Anelis Assumpção: muito mais do que um sobrenome famoso

Filha de um dos grandes nomes da vanguarda paulistana, ela ganhou projeção como apresentadora na TV Cultura, mas mantém seu foco em construir uma carreira musical independente e criativa, que já rendeu quatro álbuns autorais.

A cantora, compositora, instrumentista, produtora e escritora Anelis Assumpção nasceu em 16 de maio de 1980, no bairro da Penha, em São Paulo, numa família extremamente musical. Seu pai era o cantor e compositor Itamar Assumpção (1949 – 2003), um dos grandes nomes da chamada vanguarda paulistana, um movimento musical que sacudiu a cena da capital e do país entre meados dos anos 1970 e anos 1980. Essa herança moldou muito de sua sensibilidade e da sua personalidade artística.

Ela diz que, por conta da própria dinâmica familiar, que girava em torno da música e da arte, desenvolveu uma relação íntima com a música. “A arte estava lá antes de mim, e já existia nos meus poros quando fui concebida. Nasci com essa relação, que existia entre o meu corpo, a minha família e a sociedade. É um jeito de ver o mundo, é um jeito para ganhar dinheiro no mundo, é uma forma de sobreviver no sistema, tudo relacionado à música”, conta.

O fato de morar numa região periférica da Zona Leste da capital paulista também contribuiu para que desenvolvesse um olhar diferenciado para o local onde estava inserida, tornando-a mais atenta às questões sociais. “Vivia no bairro onde fica a segunda maior escola de samba de São Paulo, a Nenê de Vila Matilde, frequentava a quadra da escola. Era, basicamente, um bairro de preto da cidade. Havia uma concentração de cultura afro muito forte ali no Rosário, uma igreja que é tombada como patrimônio da humanidade por causa da ancestralidade do rosário das mulheres, dos homens pretos, desse cancioneiro, dessa expressão tão sincrética que mistura religiões e a cultura negra. Estava tudo misturado no mesmo balaio.”

Diferentemente de outras crianças, que em geral são expostas a canções destinadas especialmente a sua faixa etária, ela ouvia bastante as músicas  compostas ou interpretadas por seu pai. “Eu não ouvia músicas feitas para crianças. A música que mais ouvi na infância era a que o meu pai fazia. Até uns dez anos, a gente só tinha rádio e aparelho de toca fita. Era uma vida muito simples, muito humilde mesmo, até de bastante dificuldade em vários momentos. Não havia como ouvir outras músicas que não fossem aquelas que estavam sendo executadas na rádio, ou que não fossem do meu pai. A gente conhecia essas músicas por meio dos shows e também dos amigos dele, artistas contemporâneos com quem a gente convivia, e pelas fitas que a gente tinha em casa”, lembra.

Com o tempo, o acesso foi se ampliando. “Me lembro de que meu pai tinha um gravador que utilizava para registrar suas composições em fitas K7. Depois, tivemos um aparelho toca discos, tipo aqueles 3 em 1, e começamos a consumir um pouco mais de discos. Meu pai também trazia LPs de uma loja aqui em São Paulo aonde vendia os discos dele, que se chama Baratos e Afins. Ele trazia discos do Bob Marley, Elis Regina, Gilberto Gil… Enfim, devagarinho fomos criando uma pequena coleção.”

Durante a adolescência, veio o gosto pela escrita: poemas, crônicas, dissertações. Mas ainda não escrevia letras de músicas. “A composição talvez tenha vindo um pouco mais tarde. Quando comecei a organizar melhor os pensamentos no sentido de compor mesmo, pensando letra e música. Sempre gostei de cantarolar, mas não cheguei a estudar canto. Era algo mais intuitivo”, diz.

Foi cantando que sua carreira teve início, entre os 17 e 18 anos, fazendo backing vocal na banda de Itamar Assumpção. “Trabalhei com ele durante cerca de seis anos. Quando ele faleceu, eu tinha 24 anos”, diz. No período, também teve a experiência de ajudar em diferentes aspectos da carreira do pai, atuando na parte de produção, tocando demandas administrativas, ajudando no atendimento à mídia e em outras funções. “Foi um processo de profissionalização muito importante para mim”, recorda.

Posteriormente, Anelis integrou o grupo DonaZica, ao lado de Iara Rennó e Andréia Dias.  “DonaZica foi algo fundamental, libertário, disruptivo. Uma  estrutura afetiva para que eu e as outras pessoas envolvidas pudéssemos estar num lugar seguro de exploração, de autoexploração. Foi uma família musical, com pessoas muito íntimas. Uma troca generosa de conhecimentos, entre músicos que já tinham uma excelente bagagem e outros que estavam chegando”, diz. A experiência despertou nela o desejo de desenvolver um trabalho solo.

