Trajetória de pioneiras da pesquisa em astronomia pode inspirar mulheres que consideram seguir carreira científica no século 21

Por ocasião do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, artigo recupera vida e obra de Cecilia Payne, que integrou grupo de mulheres calculadoras em Harvard e lutou contra preconceito até firmar-se como importante pesquisadora. Autores também lamentam que ensino formal não valorizem de forma adequada as contribuições femininas para a construção do conhecimento astronômico.

,

Desde 2015, a data de 11 de fevereiro é celebrada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) como Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência. A efeméride foi estabelecida para estimular a participação feminina nas carreiras de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM), áreas em que as mulheres respondem por apenas 35% dos estudantes de graduação e pós-graduação, e 33,3% das posições como pesquisadoras, segundo dados da própria Unesco. Porém, além de contribuir para a construção de um futuro mais inclusivo, a data abre uma janela para recuperar e celebrar o trabalho das pioneiras na pesquisa, cujas realizações e capacidade de superação de obstáculos podem servir de inspiração às meninas que hoje enfrentam suas próprias dificuldades para ingressar ou progredir nestas carreiras.

Já há algumas décadas as histórias dessas pioneiras são objeto de estudos detalhados por parte dos historiadores da ciência, cuja profissão envolve esmiuçar, em detalhes, todas as circunstâncias e movimentações que cercaram os avanços do conhecimento científico. Mais recentemente, porém, elas se tornaram objeto de interesse também por parte dos profissionais da academia interessados em temas como o ensino de disciplinas científicas no ambiente escolar e a percepção social da ciência, que enxergam nestas trajetórias um valor pedagógico sobre como se dá, na prática, a produção do conhecimento, e sobre as diferentes condições que homens e mulheres encontraram, ao longo do tempo, para colaborar com essa produção.

Um exemplo de ambiente onde estes temas estão sendo debatidos é o do programa de pós-graduação em Educação para a Ciência, da Faculdade de Ciências, campus Bauru. Em 2023, três doutorandos do programa, juntamente com o docente Rodolfo Langhi, que também é coordenador do Observatório Didático de Astronomia da Unesp, publicaram um artigo sob esta perspectiva intitulado “O caminho tortuoso de mulheres na ciência e na astronomia: evolução e composição estelar a partir de estudos feitos por Cecilia Payne”.

A fotografia revoluciona a astronomia

Cecilia Payne nasceu na Inglaterra, em 1900, mas mudou-se para os Estados Unidos na década de 1920 em busca de oportunidades para pesquisar astronomia. Foi convidada a estabelecer-se em Harvard e integrar uma das raras equipes formadas exclusivamente por mulheres, que eram conhecidas como “As Mulheres Calculadoras” ou “As Calculadoras de Harvard”. O grupo fora criado em 1877 pelo astrônomo Edward Charles Pickering, que ocupava o cargo de diretor do Observatório de Harvard, e sua tarefa consistia em analisar e catalogar milhares de chapas fotográficas do céu noturno.

O desenvolvimento da fotografia no final do século 19 havia revolucionado os procedimentos empregados nas observações astronômicas. Embora a invenção das câmeras fotográficas remontasse a 1839, seu grande momento de popularização se deu a partir de 1888, com a fundação da marca Kodak. Beneficiando-se do aperfeiçoamento dos novos modelos, os astrônomos passaram a acoplar câmeras em telescópios. “O uso de câmeras fotográficas permitiu agilizar muito o processo de coleta de dados astronômicos, porque antes era necessário desenhar à mão o mapa estelar”, relata a doutoranda Elizandra Daneize dos Santos, primeira autora do artigo.

O uso da fotografia resultava em grande número de dados coletados a cada noite, o que demandava uma equipe igualmente numerosa para analisá-los e catalogá-los. Para suprir essa necessidade, Pickering teve a ideia de recorrer a mulheres que tinham formação em astronomia e buscavam se aproximar da pesquisa, sonhando com uma oportunidade de trabalho no meio acadêmico.

Chapa fotográfica mostrando uma parte da Via-Láctea com a identificação das estrelas na composição.
Crédito: Harvard College Observatory, Photographic Glass Plate Collection

Este não era um objetivo fácil de realizar. Na virada do século 19, além de não desfrutarem do status de cientistas plenamente reconhecido, mulheres eram proibidas até de operar os telescópios. “Todas as calculadoras tinham em comum a aspiração de estudar e se destacarem, porque o que recebiam pela atividade era muito pouco”, diz Elizandra. O pagamento era de US$ 0,25 a hora – inferior ao oferecido a homens pela mesma tarefa –  para trabalhar seis dias na semana. Muitas atuavam de forma voluntária. Pickering conseguiu contratar, na década de 1870, 80 colaboradoras. O espaço de trabalho das calculadoras era uma pequena biblioteca ao lado do observatório.

O fato de terem acesso apenas às chapas fotográficas e não saberem operar telescópios acrescia mais dificuldades ao desempenho das funções das calculadoras, que incluía medir o brilho das estrelas e assinalar sua posição e sua coloração. Ao comparar as medições de uma fotografia com outra, e também com catálogos já publicados, elas identificavam astros já conhecidos e assinalavam novas estrelas.

