Ídolo popular, referência cult: a trajetória de Odair José

Compositor e cantor conquistou multidões nos anos 1970 ao abordar prostituição e pílula para falar de amor, sofreu com a censura da Ditadura e as críticas da igreja e ganhou status de artista cult nos anos 2000 a partir da redescoberta de sua ópera-rock pioneira.

Odair José de Araújo nasceu na cidade de Morrinhos, GO, em 16 de agosto de 1948. Filho de pequenos agricultores, cresceu em um universo rural e desde criança enfrentou desafios para ter acesso à cultura. “Embora meu pai sempre falasse de música, não havia músicos na minha família. Mas lembro que, quando chegava o tempo de colheita, havia festas com a participação de sanfoneiros e violeiros. Então, por volta dos 7 anos, pedi um violão para a minha mãe de Natal. No final das contas meu pai me deu um cavaquinho, que guardo até hoje. O instrumento tem 69 anos!”, diz Odair.

Durante a juventude, encantou-se com os artistas populares que tocavam no rádio naquela época, nomes como Frank Sinatra, Beatles, Tom Jobim e Luiz Gonzaga. Eles alimentavam seu interesse por se aprimorar no violão, buscando dicas e orientações para dominar o instrumento. “Por volta dos 15 anos, comecei a me descobrir compositor e percebi que tinha uma tendência para fazer músicas, num processo natural. Criava melodias e sempre tinha alguma coisa para falar. Após me mudar para Goiânia, que já era uma cidade maior, comecei a ter contato com músicos e bandas e a ingressar no universo musical. Me apresentava em festas e em emissoras de rádio e televisão, experiências que foram fundamentais para me desenvolver como profissional”, diz.

Aos 17 anos, decidiu se mudar para a cidade do Rio de Janeiro, sonhando em conquistar seu espaço no cenário artístico nacional. “Viajei escondido dos meus pais pois, naquela época, as famílias mais tradicionais achavam absurdo que um filho saísse de casa para viver de música. Cheguei no Rio com um violão, um caderno cheio de músicas, pouco dinheiro e com vários endereços anotados, pois nessa época os estúdios e as gravadoras que me interessavam estavam sediados lá”, conta. Na prática, porém, não tinha nenhum contato direto com os nomes que trazia registrados no caderno. Passou por um período difícil enquanto a carreira demorava a engrenar. Comia em restaurante popular, que posteriormente foi fechado pelo governo militar. Dormia em ambientes destinados a estudantes, até que o dinheiro acabou. Passou a ficar pela região da Praça Tiradentes, onde ficava a sede da maior gravadora do país então, a CBS.


Em 1969, Odair conseguiu gravar um compacto independente, produzido pelo compositor e produtor Rossini Pinto. O trabalho teve uma tiragem tímida. O jovem artista ficou com 250 cópias e saiu distribuindo pelas rádios locais de mão em mão. “Não tinha gravadora, então saí distribuindo na raça. Na época, as gravadoras mandavam nas programações das rádios, por isso era muito difícil que alguém aceitasse um material assim. Mas consegui. Havia dois tipos de paradas nas rádios: as mais vendidas e as mais tocadas. Consegui emplacar a música Uma Lágrima entre as mais tocadas do Rio de Janeiro. Inclusive, há alguns anos, o grupo Pato Fu regravou essa canção num tributo dedicado à minha obra”, conta o compositor.

Durante esse período, Rossini foi contratado como produtor pela CBS e, confiante no potencial de Odair, solicitou sua contratação. O primeiro trabalho do novo cantor para a CBS foi a canção Minhas Coisas, incluída no disco As 14 Mais, um dos principais produtos da companhia naquela época. “Era um disco de 14 faixas com uns 6 artistas. Dentre eles, estavam alguns que vendiam muito, como Roberto Carlos e Wanderléa, e sempre havia espaço para uma ou duas faixas de novos nomes. Inseriram uma canção minha. Aí, meu amigo, foi correr para o abraço, pois este tipo de produto vendia muito”, lembra.

