O conceito de desenvolvimento sustentável busca articular a demanda humana por desenvolver suas atividades econômicas e ganhar qualidade de vida com a necessidade imperiosa de preservar os recursos naturais que tornam possível a vida no planeta. Porém, na Amazônia, o projeto da criação de uma zona de desenvolvimento econômico sustentável está obtendo o resultado oposto, fazendo avançar a fronteira do desmatamento, pincipalmente de 2018 para cá. É o que mostra uma pesquisa que contou com a colaboração de docentes da Unesp e que foi publicada na revista Perspectives in Ecology and Conservation.
O projeto em questão é a Zona de Desenvolvimento Sustentável (ZDS) Abunã-Madeira. Sua área de pouco mais de 454 mil km² engloba 32 municípios localizados na fronteira entre o sul do Amazonas, o leste do Acre e o noroeste de Rondônia, e abriga cerca de 1,7 milhão de pessoas (veja arte abaixo).
O projeto começou a ser discutido em 2018 com o nome de “Zona de Desenvolvimento Sustentável entre os estados do Acre, Amazonas e Rondônia (AMACRO)”. Formalmente, o objetivo do projeto de zoneamento é fomentar a sustentabilidade ambiental por meio do desenvolvimento socioeconômico da região. A inspiração, porém, vem da explosão de produção agrícola que foi verificada, nos últimos 20 anos, no chamado MATOPIBA, sigla que identifica uma área que se espalha pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que estava originalmente coberta pelo Cerrado. Em 2021, o projeto de zoneamento foi apresentado formalmente pelos três estados e o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro com o nome de ZDS Abunã-Madeira.
Há anos, a região tem registrado um aumento expressivo das taxas de desmatamento, de conversão de florestas em pastagens e áreas agrícolas, e de especulação fundiária. Por isso, a proposta do estudo foi analisar, em detalhes, as mudanças que ali decorreram ao longo de uma década, para comparar os efeitos da discussão e da movimentação para a criação da ZDS sobre o território. Para isso, os pesquisadores combinaram o uso de imagens de satélite, dados sobre desmatamento, degradação florestal e queimadas, e informações geográficas de áreas com vegetação suprimida, além de informações colhidas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), obtidos no período entre 2012 e 2022.
As análises mostraram o crescente surgimento de clareiras, formadas pelo avanço do desmatamento e das queimadas sobre áreas de vegetação natural para a criação de pastagens nos municípios da região. “Posseiros e grileiros estão invadindo, desmatando e subdividindo terras públicas na expectativa de uma lei de regularização fundiária que autentique as áreas invadidas”, diz o geógrafo Michel Chaves, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Tupã, um dos autores do estudo publicado.
Segundo ele, a situação chegou a tal ponto que, atualmente, é possível encontrar áreas de terras públicas situadas na região ofertadas pela internet. “A dinâmica de conversão do uso da terra é diferente nos municípios que o projeto da ZDS Abunã-Madeira pretende abranger”, comenta Chaves. “Em alguns deles, o número de cabeças de gado cresceu mais de 3.000% nos últimos anos.”
Vocação regional
Ao debaterem, e posteriormente se movimentarem pela criação da AMACRO, os políticos e governadores dos três estados amazônicos sustentavam a tese de que a vocação econômica natural da região seria o agronegócio. O projeto de zoneamento criaria facilidades para a atração de investimentos do agronegócio. O efeito, diziam, seria o de gerar empregos e solucionar demandas das populações locais — 43% dos municípios da AMACRO apresentam baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Mais especificamente, o estado do Amazonas quer obter financiamento para potencializar municípios com aptidão para o desenvolvimento agrícola na região sul. O do Acre pretende explorar corredores de transporte de exportação nos eixos das rodovias BR-317, que liga o Brasil ao oceano Pacífico através do Peru, e BR-364, que conecta o estado ao resto do país. Já Rondônia espera fortalecer suas cadeias produtivas. Em comum, os três querem explorar os mercados asiáticos por meio de rotas oceânicas e portos no Pacífico.
O problema, de acordo com Chaves, é que o projeto foi lançado sem que nenhum estudo tenha sido feito para avaliar seus impactos ambientais e sobre o capital humano incorporado nas comunidades tradicionais. Ele lembra que a região abriga 86 unidades de conservação, 49 áreas de terras indígenas e quase 95 mil km² de florestas públicas não destinadas — isto é, terras sob domínio do governo federal ou estadual que ainda não receberam destinação para se consolidar como terra indígena, unidade de conservação ou outro tipo de área protegida, como reservas extrativistas, assentamentos, áreas quilombolas. “Algumas áreas de terras públicas podem ser alteradas mais facilmente se pertencerem a iniciativas como as de zonas de desenvolvimento sustentável”, ele explica.
