos e no Brasil, a luta da militância para assegurar direitos e igualdade e os desafios impostos pelo fenômeno mundial da ascensão de governos de extrema-direita.

*****

Seu novo livro aborda com detalhes a história do movimento LGBTQIA+ no Brasil, mas também trata da sua história pessoal. especialmente seu surgimento nos períodos da ditadura. Além desses, quais outros pontos você gostaria de destacar na leitura?

James Green: O “Escritos de um viado vermelho” é sobre a questão LGBTQIA+, mas é também sobre a minha trajetória de militante e intelectual. Essa trajetória, assim como a minha identidade, é múltipla: eu sou gay, sou universitário, sou de esquerda, sou uma pessoa que tem sensibilidade para a injustiça social. O livro reflete esses aspectos, da minha vida e da minha atividade política no Brasil. Sou historiador, tenho opiniões sobre a história do Brasil, e tentei compartilhar um pouco do meu olhar através dessas narrativas. Eu comecei meu trabalho com esse país sem falar uma palavra de português, e sem conhecer o Brasil. Conheci uma pessoa, que tinha sido torturada e exilada. Comecei a trabalhar em um grupo que ele tinha criado sobre o Brasil, essa história também está no livro.

Um ponto fundamental da minha trajetória foi o trabalho feito a partir de 2016, primeiro para denunciar o golpe contra Dilma Rousseff, e logo depois contra o governo de Bolsonaro. Mobilizamos muitos professores nos Estados Unidos que estudam o Brasil, e brasileiros e brasileiras que vivem nos EUA, em defesa da democracia no Brasil. Em 2018, fundamos uma Rede Nacional de Defesa da Democracia. Hoje, somos uma organização que conta com 65 ONGs brasileiras filiadas e fazemos articulações internacionais muito importantes. Junto com organizações em defesa da democracia pressionamos o Congresso americano em 2022 para que houvesse um posicionamento claro contra a ameaça de golpe que pairava. Somos um veículo para que movimentos sociais brasileiros desenvolvam uma articulação internacional. Isso é um movimento importante. Uma parte do livro conta a história da solidariedade no Brasil ao longo dos últimos 55 anos. Em vários momentos, havia pessoas lutando em defesa da democracia, e eu fui uma delas.

O livro trata das tensões existentes entre setores do movimento homossexual, como era chamado, e a esquerda, devido à homofobia presente em algumas alas dos partidos, e o medo da marginalização. Como se dá essa interação nos dias de hoje?

James Green: Em meados dos anos 1970, emergiu o discurso da frente única contra a ditadura. Porém, havia setores da esquerda que criticavam as ações dos movimentos sociais. Diziam que, quando se levantavam os problemas envolvendo racismo, sexismo, homofobia, lesbofobia e transfobia, criavam-se rixas e problemas dentro do movimento da esquerda. Uma parcela defendia que era melhor deixar de lado essas questões até um momento mais apropriado, quando chegasse a democracia, ou quando houvesse uma revolução. Nós fomos contra. Acreditávamos, e eu acredito ainda, que tudo deve ser feito ao mesmo tempo. Não se deve esperar por um futuro ideal, em que as condições vão ser dadas: o debate tinha de começar naquele momento.

Hoje em dia isso se manifesta, por exemplo, com o [que foi taxado de] Kit Gay. Era uma tentativa, por parte do Ministério da Educação, de educar professores sobre como lidar com o bullying e a discriminação dentro da sala de aula. Na época, a direita usou essa iniciativa para propagar notícias falsas, de que seria uma maneira de incentivar a homossexualidade. Eles utilizaram a ansiedade e a religiosidade de setores da sociedade para atacar o movimento e criar um embate. Infelizmente, a resposta do governo Dilma foi não falar mais do tema e suspender a iniciativa, a fim de abafar o problema. O pretexto foi que era preciso ganhar os setores evangélicos para a pauta de esquerda, por isso o melhor era não levantar pautas que pudessem afastar essas alas.