Essa etapa teve início em 2007. À época, suas influências já estavam bem definidas. Incluíam a  música de vanguarda feita por seu pai e outros grandes músicos da mesma geração, e também o reggae, o afrobeat, o rap, o dub, o samba e a bossa nova entre outros gêneros. Lançou quatro álbuns autorais: Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (2011); Amigos Imaginários (2014) – que lhe rendeu o prêmio Deezer de Artista do Ano 2014 e o prestigiado prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) para Melhor Artista Revelação, no ano de 2015; Taurina, lançado em fevereiro de 2018 e premiado como melhor álbum do ano e melhor capa pelo Prêmio Multishow 2018; e o álbum Sal, de 2022.

“No caso do primeiro álbum, criei a oportunidade para gravar. Tinha vontade mesmo de dar mais esse passo, avançar um pouco mais à frente de uma banda, ser mais responsável, individualmente, pelos processos”, diz. Antes que começassem as gravações, ela foi convidada a participar de um projeto onde um nome já consagrado convidava um artista em início de carreira para uma apresentação compartilhada, em que cada um se apresentava em um segmento. No seu caso, o convite partiu de Zélia Duncan. Foi nesta ocasião que Anelise começou a amadurecer a ideia de um disco solo, e assim se encaminhou para o primeiro álbum.Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa. O segundo, Amigos Imaginários, também foi gravado e lançado graças a um esforço independente.

Já o seguinte, Taurina, pôde se beneficiar de um apoio da marca de cosméticos Natura, viabilizado por meio da Lei Rouanet.  “Os independentes pagam seus álbuns do próprio bolso, é muito difícil e custoso fazer um disco assim. Pela primeira vez, gravei um disco com as condições básicas fundamentais, podendo contratar pessoas e com tempo de entrega. Pude entender e saber mexer com o mercado, estando em um outro lugar, com outras oportunidades”, conta.

Sal, o álbum mais recente, foi produzido por ela, pelo marido, o músico Curumim, e por nove mulheres cantoras e compositoras, cada uma cuidando de uma faixa. O trabalho de produção se iniciou durante a pandemia, e se encerrou quando o isolamento social chegava ao fim, o que trouxe um sabor especial ao projeto. “Além disso, foi um trabalho gravado com um pouco mais de distanciamento da perda da minha irmã Serena. Então,  eu estava ali o tempo inteiro”, diz .

Além da carreira musical, Anelis Assumpção explorou outros ramos de atividade profissional. Atuou na televisão, em diversos episódios do Telecurso 2000. Foi apresentadora do programa Atitude.com, exibido pela TVE Brasil e pela TV Cultura, e do reality show Ecoprático, da TV Cultura de São Paulo, ao lado de Peri Pane. A série foi lançada em DVD em 2010. No mesmo ano, passou a apresentar o programa Manos e Minas, também da TV Cultura, junto com o rapper Max B.O. O programa foi um sucesso e marcou uma geração de telespectadores da periferia.

“Manos e Minas foi um programa fundamental, que refletia diretamente a realidade periférica. Lamento que não exista mais essa preocupação televisiva de inclusão de fato, de pulverização de uma cultura tão forte, potente. E que hoje, inclusive, é a grande responsável por um pop gigantesco. É o maior pop que a gente tem no Brasil”, avalia. Dividindo-se entre vários programas, ficou na emissora por dez anos. Outra de suas atividades fora da música é o trabalho como diretora geral do Museu Itamar Assumpção, o primeiro museu virtual dedicado a um artista preto brasileiro.

Ela reflete sobre os desafios de trabalhar com música hoje no Brasil. “O mercado é feito de uma série de categorias, de níveis estimulados, patrocinados ou não. Quem está inserido dentro da arte de uma forma mais independente, mais livre, também tem seus desafios. Acho que o desafio é a gente buscar se inserir no mercado, no sistema, de forma democrática, com integridade, digna”, diz.

E ressalta que a música brasileira vive um bom momento. “A gente está numa fase muito rica da música independente, que busca a liberdade, elaborações, estímulos, que é potência para pensamento crítico. Então, essa é a mensagem que quero deixar: ouçam a música independente feita no Brasil. E conheçam a cultura popular, a cultura tradicional, as culturas ancestrais. Essas são as bases para tudo que está sendo produzido hoje.”


Confira a entrevista completa no Podcast MPB Unesp.