Mochila às costas, passos tranquilos, Alânio de Bezerra, 39, caminha às margens da Rodovia Anhanguera (SP-330). Apesar do sol forte, o trabalhador manual, especializado na produção de calhas, veste roupas escuras: camiseta preta, calça de abrigo azul-marinho e chinelo de dedo preto, mesma cor do avental que encontrou pela estrada e amarrou ao corpo. Transita pelo acostamento, na borda da região metropolitana de Campinas, carregando uma sacola plástica grande com latas de alumínio que recolheu ao longo da caminhada. Não tem um destino final: há dez anos vive deslocando-se de um lugar para outro, ou “no trecho”, como se diz no jargão da estrada.
Natural do Ceará, relata ter feito duas vezes o trajeto entre São Paulo e Várzea Alegre, sua cidade natal, localizada no interior cearense, na região do Cariri, a cerca de 300 km da capital do estado. “Fui andando (para o Ceará), voltei de ônibus. Depois, fui e voltei andando. Fui duas vezes pela (BR) 101 e agora eu vim pela (BR) 116”, conta. O “agora” se refere ao início de 2023. Passou o réveillon na casa da mãe em Várzea Alegre, saiu de lá em 2 de janeiro e chegou a Campinas em 27 de fevereiro. O vinco profundo que exibe no calcanhar esquerdo e os calos entre os dedos que abrigam as tiras do chinelo, atestam a rotina andarilha, um comportamento cujas raízes são difíceis de explicar.
“Deixe eu falar para o senhor: estou na rua por um negócio que é mais forte do que eu. Porque tenho mãe, tenho pai, podia estar em casa nessas horas… Lá (no Ceará) tinha tudo, mas tem um negócio que chama para vir para a rua, para morar na rua. É uma coisa que não tem como explicar… Igual vício”, afirma.
A conversa testemunhada pelo Jornal da Unesp ocorreu em uma abordagem realizada em setembro do ano passado durante pesquisa de campo do psicólogo José Sterza Justo, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, campus de Assis. Livre-docente em psicologia do desenvolvimento, há três décadas ele estuda as idas e vindas dessas pessoas pelas estradas do Brasil. “Os andarilhos de estrada são completamente desconhecidos, invisíveis e ignorados pelas políticas públicas e até mesmo pela própria ciência. Modéstia à parte, ninguém mais está fazendo o que eu e meus orientandos fazemos: sair pelas estradas para estudar, concretamente, o mundo dos andarilhos”, diz o docente.
O período da pandemia de covid-19 obrigou-o a fazer uma pausa, e só após o fim da emergência ele retomou sua pesquisa. Agora, seu objetivo é que, ao final da atual temporada de estudos de campo, conduzida em rodovias do estado de São Paulo com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ele esteja apto a fornecer subsídios para a elaboração de uma política pública de assistência e garantia de direitos voltada especificamente para os andarilhos de estrada.
“O meu problema de pesquisa no momento é focalizar as principais dificuldades e desafios que os andarilhos enfrentam no dia a dia, e coletar suas sugestões para melhorar sua condição de vida. Não há qualquer referência aos andarilhos de estrada em nenhuma política ou projeto de assistência social. Eles ficam alheios, excluídos de condições mínimas de cidadania”, diz Sterza Justo.
Dromomania, a paixão pela estrada
Um dos principais referenciais teóricos adotado por Justo em sua pesquisa é o filósofo francês Paul Virilio (1932-2018), autor dos livros “Velocidade e Política” e “O Espaço Crítico” e responsável por desenvolver o conceito de “dromologia”. Grosso modo, define-se a dromologia como o ramo da ciência que estuda os efeitos e os impactos da velocidade na sociedade contemporânea, na qual impera a lógica da mobilidade e, mais ainda, da corrida. Sob essa perspectiva, a pressão e a pulsão pela movimentação são vistas como resultantes desse ambiente “dromológico”, em que há uma busca pelo maior número de experiências possíveis no menor intervalo de tempo.
“É um pouco dentro dessa lógica que situo os andarilhos. Eles também têm de se movimentar, não podem ficar parados. Precisam caminhar todos os dias, e o tempo todo. Também são afetados por esta dromologia, e alguns são muito afetados”, diz o docente. Para explicar este quadro intenso, ele recorre a outro termo: a dromomania. “Esse seria o estado extremo, em que a pessoa não consegue ter qualquer tipo de controle dessa sua pulsão para o movimento. Esse conceito do Paul Virilio é muito apropriado para compreender situações mais específicas em que essa pressão para o movimento se torna bem incisiva.”