Green em entrevista ao Jornal da Unesp

Aqui entra outra questão que alguns setores da esquerda não conseguem entender. Todos os dias, jovens LGBTQIA+ nascem e são criados, em famílias heterossexuais. Isso [ocorre] porque famílias heterossexuais geram pessoas homossexuais. Esse é o problema de não entendimento que temos de trabalhar com toda a sociedade. Trabalhar, por exemplo, dentro do movimento evangélico, com as pessoas LGBTQIA+ que estão lá.  A experiência é que, quando alguém descobre que o filho é gay, ou a filha é lésbica, ou que o filho é trans, a reação, em um primeiro momento, é rejeitar. Alguns pais vão expulsar de casa, ou cortar relações. Outros vão perceber que [se agirem assim] vão perder o filho, e que precisam ter paciência para entender essa realidade. Esses pais vão mudar.

Isso tudo me ensinou que a ideia revolucionária do movimento é se assumir. É ser aberto sobre sua realidade. Assim, vamos conquistando pessoas. Pessoas que não entendem nada vão começar a fazer perguntas, vão conviver com o diferente e vão desenvolver empatia. Isso cria mudanças sociais moleculares em todos os lados. Se nós não acreditamos nessa capacidade de mudança, e tentamos esconder uma realidade criando um pacto de silêncio, impedimos que o outro de desenvolva sua capacidade de mudança e sua consciência. Isso deixa o outro em um lugar atrasado.

No decorrer desses mais de 50 anos de ativismo, quais são as diferenças que você observou entre os movimentos LGBTQIA+ do Brasil e dos Estados Unidos?

James Green: O movimento americano é mais antigo, e é muito grande. Como os Estados Unidos não passaram por uma ditadura, não houve essa dificuldade de organização da sociedade civil. É uma tradição nos EUA que existam grupos de todos os tipos. Na nossa comunidade não é diferente. As pessoas LGBTQIA+ conquistaram seu espaço na sociedade criando centenas de milhares de grupos e organizações que afirmam seu direito de existir e que demandam por seu espaço de igualdade, de aceitação e reconhecimento. Além de ser muito grande, também é descentralizado, porque cada estado tem uma política diferente, com as próprias leis. Nesse sentido, o movimento americano é muito mais diversificado, espalhado e descentralizado.

No Brasil foi muito mais difícil para o movimento surgir. Muito por conta dos desafios do fim da ditadura, da crise econômica dos anos 1980, das crises políticas e dos problemas sociais. Outra questão é que nos EUA existe uma noção de autossuficiência das organizações. No Brasil, a maior parte das organizações viviam sem nenhum recurso, o que tornava a sobrevivência muito difícil. Elas começaram a perceber que era preciso angariar recursos do Estado ou de entidades internacionais para sustentar seu trabalho. Nesse sentido, aqui o movimento é muito mais dependente do Estado ou de ONGs internacionais. Por fim, como o país é muito mais centralizado, o mesmo padrão ocorre dentro do movimento. Porém, por ser um país de dimensões continentais, e por ser muito caro viajar dentro do Brasil, deveria ser fundamental elaborar articulações nacionais para permitir encontros. A única maneira de fazer conferências nacionais democráticas e representativas é contar com recursos do Estado que possibilitem às pessoas de todo o país se reunir em Brasília. Era muito caro fazer esse tipo de coisa.

Um elemento interessante é que, no passado, os republicanos usaram a questão LGBTQIA+ para afastar os setores que apoiavam os democratas e consolidar sua base. Era uma triangulação, em vez de falar de uma política social, se falava sobre a questão das alianças LGBTQIA+, e isso mobilizava religiosos e outros setores para votarem em seus candidatos. Isso é menos uma questão agora nos EUA. Mas é uma realidade mais presente no Brasil, porque Bolsonaro usou esse elemento como parte das suas mobilizações, e as igrejas evangélicas também fizeram isso.

E quais semelhanças você aponta?

