Projeto MicroBioBank vai mapear fungos e bactérias com potencial para gerar novos produtos de biotecnologia

Iniciativa usará metodologia inovadora para analisar material abrigado em diferentes coleções no estado de São Paulo, com foco em aplicações para áreas de saúde e agroindústria.

Muito antes que surgisse formalmente a ideia de pesquisa, o ser humano já procurava conhecer e compreender a imensa variedade de seres vivos com que se deparava à medida que explorava os ambientes naturais. Com o advento da ciência moderna, esse conhecimento passou a ser sistematizado, na forma de enciclopédias específicas para espécies de animais, plantas e insetos, e as coleções biológicas de fauna e flora abrigadas nos museus. Porém,  apesar dos esforços desempenhados ao longo de séculos, estima-se que até hoje mais de 80% das espécies terrestres e mais de 90% das espécies marinhas permanecem desconhecidas. E este desconhecimento é ainda maior no caso dos microrganismos.

Os microrganismos – bactérias, algas unicelulares, fungos filamentosos e outros seres vivos que só se revelam às lentes de um microscópio – são as formas de vida mais abundantes e antigas do planeta. Podem viver em praticamente todos os ambientes, do frio polar da Antártica até o calorzinho agradável do interior do corpo humano, e estima-se que alcancem o montante de 1 trilhão de espécies, um número maior do que o de estrelas na Via Láctea. Estima-se que apenas 1% desse total já foi identificado pelos cientistas.

E há outros motivos, além do mero mapeamento, para expandir nosso conhecimento e nosso entendimento nessa área. Graças ao desenvolvimento da biotecnologia, o ser humano é capaz de empregar essas formas de vida e as substâncias químicas que elas produzem numa variedade de frentes, que incluem descontaminação de ambientes, produção de combustíveis, indústria de alimentos e de cosméticos, tratamento de doenças etc. As pesquisas para novos produtos e processos requerem que os microrganismos sejam preservados vivos, e isso só é possível recorrendo-se aos chamados biobancos microbianos. “Os biobancos são coleções de materiais microbiológicos armazenados de forma adequada para que os microrganismos permaneçam viáveis e sem contaminação e estejam disponíveis para as pesquisas”, explica a docente e pesquisadora Lara Durães Sette, do Instituto de Biociências da Unesp, campus de Rio Claro.

Sette é a pesquisadora responsável pelo Projeto Temático Fapesp “Biobancos microbianos: promovendo inovações para pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico (MicroBioBank)”. Em funcionamento desde meados do ano passado, ele reúne parte do material abrigado em outras coleções de microrganismos do estado, pertencentes à Central de Recursos Microbianos da Unesp (CRM-UNESP), ao Laboratório de Ecologia Microbiana do Instituto Oceanográfico da USP (LECOM-IO/USP) e ao Instituto de Tecnologia de Alimentos (CFA/ITAL).

O projeto prevê que serão selecionadas, nessas três coleções, mil espécies ou gêneros de microrganismos que passarão a compor a coleção do MicroBiobank. O critério para a seleção será o potencial para produzir moléculas inovadoras, com possibilidade de aplicações nos campos da saúde e do agronegócio. A coleção do MicroBioBank servirá também para a realização de estudos relacionados à qualidade e à preservação de material microbiológico, à informatização e à disponibilização das informações relativas a esse material em bases de dados de acesso público, além das pesquisas relativas às suas possíveis aplicações.

Uma coleção de fungos filamentosos e leveduras

O projeto financiado pela Fapesp teve início em setembro de 2023. Entretanto, o plano de criar um biobanco de excelência dentro da Unesp remonta a mais de uma década. A empreitada teve início com a chegada de Lara Sette ao Instituto de Biociências. A docente trouxe consigo cerca de sete anos de experiência trabalhando na curadoria da Coleção Brasileira de Microrganismos de Ambiente e Indústria (CBMAI) da Unicamp e, incentivada pelo professor Fernando Pagnocca do IB-Unesp, iniciou o projeto de construção e reconhecimento oficial do biobanco na universidade. O objetivo foi alcançado em 2013 com a criação da Central de Recursos Microbianos (CRM-Unesp).