Terra de ninguém
Análises de dados de sensoriamento remoto feitas pela equipe de Chaves indicam que os municípios que integram a ZDS Abunã-Madeira responderam por 76,5% da taxa total de desmatamento registrada nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia entre os anos de 2018 e 2022. Somente em 2021, 64% do desmatamento nessa área se deu em terras públicas. “Os conflitos fundiários e a violência contra povos indígenas também aumentaram muito naquela região, reforçados pela falta de fiscalização e pelo incentivo ao modelo de desenvolvimento baseado na expansão de áreas para a atividade agropecuária”, diz.
Apesar do aumento expressivo registrado a partir de 2018, o desmatamento nessa região vem crescendo desde 2012, o que coincide com um período de crise econômica, mudanças nas forças políticas e enfraquecimento da regulamentação ambiental no Brasil. De 2012 a 2020, 5,23% da área da ZDS Abunã-Madeira passaram de florestas para áreas de uso antrópico, principalmente como áreas de pastagem, de acordo com dados do MapBiomas, uma iniciativa da ONG Observatório do Clima que reúne universidades, empresas de tecnologia e entidades da sociedade civil brasileira.
Estudos recentes indicam ainda que a conversão do uso da terra na região está ligada principalmente à grilagem de terras, à exploração madeireira e às queimadas, fatores que levam à degradação florestal, ao desmatamento e à expansão do arco de desmatamento para áreas florestais preservadas.
Ao cruzar dados de desmatamento do Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Floresta Amazônica por Satélite (Prodes), coordenado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), com informações do Sigef sobre posse de terra entre 2012 e 2022, os autores do estudo observaram que, em valores absolutos, o desmatamento aumentou em todos os tipos de classes fundiárias, mas de forma alarmante nas unidades de conservação — sobretudo desde 2018, quando a ideia de projeto da ZDS Abunã-Madeira se popularizou.
Nos assentamentos rurais, a maior taxa registrada foi 83,3% acima da média entre 2012 e 2020. Nas fazendas privadas, áreas militares e terras não designadas, as quatro taxas mais altas foram registradas no período de 2018 a 2022. Esse padrão, segundo Chaves, também foi encontrado nas unidades de conservação. Nas áreas de terras indígenas, o padrão de desmatamento mudou a partir de 2018, quando todas as taxas ultrapassaram os 20 km2. “O desmatamento tem sido mais frequente e crescente em terras privadas, mas também avança de forma preocupante nas unidades de conservação”, ele afirma.
A conversão descontrolada de florestas em pastagens ou terras agrícolas na Amazônia contribui para o aumento das temperaturas, além de alterar os padrões de chuvas e intensificar a frequência de eventos climáticos extremos. Segundo Marcos Adami, pesquisador do Inpe, em São José dos Campos, interior de São Paulo, e um dos autores do artigo, “essas condições perturbam a regulação climática e o ciclo da água útil para a produção agrícola em estados produtores relevantes, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, entre outros, gerando perdas bilionárias”.
O ponto de não retorno pode chegar em 25 anos
A Amazônia já perdeu cerca de 18% de sua cobertura florestal. Se essa tendência não for revertida nos próximos 25 anos, o bioma pode atingir o ponto de não retorno, o que indicaria o colapso parcial ou total da floresta e a aceleração do aquecimento global. O alerta foi feito em estudo publicado no dia 14 de fevereiro na revista Nature por grupo internacional de 24 pesquisadores, 14 deles brasileiros, entre eles o climatologista José Marengo, professor do Programa de Pós-graduação em Desastres Naturais da Unesp e do CEMADEN.
No caso da região da AMACRO, só no ano de 2022 o desmatamento chegou a quase 430 mil hectares, e estima-se que, até aquele ano aproximadamente 30% da área original de floresta haviam sido destruídos. Segundo Adami, a quantidade de terras já abertas pode atender os fins de produção agropecuária, o que tornaria desnecessário expandir o desmatamento. “Na verdade, o que acontece lá não tem tanto a ver com aumentar a área para produção agrícola, mas sim com a especulação fundiária”, diz. Ele explica que essa prática é antiga no Brasil, mas ganhou força nos últimos anos, “estimulada por um modelo de desenvolvimento que utiliza o desmatamento para especulação imobiliária e o aumento de áreas para a agricultura e a pecuária extensiva em vez de maximizar a produção em áreas já desmatadas”.
Para Chaves, o caminho para reverter o avanço do desmatamento na região passa por fomentar ações subnacionais, nacionais e internacionais que coíbam ilegalidades e priorizem sustentabilidade. “O país dispõe de tecnologia e sistemas para mensurar impactos ambientais e fomentar políticas públicas de planejamento territorial, como os programas satélites CBERS e Amazônia-1. Também existem iniciativas, inclusive locais, capazes de gerar ganhos econômicos a partir da diversificação da produção e agregação de valor às culturas de origem nativa, valorizando a floresta em pé”, diz. A principal dificuldade, acredita, é mudar o entendimento dos políticos e da população local, pois grande parte já incorporou a ideia de que a junção entre criação de gado e cultivo de soja é a melhor opção para promover desenvolvimento econômico na região.
Imagem acima: desmatamento ilegal no Acre flagrado pela Operação Tayassu, da PF, em 2021. Crédito: PF/AC.