James Green: Tanto aqui quanto nos Estados Unidos, estávamos muito felizes com as conquistas, porém hoje estamos preocupados com não conseguir mantê-las. Nos dois países, nenhum dos direitos da população LGBTQIA+ entrou na Constituição. Isso significa que podem ser retirados, a depender da conjuntura do STF e da Suprema Corte. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte acabou de tirar o direito ao aborto, que existia há cinquenta anos, conquistado pelos movimentos feministas. Um dos ministros americanos, que participou da votação, colocou que era preciso repensar outras questões, “como a questão do casamento LGBTQIA+”. Então a Suprema Corte, no futuro, pode decretar que não há nenhum direito implícito na Constituição que permita o casamento entre pessoas do mesmo gênero.

Queremos que nossas diferenças sejam reconhecidas, mas queremos ter os mesmos direitos que todo mundo tem, como o direito à pensão do nosso companheiro, o direito de casar, o direito de adotar crianças. São direitos fundamentais que podem ser retirados porque, assim como o Brasil, os Estados Unidos estão muito polarizados. E isso é geral, o mundo está dividido em dois campos. O campo de todas as liberdades e direitos conquistados desde a Revolução Francesa, especialmente a partir dos anos 1960; e o campo de uma reação religiosa, conservadora, reacionária e autoritária, que quer retomar o nacionalismo, a xenofobia, o passado idílico que não existe mais, instrumentalizando a ansiedade de muitas pessoas em relação às mudanças sociais que foram conquistadas nos últimos 70 anos.

Nos últimos tempos, temos acompanhado a ascensão da extrema-direita em diferentes partes do mundo. No Brasil tivemos os quatro anos do governo Bolsonaro, no começo deste ano o Milei assumiu na Argentina, nos Estados Unidos tivemos o Trump e a União Europeia parece seguir pelo mesmo caminho. Como os movimentos LGBTQIA+ responderam a essa realidade?

James Green: Vou começar contando uma história. Quando o Lula foi eleito em 2022, eu estava aqui no Brasil, acompanhando as eleições. Naquele dia eu fui para a Paulista e entrar no metrô foi uma loucura, todo mundo de vermelho em festa e alegria total. Quando cheguei, tentei ficar o mais perto possível do carro de som onde estava o Lula, o Haddad e toda a comitiva e, ao olhar em volta, notei que a maior parte das pessoas à minha volta eram gays. Isso me chamou a atenção, porque não tinha sido o caso em eleições passadas.

Acho que isso aconteceu porque o Bolsonaro foi tão brutal na sua homofobia, utilizando uma série de artifícios para atacar a nossa comunidade, que acabou politizando e conscientizando muitas pessoas. Quando houve o movimento “Ele não”, antes das eleições de 2018, e em falas após a sua eleição, as pessoas sempre começavam a explicar o Bolsonaro usando a palavra “homofóbico”. Nesse processo, essa palavra, “homofobia”, foi inserida dentro do discurso. Em parte, porque emergiu uma consciência de que estávamos vivendo um retrocesso total, mas serviu para despertar uma consciência em setores que antes não eram tão politizados, ou que não estavam interessados em política, porque perceberam que seus direitos estavam sendo ameaçados. E isso é uma questão global.

Por exemplo, infelizmente existem setores da esquerda brasileira que acham que a Rússia ainda é a União Soviética. Estão presos em uma época de Guerra Fria, imaginando uma polarização mundial entre países socialistas, comunistas e os países capitalistas. E, com base nisso, acabam defendendo o Putin. O que há para se defender no Putin? É proibido fazer uma organização homossexual na Rússia. Eles estão chamando grupos LGBTQIA+ de grupos terroristas, com base em uma política homofóbica para trabalhar com os valores mais atrasados da sociedade russa, da tradição, da família, da mulher tradicional, etc.

Nosso desafio, eu acho, é forjar alianças nacionais e internacionais com nossos aliados para enfrentar a ultradireita, que historicamente usa a homossexualidade como um exemplo da decadência da sociedade. Isso é um grande desafio, porque a extrema-direita se consolidou no Brasil e na Argentina, está em processo de se consolidar na União Europeia e em outros lugares.

Imagem acima: Green em entrevista na ACI/Unesp. Fotos: Marcelo Yamashita.