Na mesma época, foram adquiridos, via apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), recursos para a construção de um prédio onde o biobanco seria instalado com os equipamentos necessários para a preservação adequada do material microbiológico e para os laboratórios de pesquisas. Entretanto, devido a empecilhos burocráticos e de orçamento, a construção só veio a ser iniciada em 2021, e a inauguração veio a ocorrer em maio de 2023.

Professora Lara Sette manipulando amostras de microrganismos no ultrafreezer da CRM, que conserva o material em -80ºC. Crédito: Igor Vinicius Ramos Otero

Hoje, a CRM-Unesp conta com um acervo de aproximadamente 7.000 amostras de microrganismos. Destes, cerca de 4.000 são leveduras e fungos filamentosos de insetos sociais, como formigas; 2.000 são leveduras e fungos filamentosos coletados no solo e no mar da Antártica; 700 são fungos coletados nas águas da costa brasileira além de algumas amostras de bactérias. A grande diversidade de espécies e gêneros de microrganismos, entretanto, coloca um desafio para o biobanco que é identificar todas as amostras existentes. “Parte das amostras foi identificada, mas ainda desconhecemos vários dos microrganismos que integram nossa coleção. As linhas de pesquisa dos docentes associados à CRM-Unesp variam entre taxonomia, ecologia e diversidade microbiana, visando conhecer os microrganismos e entender as relações microbianas entre eles e com o ambiente, e também a prospecção para aplicações biotecnológicas”, diz Sette.

As operações no biobanco no novo espaço físico completaram um ano em fevereiro, com objetivos ambiciosos: “A ideia é que a CRM-Unesp seja um centro de excelência. No futuro, esperamos conseguir expandir e transformar a central em uma infraestrutura de apoio a pesquisa que centralize a preservação de material microbiológico de relevância ecológica ou biotecnológica da Unesp como um todo”, diz Sette. Para que isso seja possível, entretanto, é necessário investimento em corpo técnico com capacitação sobre como manejar, armazenar e preservar o material microbiológico. Atualmente, a contratação do primeiro técnico do biobanco CRM-Unesp está em andamento e a previsão é que ele inicie os trabalhos no começo de 2025.

A pesquisa dentro do MicroBioBank

No âmbito do projeto Fapesp, serão estudados os microrganismos das coleções da CRM-Unesp, composta por fungos de amostras da Antártica, da costa brasileira e associados a insetos sociais; do LECOM-IO/USO, que reúne bactérias marinhas, e a do CFA/ITAL, com amostras de fungos associados a alimentos. O projeto também conta com equipamentos e métodos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), que integra o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) do MCTI e com a parceria e experiência da equipe do Centro de Referência em Informação Ambiental (CRIA).

Cada uma das instituições está buscando identificar, nas respectivas coleções, os microrganismos com potencial para gerar moléculas inovadoras que possam ser aplicadas na produção de fármacos e em produtos para o agronegócio. Para isso, o grupo organizou o projeto em três partes centrais.

A primeira busca aplicar e aprimorar técnicas de qualidade e preservação do material armazenado nos biobancos. Estabelecer essas diretrizes permite padronizar os procedimentos para garantir a aplicação de métodos de preservação que irão manter o material vivo e viável para as pesquisas, com as características essenciais e pureza, ou seja, sem a contaminação por outros microrganismos. “Isso vai garantir a qualidade dos biobancos, o que minimiza os problemas relacionados com a reprodutibilidade das pesquisas que utilizam os microrganismos a serem estudados”, diz Sette.

A reprodutibilidade de pesquisas é, também, uma questão financeira. No estudo The Economics of Reproducibility in Preclinical Research, publicado em 2015, pesquisadores identificaram que, dos US$ 56,4 bilhões em pesquisas pré-clínicas nos Estados Unidos, metade do dinheiro era gasto com pesquisas de baixo padrão de qualidade e que, por isso, não podiam ser replicadas. De acordo com os resultados do estudo, um dos principais fatores para a falta de reprodutibilidade se deve ao uso de material biológico e de referência fora de padrões de conformidade. “Trabalhar com material microbiológico com qualidade assegurada garante resultados de pesquisas mais confiáveis, como também, diminui o desperdício de tempo e dinheiro”, diz Sette.

