Geólogo da Unesp analisa desafios para a reconstrução das cidades e da infraestrutura do Rio Grande do Sul

Docente de Rio Claro comenta tecnologias de construção e procedimentos que podem ser adotados para assegurar que bairros, estradas, pontes, hospitais e até aeroporto que precisarão ser reparados ou construídos nos próximos anos ofereçam maior segurança à população, e se mostrem mais resilientes diante de eventos extremos.

A tragédia que afetou o Rio Grande do Sul, na forma de enchentes e desabamentos que assolaram o estado na sequência de fortíssimas chuvas, completou um mês em 29 de maio passado. De acordo com a Defesa Civil, o saldo é de 172 mortos e 44 desaparecidos. Além das vítimas fatais, 806 pessoas ficaram feridas, 629 mil tiveram que deixar suas casas e 77.865 foram resgatadas. No total, foram afetados cerca de 2,4 milhões de moradores de 475  municípios gaúchos, de um total de 497 que o Rio Grande do Sul possui.

O lago Guaíba, que atingiu pico histórico de 5,35 metros no dia 5 de maio, ficou abaixo da cota de inundação pela primeira vez em um mês no último sábado: o lago atingiu 3,57 metros, três centímetros abaixo da cota. Apesar da baixa, o Rio Grande do Sul mantém estado de alerta. O nível do lago ainda é considerado alto, e muitos trechos de cidades gaúchas continuam alagados.

A Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul) divulgou uma estimativa para a reconstrução da infraestrutura perdida no Estado por conta das chuvas. Segundo o estudo, o volume de recursos necessários vai variar entre R$ 110 bilhões e R$ 176 bilhões. A Federasul também se baseou em números do Governo Federal e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para calcular que cerca de 20% dos prejuízos nacionais com desastres climáticos, verificados nos últimos 30 anos, tiveram como cenário o estado gaúcho.

Fabio Augusto Gomes Vieira Reis, que é geólogo e professor do Instituto de Geociências e Ciências Exatas do câmpus da Unesp em Rio Claro, e também graduado em engenharia civil e especialista em projetos geotécnicos para obras de engenharia, fala sobre os desafios a serem superados para a reconstrução da infraestrutura de Porto Alegre e das cidades mais afetadas pelas enchentes no Estado do Rio Grande do Sul.


De acordo com o pesquisador, a reconstrução das áreas afetadas gravemente pelas inundações dependerá, basicamente, de um planejamento estratégico muito bem estabelecido articulando municípios e governo estadual, com apoio do governo federal. “Considerando as áreas de risco existentes nestas cidades, muitas já mapeadas pelo Serviço Geológico do Brasil, esse planejamento estratégico vai exigir anos para ser implantado. E, dada a escala dos danos, será necessário um fluxo contínuo de recursos para a reconstrução por, no mínimo, 10 a 20 anos”, diz.

Em paralelo, será preciso tocar obras de construção ou recomposição de diques e barragens que se romperam. Isso pode permitir que as povoações que foram afetadas de forma menos grave permaneçam no mesmo local, porém em condições mais seguras. Também é essencial assegurar o cuidado com a manutenção da infraestrutura de contenção, que envolve diques e bombas. “Verificou-se que houve um grave erro nessa parte, principalmente em Porto Alegre. Agora, no curto prazo, realmente o que se pode fazer é a questão do pagamento do aluguel social. Assim, pessoas que perderam tudo poderão rapidamente se realocar em outra residência, em outra parte da cidade. Ou, talvez, ampliar a construção de casas provisórias, como está previsto em alguns municípios”, diz.

Reconstrução de estradas


No que tange aos processos geológicos que devastaram as cidades gaúchas, Reis diz que é necessário pensar o território em duas áreas distintas. Uma delas é a região serrana, que foi afetada fortemente pelos processos de escorregamento de encostas e correntes de detritos. Nesse contexto, a ocorrência de processos de escorregamento está dentro da normalidade, mas sem a intensidade observada este ano.

O que se verificou em abril foi um aumento de intensidade devido à quantidade de chuva e à saturação do solo. Esse quadro ocasionou a liquefação de vários pontos do material das encostas em diferentes regiões, resultando em escorregamentos de grande porte, nunca antes vistos.