Em 1972, Odair gravou, dentre outras músicas, Eu vou tirar você deste lugar, Esta noite você vai ter que ser minha e Pense pelo menos em nossos filhos. Como prêmio pela persistência do artista, a primeira faixa atingiu um sucesso enorme. Porém, também deu início aos seus problemas com a censura imposta pelo regime militar. “Muita gente me pergunta se a história dessa canção aconteceu comigo. Se eu me apaixonei por uma prostituta. Poderia ter acontecido, mas não ocorreu. Na verdade, eu tocava muito nas noites do Rio de Janeiro, inclusive em boates. Era apenas um músico com meu violão e ficava ali tocando e cantando, na presença de moças e mulheres lindas, maravilhosas, que hoje chamam de garotas de programas. Elas não davam bola para mim”, diz.

Tocando nesses ambientes, conheceu muitas histórias de homens que iam até lá para tomar um drinque, conheciam uma garota e retornavam querendo ficar com a mesma pessoa. E a música se baseia em suas observações reais do que estava acontecendo ao seu redor. “Quando apresentei a música para os produtores, disseram que eu estava louco. A música fugia dos padrões da gravadora, porque falava sobre mulheres de prostíbulo”, diz. No fim, conseguiu autorização para gravar a canção. A música explodiu e virou um sucesso nacional. Tocava em todas as principais rádios, virou uma febre, e Odair começou a se apresentar em emissoras de televisão.

Porém, certa ocasião em que foi à gravadora para receber seu pagamento deparou-se com uma carta da Divisão de Censura do Governo solicitando que comparecesse ao departamento que cuidava da área musical. Ele foi até o local e se encontrou com o responsável. Escutou que Eu vou tirar você desse lugar era imprópria para o momento, pois os censores achavam que a canção se referia, na verdade, ao governo militar, e que ele se propunha a tirar pessoas desta situação. Por esse motivo, a música seria censurada. “Quando falei que a música se tratava do amor de um homem por uma mulher, o cara ficou mais horrorizado ainda. Disse: ‘que coisa imoral! Alguém se apaixonar por uma prostituta! A partir de agora, toda música do senhor terá que passar pelo crivo da censura antes de ser gravada’ “, lembra.

No ano seguinte, 1973, foi lançado o LP Odair José. Músicas como Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula) e Eu, Você e Praça figuraram entre as mais tocadas. Em especial, Uma Vida Só ganhou grande popularidade pelo seu refrão que diz “Pare de tomar a pílula/ Pare de tomar a pílula“. O sucesso não impediu que a canção fosse censurada pelo governo brasileiro, pela argumentação de que fazia propaganda contrária à distribuição de pílulas para o controle de natalidade. “Foi um processo parecido. Lembro que tinha um contrato com a TV Globo e me apresentava lá quatro vezes por mês. Fiz uma apresentação com o lançamento. Uma semana depois, quando voltei para cantar, estava em primeiro lugar. Passado um mês, já havia um rebuliço. Na sequência, vim a São Paulo para cantar no programa do Sílvio Santos, que era na TV Globo. Estava no estúdio e a produção me comunicou que dois caras queriam falar comigo, um fardado e outro à paisana. E perguntaram o que eu tinha vindo cantar. Disse que ia cantar “a pílula”. Me disseram que a música tinha sido proibida em todo território nacional e que, a partir daquele momento, eu não poderia cantá-la. O problema da censura prosseguiu”, conta.

Em 1977, após gravar vários discos de sucesso, Odair lançou o álbum O Filho de José e Maria, que gerou intensa polêmica e que reconhece como divisor de águas em sua trajetória. Na raiz da guinada estava sua percepção artística sobre a música que estava sendo produzida fora do país por volta de 1975, que incluía um novo disco de Paul McCartney e o sucesso avassalador de Peter Frampton. Em paralelo, o próprio Odair estava descobrindo um novo interesse pela guitarra elétrica. Concluiu que era o momento para tentar algo novo.

