“O jornalista tem lado, mas não pode brigar com os fatos. Esse é o ponto de partida.”

Em entrevista ao podcast Prato do Dia, o jornalista e escritor Ricardo Kotscho analisa os desafios do jornalismo no século 21, como a cobertura dos políticos populistas, a influência das opiniões pessoais dos profissionais de imprensa sobre o trabalho que produzem e os efeitos da polarização política na atuação dos veículos. “Parece que as novas gerações não querem escrever reportagens, e sim editoriais. E a reportagem é o que há de mais importante.”

Com 60 anos profissão, completados este ano, o paulistano Ricardo Kotscho é uma figura célebre no jornalismo brasileiro, e uma referência para os jornalistas. Em sua edição mais recente, o podcast Prato do Dia recebeu Kotscho para contar histórias sobre sua carreira, compartilhar suas reflexões sobre a prática jornalística e falar sobre os múltiplos desafios que o jornalismo enfrenta no século 21.

Filho de alemães, Ricardo Kotscho aprendeu primeiro a língua paterna, e alfabetizou-se no idioma português pela leitura do jornal O Estado de São Paulo, onde viria a trabalhar depois. Aproximou-se do ofício quando, ainda adolescente, começou a trabalhar como assistente de jornaleiro. A leitura dos diários o levou, ainda aos 17 anos, a se qualificar para ser contratado pela primeira vez para trabalhar como repórter em uma redação de jornal, no complexo ano de 1964.

Iniciou-se ali uma das mais duradouras e bem-sucedidas carreiras do jornalismo contemporâneo, que o levou a atuar como repórter, editor, colunista, comentarista e diretor  numa extensa lista de veículos que inclui os jornais Jornal do Brasil, Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, as revistas Isto É e Época, e as TVs Gazeta, Record,  Bandeirantes e Globo. Atualmente, trabalha como colunista do site UOL. E ainda encontrou tempo e oportunidade para acumular bastante experiência “do outro lado do balcão” do jornalismo, na função de assessor de imprensa de Lula em diversas candidaturas presidenciais e servindo como secretário de imprensa e divulgação da República nos anos de 2003 e 2004.

Na conversa, Kotscho elege como um dos textos mais importantes a sair de sua pena uma reportagem, publicada em O Estado de São Paulo, relatando a identidade do operário Manuel Fiel Filho, morto pela repressão em 1976 após ter sido preso e torturado. “Quando escrevi e reportagem, o diretor do jornal me chamou para conversar. Ele me perguntou se algum outro jornal tinha essas informações e eu disse que não, que iríamos ser os únicos a publicar. Ele respondeu: ‘ é isso que me preocupa.’ E disse que só publicaríamos se eu assinasse o texto”, conta. Felizmente, Kotscho não teve medo e topou assinar. Como a morte ocorreu poucos meses após do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, ela contribuiu para desgastar ainda mais a reputação do regime militar dentro e fora do Brasil, a ponto de que, poucos dias depois da publicação, o presidente do Brasil a época, Ernesto Geisel, responsabilizasse o comandante do II Exército pelo homicídio e o afastasse do comando.

Kotscho também analisa o complexo fenômeno da polarização da mídia, e da crescente desconfiança de imensos segmentos da população na informação que é transmitida pelos veículos de comunicação – desconfiança essa que varia de acordo com o posicionamento político de quem está lendo. E relata o debate, que ocorreu tanto na imprensa brasileira quanto na americana, sobre a possibilidade de diminuírem a atenção dada, respectivamente, a Bolsonaro e a Trump, sob a alegação de que eles usavam o espaço para atacar a própria imprensa, espalhar mentiras e erodir a o ambiente democrático. “Durante o governo Bolsonaro debateu-se a ideia de que a imprensa não deveria ir até o cercadinho para acompanhá-lo porque era muito mal-tratada lá. Eu às vezes até evito escrever o nome dele, mas não é possível ignorar. E, ainda que mais cedo ou mais tarde o Bolsonaro passe, não tenho dúvidas de que o bolsonarismo vai continuar”, analisa.

Mas reconhece que não faz sentido pensar que os jornalistas não têm suas visões de mundo pessoais. “Jornalista tem que ter lado. Entre ditadura e democracia, eu tenho meu lado”, diz. Porém, enfatiza que assumir os lados não implica numa total relativização do discurso jornalístico, como parecem supor alguns. “Você tem que ser honesto com o seu público. Não podemos brigar com os fatos. Esse é o ponto de partida”. E o fiador deste compromisso com os fatos, diz, é a prática da reportagem. “Na reportagem você vai no local, conversa com todo o mundo e depois conta a sua história. O jornalismo que eu conheço é feito de reportagem. É a coisa mais importante que tem. Mas parece que as novas gerações que não querem escrever reportagens, e sim editoriais. E ninguém está interessado na opinião delas”, diz.

Com a guinada digital dos grandes veículos de comunicação, a pressão pela primazia a dar uma notícia ganhou intensidade inaudita. Às vezes, segundos podem significar uma grande diferença no número de cliques. “Mas a natureza da profissão não mudou. É ir nos lugares onde as coisas acontecem e ouvir as pessoas que testemunharam os fatos e fazer um relato o mais próximo possível da verdade factual”. Essa boa prática exige, muitas vezes, relativizar a competição pelo furo. “Eu prefiro não ser o primeiro a publicar a matéria, mas publicar uma matéria correta.”

Em meio a tantas mudanças, ele enxerga que o essencial da profissão permanece, tanto em sua prática quanto em sua dimensão social. “Você tem a oportunidade de ver, de contar e tentar mudar as coisas. Se você denuncia alguma coisa errada, você está contribuindo para que ela seja consertada. Se você elogiar alguma coisa que está indo bem, você inspira outras pessoas. Eu vejo o jornalismo assim, senão não vale a pena”, diz.

Ouça a seguir a íntegra da entrevista ao Prato do Dia.