Emanuelly Teixeira, Nathan Sampaio
Na tarde do dia 3 de março de 1983 a agenda do então governador de São Paulo registrava um evento inusitado: participar, na Ilha Anchieta, no litoral de Ubatuba, a cerimônia de soltura de cerca de 160 animais, pertencentes a 15 espécies de mamíferos e algumas de répteis. Capivaras, cutias, macacos-prego, saguís-de-tufo-preto, quatis, bichos-preguiça, ratões-do-banhado, tamanduás-mirins, tatus, tatupebas e veados-catingueiros foram soltos na ilha, sem que fosse conduzido qualquer estudo prévio a respeito dos impactos que eles causariam no ambiente. Apesar das boas intenções que costumam impulsionar iniciativas semelhantes, a introdução de animais em ilhas corre o risco de se mostrar desastrosa. Na ausência de predadores naturais, algumas espécies podem se multiplicar rapidamente. Outras podem não se adaptar bem a um ambiente totalmente novo, e perecerem.
A história e o destino de cada uma das espécies introduzidas na Ilha Anchieta em 1983 têm sido alvo dos estudos dos pesquisadores do Laboratório de Biologia da Conservação (LaBiC) do Instituto de Biociências da Unesp, campus de Rio Claro, liderados pelo docente Mauro Galetti, que também é diretor do novo Centro de Pesquisa e Biodiversidade e Mudanças no Clima, recém-inaugurado na mesma unidade. Os resultados mais recentes desses estudos foram apresentados no artigo “Long-term population trends of introduced mammals on an tropical island”, publicado na revista científica Global Ecology & Conservation.
Situada a apenas 500 metros do litoral de Ubatuba, a Ilha Anchieta possui 828 hectares de área e um longo histórico de perturbações da sua fauna e flora. Até a chegada dos Portugueses ao Brasil, era habitada pelos índios Tupinambás. No século 20, foi construído um presídio em seu território, mas uma rebelião dos 453 presos em 1952 resultou em diversas mortes e na desativação do Instituto Correcional.
Do ponto de vista biológico, a Ilha Anchieta é uma área de proteção integral da sua fauna e flora desde 1977 quando virou um Parque Estadual, e serve de refúgio para diversas espécies de aves, anfíbios e répteis. Os pesquisadores estimam que, devido ao seu tamanho e proximidade do continente, um pouco mais de 15 espécies de mamíferos deveriam ser encontradas na ilha. Mas, segundo os resultados dos estudos, apenas cinco das espécies introduzidas ali se estabeleceram.
O ecólogo Júlio Haji, que é mestre em Ecologia, Evolução e Biodiversidade da Unesp e pesquisador do LaBiC analisou os dados dos censos dos mamíferos realizados pelo grupo de pesquisas em 2002, 2004, 2018, 2021 e 2022. “Além das nossas observações, nós treinamos os voluntários e funcionários da ilha para monitorarem a fauna. A ciência-cidadã pode ser uma grande ajuda quando o objetivo é subsidiar ações práticas em prol da conservação de áreas protegidas”, diz Haji.
Para estimar a população das diferentes espécies, os pesquisadores da Unesp empregaram a metodologia de transectos lineares que envolve caminhar lentamente pelas trilhas procurando pelos animais. Os pesquisadores, com ajuda dos voluntários, percorreram 611 km, o que resultou em 1.050 eventos de observação de animais. “Realizamos amostragem durante o dia e à noite, pois algumas espécies são noturnas”, explica Haji. “Depois de compilar todas essas observações, a gente analisa se nossos dados são robustos o suficiente para estimarmos a população de cada espécie”, diz. A quantidade de eventos de observação registrada permite aos cientistas estimar a densidade e o tamanho populacional dos animais que habitam uma determinada área.
Os levantamentos mais recentes mostraram que apenas duas espécies de mamíferos prosperaram de forma notável. Dos cinco saguis-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) introduzidos em 1983, a população cresceu e no censo de 2022 foi estimada em 624 animais. Das oito cutias (Dasyprocta spp.) introduzidas em 1983 resultou uma população estimada em 947 indivíduos em 2022, e que desde então se manteve estável. Outras espécies, como o tatu-galinha, a paca, o tamanduá-mirim e o gambá-de-orelha-preta, foram observados ocasionalmente. Já a preguiça, o veado-catingueiro, o ratão-do-banhado, o tatu-de-rabo-mole e o tatu-peba não foram mais vistos desde 2002, e por isso classificados como possivelmente extintos. “O alto crescimento populacional dessas espécies reflete a falta de competidores e predadores dessas espécies” diz Galetti. “Enquanto algumas espécies aumentaram drasticamente sua população, outras sucumbiram, provavelmente devido ao pequeno número de indivíduos introduzidos e à falta de habitat adequado.” Ele considera que os efeitos da superpopulação dessas espécies causam diversos impactos na ilha. “Cutias, gambás e quatis predam ovos de aves que nidificam no solo da floresta e os saguis predam os ovos das aves que fazem ninhos nas árvores”, diz.
A fim de minimizar os danos causados pela superpopulação, Galetti recomenda que sejam tomadas medidas como o controle reprodutivo, isto é, a castração dos machos. Porém, os serviços ecológicos que desempenham permanecem muito importantes para o ecossistema, e não há por que pensar em removê-los em definitivo da área. “Diversas espécies de palmeiras dependem das cutias para dispersar suas sementes, então não é recomendado erradicá-las”, diz.
Haji complementa que somente com o monitoramento contínuo, será possível compreender mecanismos regulatórios das populações dessas espécies. “Com um ecossistema peculiar como o da Ilha Anchieta, devemos estar atentos ao surgimento de novas doenças, por exemplo, uma vez que essas superpopulações não apresentam nenhuma variabilidade genética”, afirma o pesquisador.
As pesquisas do LaBiC continuarão, com a perspectiva de subsidiar intervenções que possam beneficiar o ecossistema. “A Ilha Anchieta é um enorme laboratório biológico e diversos alunos da Unesp desenvolvem seus trabalhos de conclusão de curso, mestrado e doutorado aqui. Nossa proposta é continuar o monitoramento das populações dos mamíferos e avaliar os impactos dessas populações sobre o ecossistema”, conclui Galetti.
Na imagem acima: o sagui-de-tufo-preto, uma das espécies presentes na Ilha Anchieta (Crédito: Ricardo Bovendorp)