A segunda parte do projeto envolve a seleção, propriamente dita, dos mil microrganismos que irão compor o acervo do MicroBioBank. Apesar de algumas amostras já serem consideradas de interesse, principalmente aquelas vindas da Antártica, outras precisam passar por um processo de identificação e seleção. Esse é um grande desafio desta etapa, pois envolve indetificar os microrganismos por meio de duas frentes: a primeira é a taxonomia tradicional, que analisa as características macro e micromorfológicas dos organismos em busca de padrões e traços parecidos com outros já conhecidos; a segunda análise é a partir da caracterização genética, buscando aproximações e semelhanças entre os DNAs das amostras.

Visualização com estereomiscroscópio do fungo filamentoso Cosmospora sp., pertencente ao acervo da CRM-Unesp. O fungo foi isolado da raiz de uma planta chamada Colobanthus quitensis, também conhecida como “pêra-da-antártida”, coletada na Ilha Rei George, na Antártica. Crédito: Igor Vinicius Ramos Otero e Lara Sette

Além disso, os pesquisadores vão realizar uma investigação química da coleção, ou seja, vão identificar quais moléculas esses microrganismos produzem e qual o potencial de aplicação destas em saúde e agroindústria. Para isso, a equipe irá cultivar os fungos, extrair as moléculas geradas por eles e analisá-las por meio de uma técnica denominada espectrometria de massas. A partir deste dado é extraído o “espectro de fragmentação”, que representa a “digital” de cada molécula produzida pelos microrganismos e permite sua identificação.

Essa informação é aproveitada por um dos grandes diferenciais do projeto, explica Sette, que é o algoritmo NP3 MS Workflow, desenvolvido pelo LNBio. Com ele, é possível inserir as informações das digitais obtidas e compará-las com outras bases de dados. “Essa etapa é chamada de desreplicação e se resume em identificar o que já é conhecido dentro de uma base de dados. Esta análise permite também ver a quantidade de espectros que não estão registrados em qualquer base de dados, ou seja, que são potencialmente novos”, explica Daniela Trivella, pesquisadora principal do projeto Fapesp, e Coordenadora da Plataforma de Descoberta de Fármacos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio/CNPEM). Se feito manualmente, a parte de desreplicação poderia levar meses e até anos, enquanto o uso do algoritmo permite acelerar o processo para que seja feito em algumas horas.

Por fim, as informações obtidas no projeto para cada microrganismo serão organizadas em um software de gerenciamento de dados que será atualizado e implementado nos biobancos.   “Essa etapa permite que cada microrganismo seja registrado no biobanco e receba um código individual, que permite sua identificação e é acompanhado por uma série de informações, incluindo: quem coletou a amostra, quem isolou o microrganismo, quem identificou, condições de cultivo, sequências de DNA, fotos, produção de molécula de interesse, local físico em que ele está armazenado no biobanco, entre outras”, conta Sette. Após inseridos, os dados considerados não sensíveis poderão ser acessados abertamente em bases de dados públicas, permitindo que mesmo pessoas de fora do projeto se beneficiem do conhecimento desenvolvido.

Por meio dessas três etapas, espera-se construir uma biblioteca de dados microbiológicos e químicos que poderá ser aproveitada tanto por pesquisadores do projeto como por outros docentes e discentes. “Os microrganismos, seus extratos e as informações associadas estarão devidamente organizados e armazenados e poderão ser utilizados para outros estudos, sem que seja necessário construir essa biblioteca novamente. Ela poderá alimentar pesquisas de outros cientistas e empresas com diferentes alvos e objetivos”, diz Sette.

A busca por biomoléculas inovadoras

As pesquisas com o material microbiológico do acervo do MicroBioBank têm como foco principal encontrar moléculas que apresentam atividades anticâncer e antimicrobiana. Para isso, os pesquisadores cultivam os microrganismos em soluções líquidas contendo os compostos necessários para a sobrevivência e desenvolvimento dos fungos e bactérias. Essas preparações são chamadas de “meio de cultura”. Nelas, os pesquisadores simulam situações de estresse para incentivar a produção de moléculas de defesa, que podem vir a ser aplicadas na produção de medicamentos, por exemplo.

“Na natureza, os microrganismos geralmente produzem essas moléculas para comunicação ou para defesa. Por exemplo, um fungo vai produzir uma molécula antibacteriana se existir, no ambiente, uma bactéria que ele precise combater. Assim, surge uma molécula que é antibiótica”, explica Trivella. “Em laboratório nós cultivamos o fungo, damos tudo do que ele precisa, e o mantemos isolado, sem bactérias ou outros microrganismos competindo. Então, precisamos saber simular esse estresse ambiental, para estimulá-lo a produzir essa molécula”, diz.