É nos acostamentos das rodovias que ele trava contato com os caminhantes. Nestas circunstâncias tão inusitadas, cada abordagem se torna um desafio, e a hora do encontro é também a da despedida, como na canção de Milton Nascimento. Afinal, não há oportunidade para entrevistas preliminares, e dificilmente haverá segundos encontros. É necessário rapidez para apresentar-se, resumir os objetivos da pesquisa, convidar o andarilho para uma conversa de beira de estrada e — recebendo um aceite —superar os ruídos da rodovia na tentativa de entabular um diálogo que siga a trilha mais racional possível. Como aliados, o professor costuma trazer consigo uma garrafa ou um copo d’água, importantes ferramentas para ajudar no sucesso da abordagem e no afastamento de eventuais desconfianças.
O impacto do Bolsa Família
O desafio de dar nome e rosto a uma população tão marginalizada é complexo, e pode envolver experiências ao mesmo tempo efêmeras e radicais, no sentido mais estrito dessas palavras. Durante a saída a campo acompanhada pelo Jornal da Unesp, que se iniciou na capital paulista e seguiu até a cidade de Limeira pela Rodovia Anhanguera (SP-330), o primeiro andarilho abordado apresentou-se como William. O homem caminhava pela estrada entre os municípios de Jundiaí e Louveira, e disse que se dirigia a uma agência da Caixa Econômica Federal em Campinas. Disse que ia receber o pagamento pelo Bolsa Família, no valor de R$ 600, e que tinha dificuldades em obter trabalho uma vez que não possuía residência fixa. Como ambulante, já vendeu bala e outras mercadorias, e também fez trabalhos como jardineiro. Bebeu o copo d’água oferecido com rapidez, mas a conversa não fluiu, e ele não usava as expressões e referências que são comuns a quem vive “no trecho”.
A menção ao Bolsa Família e seu pagamento de R$ 600 surgiu em todas as abordagens, conduzidas no dia. Ao longo de 2023, o governo federal promoveu uma espécie de “pente-fino” nos cadastros do programa, procurando expurgar os casos de irregularidades. Durante as entrevistas, os andarilhos mostraram que, de um modo ou de outro, estavam bastante atentos às exigências que precisavam cumprir para que pudessem receber o benefício, ou para seguirem como beneficiários, se fosse o caso.
Rodrigo, por exemplo, caminhava pelo acostamento da SP-330 perto de Campinas. Vestia uma camisa do São Paulo Futebol Clube e meiões de futebol azuis, que tinham, segundo ele, a função de proteger os dedos da irritação na pele causada pelas tiras do chinelo. Repetia, com frequência, que necessitava ir à Defensoria Pública. O andarilho deu a impressão de ser um ex-detento em busca de documentação. O docente, no entanto, não o questionou diretamente sobre essa impressão, uma vez que este não é o objeto da pesquisa.
“Após todo esse tempo de pesquisa, pude perceber muitas mudanças relacionadas aos andarilhos”, analisa o docente. “Eles têm carregado menos objetos, trazem apenas o mínimo de coisas necessárias para sobrevivência na estrada. Aquela imagem típica do andarilho de estrada, carregando um saco às costas, hoje já não se vê. Me parece que essa mudança ocorre porque existe mais facilidade para que consigam comida, e também um lugar para dormir. Mas o que mais surpreendeu nesses dois últimos anos de retomada da pesquisa, logo após a pandemia, foi a quantidade de andarilhos que têm cartão de benefício social. Isso não existia. Antes, boa parte deles nem tinha documentos, diziam que ‘documento não servia para nada’.”
Outra variação importante, cujas causas a pesquisa está buscando levantar, tem relação com a faixa etária dos andarilhos. No dia da saída a campo acompanhada pela reportagem, o homem mais jovem a declarar sua idade tinha 37 anos e o mais velho, 46 anos. José Sterza Justo diz estar se deparando com andarilhos mais velhos em suas entrevistas à beira das estradas. Mas reconhece que somente uma pesquisa quantitativa voltada a esta população poderia afirmar, com certeza, que o envelhecimento populacional divulgado no último censo do IBGE também já atingiu quem está “no trecho”.
“É uma mudança que percebo mais intuitivamente. Lá atrás, eu encontrava pessoas mais jovens, bem novas mesmo, na faixa dos 20 anos. Ultimamente tenho encontrado mais na faixa dos 40. O fato é que é preciso uma contagem ou um censo que inclua os andarilhos. Isso é algo perfeitamente exequível. Parece difícil, mas não é”, diz.
A certeza de que a contagem dos andarilhos é possível vem do próprio “chão da estrada”, por assim dizer. Na malha rodoviária concedida à iniciativa privada no estado de São Paulo, que abrange 11,1 mil quilômetros de rodovias paulistas, existem 200 pontos de atendimento, os chamados Serviço de Atendimento ao Usuário (SAU). Nestes locais são disponibilizados banheiros, bebedouros e até fraldários. Segundo o docente, bastaria fazer uma contagem periódica a partir da passagem deles por estes postos SAU.
