A tradicional festa de Folia de Reis está dando os primeiros passos para ser reconhecida como patrimônio imaterial da cultura brasileira por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No final de 2023, o IPHAN publicou um edital para selecionar organizações interessadas em conduzir pesquisas e levantar as informações necessárias para subsidiar o registro das Folias de Reis junto ao instituto e assim dar início ao processo que, eventualmente, irá colocar o festejo popular na lista que inclui as rodas de capoeira, a festa do Círio de Nazaré, a pintura corporal do povo indígena Wajãpi, entre um total de 19 manifestações populares
De acordo com a nota publicada no site do IPHAN, caberá à organização selecionada promover pesquisa de campo e estudos transdisciplinares sobre a Folia de Reis, reunindo profissionais de diversas áreas do conhecimento e envolvendo a participação das comunidades detentoras das manifestações na pesquisa. Além disso, a organização selecionada deverá consolidar referências bibliográficas, elaborar um mapa de base cartográfica com a localização das comunidades que realizam as festividades, preparar um levantamento histórico das transformações deste bem cultural ao longo das décadas e compor um acervo audiovisual das manifestações. Ao final do trabalho, espera-se a apresentação de um dossiê que servirá de apoio para o registro e início da análise para reconhecimento das Folias de Reis como bem cultural imaterial pelo IPHAN.
Um projeto de doutorado desenvolvido no Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, campus de Assis, deve servir como uma importante fonte de informações aos pesquisadores selecionados pelo IPHAN. De 2018 a 2023, a historiadora Rafaela Goulart buscou resgatar as origens das Folias de Reis realizadas no interior de São Paulo – mais precisamente, na microrregião de Ourinhos e de Assis, identificando os elementos usados pelos integrantes na construção de suas identidades e memória. Com esse objetivo, ela saiu a campo para visitar as comunidades que recebem e organizam as festas, acompanhou muitos desses eventos e conduziu entrevistas com mais de 20 integrantes reconhecidos pelas próprias comunidades como referências na organização e produção das Folias de Reis. A imersão da pesquisadora também resultou em um acervo de faixas musicais transcritas, imagens de festas, livretos, podcasts e vídeos que estão, em parte, disponibilizados na página do Observatório Patrimônio Cultural do Sudeste.
Entre seus objetivos, a pesquisa procurou identificar os principais elementos que permitiram a preservação dessas tradições ao longo de décadas na região que envolve os dois municípios. No final do ano passado, a tese de Rafaela, intitulada Tradição como missão: história da preservação da memória e identidade das Folias de Reis em Ourinhos e Palmital (SP), recebeu a primeira menção honrosa do Prêmio Silvio Romero de 2023. A premiação, promovida pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular do IPHAN, que desde 1959 destaca a produção científica nacional que tematiza a cultura popular.
Natural de Tarumã, cidade próxima a Assis, a autora se lembra de participar dessas festividades na infância, e de receber a visita de alguns foliões na casa da sua família. “A ausência de registros da tradição desses grupos, e de estudos sobre a história local, foram fatores que me motivaram a escolher esse tema para pesquisar na pós-graduação”, explica Rafaela. Esse interesse teve início já no mestrado, quando ela pesquisou as Folias de Reis na cidade de Florínea, localizada na mesma região do estado.
“Este trabalho ressalta a conexão que existe entre os festeiros, e destaca a importância da preservação das memórias de certas famílias que começaram a fazer a Folia de Reis nas suas cidades, e que vincularam essas manifestações à sua cultura e à sua fé”, explica a historiadora Fabiana Lopes da Cunha, orientadora da tese e professora da Unesp no campus de Ourinhos.
As Folias de Reis, também chamadas Festas de Reis ou Reinado, são festas que celebram a devoção aos Três Reis Magos (Belchior, Gaspar e Baltazar) que, segundo a tradição católica, teriam vindo de países do Oriente, guiados por uma estrela, em busca do menino Jesus para presenteá-lo e celebrar seu nascimento. Em linhas gerais, as festividades reproduzem parte dessa jornada, com os participantes se deslocando pelas casas dos devotos para entoar canções que celebram os três personagens. Durante as visitas às residências, que em geral começam no dia 25 de dezembro e se encerram no dia 6 de janeiro, os devotos pagam suas promessas e, como retribuição, doam ofertas, que ao final dos dias de romaria são reunidas e compartilhadas principalmente na forma de refeição, servida para toda a comunidade, dentro de uma proposta de confraternização.