O microrganismo libera essas moléculas no próprio meio de cultura, de onde é extraído pelos cientistas para testar sua efetividade em aplicações farmacêuticas. Para isso, são conduzidos ensaios como o “ensaio anticâncer”, cujos procedimentos foram estabelecidos pelo CNPEM, para identificar se existem moléculas capazes de matar células cancerígenas. “Fazemos pelo menos dois testes: um em uma célula de câncer e outro em uma célula normal, porque a molécula precisa afetar apenas as células cancerígenas”, conta Trivella. Com os testes feitos, os pesquisadores selecionam aquelas com os melhores desempenhos. O objetivo é selecionar, a partir dos mil microrganismos iniciais, as oito moléculas com o maior potencial de utilização no desenvolvimento de fármacos.

A promessa dos microrganismos de ambientes extremos

A coleção da CRM-Unesp conta com microrganismos isolados a partir de amostras coletadas pela professora Lara Sette e por estudantes durante expedições do Programa Antártico Brasileiro (Proantar). Essas amostras são particularmente interessantes por abrigarem microrganismos que se desenvolveram em ambientes extremos e, portanto, podem apresentar adaptações e produzir moléculas que tenham propriedades e ações diferenciadas.

Lara Sette realizando coleta de material durante a OPERANTAR XXXIII, em 2015, na Baía do Almirantado (Ilha Rei George). Crédito: Adalberto Pessoa Jr. (USP)

Em campo, os pesquisadores não realizam a coleta do microrganismo diretamente, mas sim de material terrestre ou marinho onde o fungo ou a bactéria está presente, como raízes de plantas ou amostras de solo. Uma vez em laboratório, o microrganismo é isolado do material coletado e, então, estudado.

Durante as pesquisas do projeto temático financiado pela Fapesp, o grupo também irá analisar a variedade das moléculas produzidas pelos microrganismos e relacionar esses dados com a origem do material microbiológico. “Isso nos permite observar se microrganismos da mesma espécie, mas com diferentes origens, apresentam alguma diversidade química quando cultivados em ambientes laboratoriais idênticos”, conta Sette. “Será que fungos de um mesmo gênero ou espécie de um ambiente polar, como a Antártica, apresentam algum perfil químico que nos indique uma resposta adaptativa a esse ambiente de onde esses fungos foram isolados?” questiona a professora.

Os microrganismos de ambientes extremos, como os obtidos a partir das amostras trazidas da Antártica pela equipe de Sette, têm chamado a atenção nos últimos anos por conta da hipótese de que a capacidade de sobreviverem às pressões ambientais lhes permitiria produzir compostos diferentes daqueles gerados por indivíduos que não estavam submetidos a tais pressões. “Esse é um grande diferencial da nossa pesquisa. As chances de encontrarmos novidades quando se trabalha com amostras de ambientes extremos é grande”, diz Sette.

O prédio da Central de Recursos Microbianos (CRM-Unesp), construído com recursos da Finep, que começou a funcionar há um ano no campus da Unesp em Rio Claro. Crédito: Lara Sette.

A equipe teve a oportunidade de ir para a Antártica em quatro ocasiões, nos anos de 2010, 2013, 2015 e 2018. Hoje, a professora diz que não planeja novas viagens em curto prazo porque o foco está em conseguir identificar e organizar todas as amostras de microrganismos que fazem parte do CRM-Unesp, incluindo aquelas que integrarão o MicroBioBank.

Devido à particularidade do material, alguns fungos já foram selecionados para integrar os mil microrganismos do projeto e, atualmente, estão passando por testes para a obtenção das biomoléculas. “Atualmente, trabalhamos com um fungo do gênero Schizophyllum, isolado de uma das amostras da Antártica, e ele apresentou produção de uma quantidade enorme de compostos inéditos nessa primeira rodada de testes”, diz Sette.

Imagem acima: Igor Vinicius Ramos Otero, bolsista do MicroBioBank, e Patrícia Giovanella, pesquisadora colaboradora do MicroBioBank, analisando microrganismos com microscópio na CRM-Unesp.
Crédito: Lara Sette.