“Percebi que meu trabalho estava sendo muito repetitivo. Fazia sucesso, vendia, mas eu estava sempre sendo uma cópia de mim mesmo, sem trazer novidades ao público. Então, comecei a pensar em fazer uma coisa diferente”, conta.

No álbum, ele nunca usa o nome de Jesus, limitando-se a citar “o filho de José e Maria”. As dez faixas narram sua história de vida, partindo do nascimento e desdobrando-se em diversos momentos que incluem escolhas sexuais, drogas, pensamentos sobre suicídio… Enfim, os elementos necessários para esboçar a fiel narrativa de uma existência humana. No rastro da forte reação contrária à obra, correram inclusive boatos que o músico teria sido excomungado pela Igreja Católica. Odair diz que nunca houve qualquer tipo de notificação oficial por parte das autoridades eclesiais. Além da controvérsia, o álbum foi um fracasso comercial. Nos últimos anos, porém, o disco foi redescoberto, e ganhou o merecido reconhecimento pelo seu caráter inovador. Em 2017, o jornalista Mauro Ferreira se referiu ao álbum como “a primeira ópera-rock do universo pop nacional”.

Como tantos outros artistas, Odair também atravessou momentos de baixa na carreira. De volta à mídia desde o final da década de 1990, continua gravando canções que abordam temas delicados como sexo, drogas, prostituição e até elementos de protesto contra os problemas do Brasil. Em paralelo, sua obra foi aos poucos despertando o interesse de uma nova geração de fãs, e em 2006, veio o álbum tributo Eu vou tirar você deste lugar. Entre os grupos da nova música pop-rock brasileira que se mobilizaram para fazer releituras de suas canções estavam nomes como Paulo Miklos, Zeca Baleiro, Pato Fu, Mombojó e Mundo Livre S/A.  Também em 2006, lançou o álbum Só pode ser amor o que sinto, que trouxe faixas selecionadas para um filme e uma novela da TV Record.

Após um hiato, o cantor retomou a carreira em 2012 com Praça Tiradentes, produzido por Zeca Baleiro, seguido pelo disco Dia 16 em 2015 e Gatos e Ratos em 2016. Este álbum foi indicado em 2017 para o Prêmio da Música Brasileira, e Odair José levou para casa na época o troféu de melhor cantor. Também foi destaque pela revista Rolling Stone Brasil, que o elegeu como o 20º melhor álbum brasileiro de 2016.

Em 2019, lançou o disco Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio pela gravadora Monstro Discos, que foi eleito um dos 25 melhores álbuns brasileiros do primeiro semestre de 2019 pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 2021, compôs seis canções com Arnaldo Antunes para a trilha sonora do filme “Meu álbum de amores”. Agora, prepara-se para lançar um álbum chamado Os Seres Humanos, e a primeira música será divulgada no início de março, em uma plataforma chamada DNA.

Com mais de 50 anos de carreira e milhares de discos vendidos, lançou mais de 40 álbuns, somando obras autorais, gravações ao vivo, coletâneas e versões em espanhol. E se consolidou como ícone para uma nova geração de músicos brasileiros que se inspiram em sua obra.

“Esse olhar generoso dos meus colegas músicos mais jovens, que demonstram interesse pelo meu trabalho, é muito legal. Me fez também olhar para o meu trabalho com a perspectiva de que, na alma, minha obra é legal. Fiz muito aquilo que a gravadora queria que eu fizesse. Errei em alguns trabalhos, mas fiz sucesso com outros. Digo que o meu trabalho, tirando algumas falhas, alguns momentos errados, tem qualidade. É justamente esse olhar dessa rapaziada que me proporciona continuar trabalhando.”

Confira abaixo entrevista completa de Odair José ao Podcast MPB Unesp.

Imagem acima: divulgação.