A tradição, explica Rafaela, teria sido trazida de Portugal ao Brasil ainda no período colonial, e mantém-se ainda bastante popular em pequenas cidades dos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Goiás. Apenas no território mineiro, o IPHAN tem cadastrados mais de 1,6 mil grupos em cerca de 400 municípios de todas as regiões do estado. De acordo com as entrevistas com os foliões mais antigos, foi por meio de populações que se deslocavam de Minas Gerais para São Paulo no final do século 19 e no início do século 20, atraídas pelo crescimento econômico fomentado pela expansão da cultura do café e pela chegada dos trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana, que a Folia de Reis chegou à região de Assis.
As duas regiões escolhidas pela autora, embora próximas, apresentam perfis diferentes em suas Folias de Reis. As festividades realizadas na área rural de Ourinhos são organizadas por uma única bandeira (nome dado ao grupo de músicos e personagens que visitam as casas e promovem a festividade), envolvem um número pequeno de participantes e ainda preservam uma clara característica familiar e local. Palmital, por sua vez, possui três bandeiras que se reúnem em um mesmo espaço ao final das jornadas, onde é realizada uma festa que, segundo os organizadores, chega a atrair aproximadamente 40 mil pessoas. “Ourinhos preserva uma característica um pouco mais comunitária das manifestações. Na cidade de Palmital já existe um esforço para projetar o evento de uma perspectiva turística”, aponta Rafaela.
Apesar de perfis diferentes, a manutenção do festejo depende de iniciativas que são comuns aos grupos de ambos os municípios. Uma delas é a organização das bandeiras na forma de associações, para oferecer segurança jurídica e colaborar no fortalecimento das suas demandas junto ao poder público. Outra providência é a aquisição, ou escolha, de um espaço fixo para a realização das festas de encerramento. Uma medida pontual adotada pelos foliões da região de Ourinhos foi a mudança da data da Folia de Reis do final para meados do ano, por volta dos meses de maio e junho, em virtude da falta de disponibilidade de alguns participantes importantes do grupo para integrarem os festejos.
Ao analisar as medidas do poder público municipal, Rafaela observou poucas ações que colaborassem para a valorização das manifestações de Folia de Reis como patrimônio cultural imaterial. “Em termos de instrumentos e de políticas públicas, existem algumas iniciativas ligadas à promoção do turismo, mas não necessariamente se relacionam ao reconhecimento como patrimônio cultural”, analisa. Rafaela sugere a criação de instrumentos municipais que poderiam colaborar com esse intuito, na forma, por exemplo, da criação de comissões municipais de caráter consultivo, deliberativo e fiscalizador, que fossem integradas tanto por técnicos quanto por representantes das bandeiras.
Esse quadro de carência de políticas públicas voltadas ao patrimônio imaterial não se limita às regiões estudadas por Rafaela, estendendo-se a municípios de todo o país. A pesquisadora diz que as legislações voltadas para a salvaguarda desse tipo de patrimônio surgiram há relativamente pouco tempo. “Em âmbito federal, o reconhecimento dessas manifestações culturais imateriais foi instrumentalizado a partir do ano 2000. Em São Paulo, temos políticas estaduais de valorização do patrimônio imaterial desde 2011. É muito recente”, diz. Ela diz que a academia pode colaborar para fomentar o surgimento dessas políticas em municípios do interior do país. “Houve uma instrumentalização recente das políticas públicas, mas sabemos que o seu reconhecimento ainda leva algum tempo. Neste contexto, trabalhos que reconheçam as particularidades das manifestações culturais imateriais devem ser valorizados não apenas pelo valor acadêmico em si, mas como meio para conferir visibilidade a essas comunidades”, diz.
Imagem acima: apresentação de uma das bandeiras da festa de Santos Reis da cidade de Palmital. Fotos: Rafaela Goulart