O ano era 1979. Eu, então um jovem de 18 anos, iniciava meus estudos de Física. Durante os últimos anos do colegial em São Paulo fui influenciado por ótimos professores. Um professor de Física recomendou a leitura de um livro de George Gamow que acabou mudando minha vida. Contrariando o anseio de meus pais, acabei desistindo de estudar medicina e decidi que queria ser físico – estudar física quântica e as partículas elementares! E, para piorar as coisas, queria estudar na Unicamp, o que implicaria sair de casa. Então uma universidade recém-criada, fruto da visão de Zeferino Vaz, a Unicamp constantemente aparecia nos noticiários da época como um centro de referência em pesquisa, que contava com cientistas de renome internacional em seus quadros. E, entre eles, César Lattes, que já era uma figura legendária.
A presença de Lattes me atraiu como um ímã para lá. Minha família acabou por apoiar minha decisão não convencional e, depois de passar no vestibular, fui morar em uma república em Campinas.
Lattes foi aluno do físico russo-italiano Gleb Wataghin. Wataghin foi responsável por instituir a pesquisa em Física no Brasil, em meados da década de 1930, na recém-criada Universidade de São Paulo, e por formar a primeira geração de físicos brasileiros. Lattes foi um destes primeiros físicos formados no país, mas, com apenas 23 anos, ganhou fama internacional ao participar da descoberta, em 1947, do méson-pi, ou píon.
Duas grandes descobertas em dois anos
O méson-pi era uma partícula cuja existência era prevista em teoria, e foi detectada em 1947 por meio do trabalho desenvolvido por Lattes, durante o seu doutoramento na Universidade de Bristol, junto com colaboradores que integravam o Laboratório H. H. Wills, que era dirigido pelo britânico Cecil Frank Powel. A detecção envolveu processos iniciados por raios cósmicos que deixam traços em emulsões fotográficas, expostas em grandes altitudes. A detecção foi relatada num célebre artigo publicado no mesmo ano na revista Nature, que trouxe Lattes como primeiro autor e Cecil Frank Powel como o último. Em 1950, a detecção foi laureada com o Prêmio Nobel de Física, mas apenas Powel recebeu a distinção.
Em 1948, Lattes, levou suas emulsões para um acelerador de partículas nos EUA, e lá procedeu à primeira detecção de píons produzidos em laboratório. Na verdade, inaugurou-se ali a época do estudo de partículas elementares em aceleradores de partículas, uma vertente de pesquisa que hoje tem como expoente o acelerador conhecido pela sigla LHC, do inglês “Large Hadron Collider”, no laboratório CERN, na Suíça, do qual o Brasil tornou-se membro associado este ano, e onde a partícula de Higgs foi descoberta em 2012.
Lattes retornou ao Brasil em 1948, contratado pela USP. Aqui, desempenhou um papel fundamental na criação de importantes instituições para a física e a pesquisa no Brasil, como o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949, o CNPq, em 1951 e o Laboratório de Física Cósmica. Situado a uma altitude de aproximadamente 5.000 metros, aos pés do pico Chacaltaya, nos arredores da cidade de La Paz, capital da Bolívia, o Laboratório apresentava as condições ideais para expor as emulsões para o estudo de raios cósmicos.
Em 1967 Lattes foi contratado pela Unicamp para trabalhar no Instituto de Física que leva o nome de seu mentor, Gleb Wataghin. Lá, ele criou o Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia (DRCC). Naturalmente, comecei a frequentar o DRCC. Lembro-me do frenesi causado pela chegada das emulsões vindas diretamente do Laboratório no Chacaltaya. Eram reveladas em grandes tanques e depois analisadas em busca de preciosos traços de partículas que poderiam revelar novos fenômenos.
Lattes X Einstein
No entanto, durante a minha época na Unicamp, Lattes, estava passando por uma fase estranha. Pensava haver encontrado um erro na teoria da relatividade restrita de Einstein, e dava palestras onde trazia um aparato experimental para mostrar algum efeito que deveria comprovar suas ideias. Assisti a algumas. Devido à sua fama, Lattes era tratado como um gênio. Todas as palestras eram concorridíssimas, e aconteciam até ao ar livre, e as lousas eram preservadas para a posteridade. A imprensa, é claro, deu-lhe grande espaço, publicando seus impropérios contra Einstein, a quem chamava de “fraude”.
Porém, Lattes nunca escreveu um artigo científico apresentando essas ideias. Mais tarde, vim a saber que ele sofria de distúrbios emocionais, provavelmente de origem maníaco-depressiva – o que deve ter contribuído para suas ações durante este período. Grandes cientistas também estão sujeitos à condição humana. Depois de 18 meses na Unicamp, percebi que não havia pesquisas teóricas na área de física de partículas, meu sonho de trabalho. Prestei outro vestibular e terminei o curso de Física na USP. Fiz meu mestrado nesta área e parti para o doutorado no exterior.
Uma visita a Lattes
Encontrei Lattes pessoalmente apenas em 1995, quando retornei ao Brasil após 9 anos no exterior. Nesse ano, meu orientador de doutorado, professor da Universidade de Chicago, veio ao Brasil ministrar um curso em um evento. Bastante interessado na história da Física, pediu que fosse arranjada uma visita a Lattes em Campinas, e eu o acompanhei. Durante a conversa, que transcorreu em sua casa, Lattes mostrou que ainda estava em contato postal com diversos pesquisadores espalhados pelo mundo. Foi a última vez que o vi.
Faleceu em 2005, aos 80 anos, deixando um enorme legado para a Ciência brasileira. O grupo que ele criou na Unicamp é um dos líderes do Observatório Pierre Auger, um imenso experimento internacional atualmente em operação na Argentina, dedicado ao estudo dos raios cósmicos.
Em 2019, o Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp iniciou o Programa “Cesar Lattes” de Cientista Residente. Tive a honra de ser o terceiro Cientista Residente em 2020, quando apresentei o minicurso “Cosmologia”, em que a teoria da relatividade geral de Einstein serve de base para o entendimento do Universo. E senti que fechava o ciclo iniciado 40 anos antes, com minha chegada à Unicamp, atraído pela presença de Lattes por lá.
Rogerio Rosenfeld é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e é vice-diretor do ICTP South American Institute for Fundamental Research.
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Imagem acima: Lattes nos anos 1970.