Contagem é essencial para política pública
Questionada pela reportagem, a Autoban, concessionária que responde pela rodovia Anhanguera, informou que em 2023 foram registradas 1.160 ocorrências de andarilhos na via. Porém, reconhece que “esse número tende a ser muito maior, uma vez que parte dos transeuntes não são localizados pelas equipes por circularem no período noturno, momento de menor iluminação”. Segundo a concessionária, a metodologia empregada para chegar a esta contagem envolve diversas fontes, incluindo o controle nas praças de pedágio, câmeras de vídeo, inspeções de tráfego e até notificações de motoristas que trafegam na rodovia. Existem hoje 2.976 câmeras instaladas na malha rodoviária paulista concedida à iniciativa privada. De acordo com dados da Artesp, a agência que regula as concessões das estradas em São Paulo, o volume de tráfego pelos pedágios nas rodovias sob concessão atingiu o pico de 99.170.803 em dezembro de 2023, maior número dos últimos três anos.
“Essa questão precisa ser resolvida com a maior urgência. É preciso conhecer o tamanho dessa população de andarilhos, quantos são e onde estão mais concentrados”, diz o psicólogo. “Os dados qualitativos eu tenho, mas os quantitativos seriam importantíssimos para saber de que forma direcionar algum tipo de política pública.” A Artesp não respondeu se há registros do número de atropelamentos relacionados a andarilhos nas rodovias paulistas sob concessão. Segundo a Autoban, houve 27 atropelamentos de andarilhos no ano passado, ante 31 ocorrências do tipo em 2022.
Nas entrevistas com quem está “no trecho”, não é difícil escutar relatos de acidentes. Alânio Bezerra, por exemplo, diz que enfrentou o seu pior momento na estrada quando foi atropelado no ano passado, perto de Americana. Ficou com o pé engessado, mas tirou o gesso no dia seguinte para caminhar até Jundiaí e receber o auxílio de R$ 600, que estava bloqueado na época. Sem dinheiro e com o pé lesionado e inchado, não podia trabalhar como autônomo nem recolher latas para vender – recebe R$ 5 pelo quilo de latas de alumínio, diz.
André Nilson, há 20 anos “no trecho”, recorda que também passou por acidentes ao transitar pelas rodovias. Na conversa com o professor, sem demonstrar ressentimentos e mostrando bom humor, lembra de experiências negativas, tais como a recepção, nem sempre amistosa, por parte dos seguranças particulares que atuam em postos de combustível, locais em que os andarilhos costumam pedir água e comida enquanto tomam fôlego para continuar a caminhada. Também relata abordagens policiais um pouco invasivas. “De vez em quando, a polícia para, e quer que a gente abra tudo. Nós ‘é’ andarilho, mas é documentado”, diz.
Natural de Capivari-SP, André Nilson transita “no trecho” em cima de sua bicicleta, que chama carinhosamente de “esqueleto”. Na garupa da bike, carrega uma caixa em que leva alguns alimentos, como um pé de repolho e um pedaço de mandioca, panelas, cobertas, roupas sujas e pequenos objetos pessoais. O andarilho possui um telefone celular de modelo antigo, cuja tela está trincada, no qual gosta de ouvir modas de viola e para o qual pede que sejam enviadas as fotos que estão sendo feitas à beira da rodovia. “Quero mostrar para meus amigos caminhoneiros e meus irmãos de trecho”, diz.
Ao ouvir a pergunta sobre como iniciou a rotina de andarilho, Nilson pede uma pausa para um gole do “corote” que leva na bagagem. “Se você encontrar um trecheiro que fala que não bebe cachaça, não é trecheiro”, sentencia, relatando que a morte da ex-companheira grávida foi o gatilho para cair na estrada – o nome da filha, Jéssica, hoje acompanha o andarilho num pequeno cordão de contas amarrado ao guidão da bicicleta.
Como acontece com outras populações em situações de vulnerabilidade social, os andarilhos também são testados em situações limítrofes de saúde mental e têm o dia a dia permeado pelo consumo de álcool e outras drogas. Alânio relata às vezes ouvir vozes quando está caminhando sozinho pelos acostamentos e fala sobre saúde mental de um jeito leve. Lembra das vezes que já foi furtado enquanto dormia, é grato por nunca ter sido violentado e demonstra lucidez ao falar da jornada errante.
“Dinheiro ajuda, a gente não vive sem o dinheiro, mas não é tudo. Muitas vezes você está assim sem ninguém, pensando besteira, sozinho, cansado, com fome, exausto e chega uma pessoa e fala uma palavra de conforto. Você se anima e se levanta de novo. Então, essa palavra vale mais do que um milhão”, diz.
Imagem acima: o andarilho Alânio fotografado durante a entrevista com Sterza Justo.