“Nesses casos, há necessidade específica de obras de contenção e de realocação, e de mudanças de projeto de várias rodovias federais que cruzam essa região. É preciso construir novas estradas, mais seguras, e que possam realmente ter um desenvolvimento associado com as condições de declividade. E, possivelmente, obras nas principais BRs, associadas a túneis e a grandes viadutos. Esse modelo de tecnologia não existia nessas regiões. Eram estradas antigas, que seguiam basicamente a topografia da área, e que são muito mais suscetíveis a esse processo.”

Já nas áreas das grandes planícies do Rio Grande do Sul, em que há confluência de rios, principalmente nas proximidades de Porto Alegre, Canoas e Pelotas, as grandes inundações estão associadas às próprias condições geomorfológicas que ocorrem ali, no corpo d’água conhecido como Lagoa dos Patos ou Laguna. “Simplesmente, há um único canal de saída para a água que ficou retida lá, num volume muito grande, e as regiões mais planas foram atingidas. Nesse caso, as condições geomorfológicas foram as mais importantes para o condicionamento dos processos.”

Falta de plano para emergências

As chuvas, enchentes e deslizamentos afetaram todo tipo de infraestrutura no Estado, incluindo aeroportos, rodoviárias, estádios, pontes, hospitais e edifícios. De acordo com o pesquisador, cada obra de reconstrução vai implicar desafios específicos. 

“No caso do aeroporto de Porto Alegre, que fica em uma região de aterro na planície, é preciso efetivamente realizar obras para erguer diques de contenção, como proteção, em associação com estruturas de bombeamento. Isso possibilitaria manter o aeroporto na mesma região. Mas será necessário um plano emergencial para as situações de chuvas extremas. No caso das rodovias e pontes, o que está sendo muito discutido, especificamente para as pontes, é utilizar estruturas que estejam mais integradas à rocha e que fiquem integralmente apoiadas nas partes laterais da travessia. Existem tecnologias e técnicas para isso, e que possibilitam uma resistência maior dessas estruturas. Mas, o ideal seria repensar a posição dessas pontes, considerando eventos em que venha a ocorrer uma elevação muito grande [das águas]. Nesse caso, será preciso efetivamente realocar algumas porções das rodovias, porque essas rodovias seguem a técnica antiga de seguir pelas curvas de nível para cortar as áreas serranas”, diz o docente.

Reis diz que é preciso avaliar os custos e benefícios das diferentes tecnologias. Ele aponta como bons exemplos os túneis e grandes viadutos que foram construídos na Rodovia Imigrantes e na Nova Tamoios, no litoral paulista. “São obras que custam mais, num primeiro momento. Mas, ao longo do tempo, vale a pena, pois são menos afetadas por esses processos. Além disso, registram menos problemas envolvendo manutenção e acidentes, e proporcionam mais segurança para o usuário”, diz. “Entretanto, hospitais e escolas realmente são estruturas que não devem ficar em regiões de risco, e é preciso erguê-los em áreas seguras já mapeadas”, diz.

O docente se baseia nas análises sobre a calamidade que varreu o Rio Grande do Sul para propor uma reflexão mais ampla. “A tragédia mostrou que o Brasil não está preparado. Não possuímos planos para emergências, que deveriam estar associados a grandes ações de evacuação nos casos que envolvem eventos extremos. O governo estadual não estava preparado, a população não recebeu treinamento. Não havia um plano para receber essa população que teve que deixar as regiões afetadas”, diz.

“Se a quantidade de chuva que afetou o Rio Grande do Sul tivesse ocorrido no litoral de São Paulo ou no do Rio de Janeiro, com certeza estaríamos falando de mais de 10 mil mortes. Isso demonstra a enorme necessidade de que o Brasil desenvolva grandes planos para situações de emergência. E, também, de começar um planejamento de longo prazo, e de grande porte, com foco na prevenção desses eventos extremos, que considere, inclusive, a evacuação de cidades. O poder público tem a sua culpa no que aconteceu. Mas é preciso lembrar que quem fez os projetos de loteamentos foram empresas privadas.”

Confira também a íntegra da entrevista no Podcast Unesp.

Imagem acima: bairro de Porto Alegre alagado. Crédito: Gustavo Mansur | Palácio Piratini