Henrietta Leavitt, outra célebre calculadora de Harvard

Um dos nomes mais conhecidos quando se fala das Mulheres Calculadoras foi Henrietta Leavitt, que começou a trabalhar no Observatório de Harvard em 1895. Ela foi incumbida de trabalhar com estrelas variáveis, cujo brilho muda no período de alguns dias. Praticamente uma década depois, Leavitt percebeu que o cintilar das estrelas seguia um ritmo regular e, quanto mais tempo transcorria entre um brilho e outro, maior era a luz que emitiam.

Essa descoberta permitiu desenvolver os cálculos que são utilizados para determinar a distância entre as galáxias. Ao comparar duas estrelas variáveis que têm o mesmo período de oscilação de luz, se uma delas emite menos brilho do que a outra, então a de luz mais fraca deve estar mais distante. Afinal, se estivessem a mesma distância, a intensidade observada seria a mesma nas duas, já que ambas possuem o mesmo período de oscilação. Por meio dessa técnica, anos mais tarde, Edwin Hubble foi capaz de constatar que o universo está se expandindo.

O trabalho inicial das Mulheres Calculadoras resultou na publicação do “Catálogo Henry Draper”, nome que homenageava um eminente astrofotógrafo, em 1890. A obra continha mais de 10.000 estrelas catalogadas de acordo com o espectro de radiação eletromagnética irradiado de cada astro.

O espectro estelar é um feixe de luz que cada estrela emite, normalmente contendo todas as cores do arco-íris. Entretanto, o feixe costuma ser atravessado por linhas escuras de diferentes espessuras, sendo que cada uma dessas linhas está associada a um elemento químico presente na estrela. As calculadoras realizavam a análise e a comparação dessas linhas e determinavam a composição do astro, ou seja, os elementos que compunham cada estrela. Naquele momento, como as fotografias ainda eram em preto e branco, as calculadoras eram forçadas a trabalhar com variações da escala de cinza. O nome “calculadoras” vinha dos cálculos exaustivos que eram necessários para converter as imagens em informações e dados astronômicos.

A lenta ascensão de Payne em Harvard

Cecilia Payne trabalhando em seu escritório em Harvard Crédito: domínio público.

Em 1923, dois anos após a morte de Leavitt, Payne juntou-se à equipe, a convite do então diretor do Observatório de Harvard, Harlow Shapley. À época, já havia assistido às aulas de física e química na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela manejava um amplo conhecimento de física quântica, em grande parte conquistado durante as aulas de Ernest Rutherford, o pai da física nuclear. (Apesar de ter assistido a todo o curso de graduação em física, ela nunca recebeu o diploma. A Universidade de Cambridge só veio permitir a graduação de mulheres em 1948.)

Do ponto de vista científico, ela queria recorrer ao extenso acervo de placas fotográficas de espectros do Observatório de Harvard, que já contava com mais de 200 mil registros, para testar teorias propostas por outros astrofísicos da época. Após iniciar sua atuação em Harvard, ela foi convidada a escrever uma tese de doutorado. Publicada em 1925 sob o nome Atmosferas Celestes, foi um trabalho pioneiro no campo da astrofísica. Na obra, ela propôs a hipótese de que o sol e todas as estrelas seriam compostos principalmente por gases, em especial hidrogênio e hélio. “A tese foi muito inovadora. Naquela época, acreditava-se que as estrelas tinham uma composição semelhante à da Terra: seriam astros rochosos com uma maior presença de ferro e elementos pesados”, diz Elizandra.

Defender uma nova ideia que contrarie concepções há muito estabelecidas em qualquer campo da ciência nunca é um processo simples. E o trabalho de Payne trazia como “agravante” o fato de ser a produção de uma mulher que sequer dispunha de um diploma formal de graduação. É fácil entender por que ela foi aconselhada a não insistir no debate e a dedicar-se a outros temas. Hoje, sabe-se que o achado de Payne estava correto: a maior parte das estrelas têm composição predominantemente gasosa, com uma maior concentração de hélio e hidrogênio. Mas ainda que gradualmente a balança tenha se inclinado na direção da gradual aceitação de seu trabalho, reconhecido como um passo valioso que ajudou a desvendar o antiquíssimo problema científico quanto à natureza das estrelas, isso não bastou para catapultá-la ao estrelato científico. Sua carreira prosseguiu passo a passo, em ritmo de tartaruga.

“Mesmo realizando uma excelente pesquisa de doutorado, por ser mulher, ela não obteve o reconhecimento profissional que merecia”, avaliam os autores no artigo. Esta falta de reconhecimento se revelou, por exemplo, na impossibilidade de que Payne fosse contratada como espectroscopista, cargo para o qual havia adquirido experiência durante a pesquisa para a sua tese, e nem sequer como astrônoma, pois o presidente da Universidade Harvard à época não admitia mulheres em cargos de professoras e instrutoras. Mesmo assim, prosseguiu ligada à instituição, atuando em funções de baixo prestígio e com pouca remuneração enquanto encontrava caminhos para continuar atuando na pesquisa, com o apoio de Shapley.

Chapa fotográfica com o espectro de estrelas. É possível observar linhas verticais cortando os espectros horizontais.
Crédito: Harvard College Observatory, Photographic Glass Plate Collection

Mas, aos poucos, o espaço para as mulheres na universidade foi se ampliando. A continuidade de seu trabalho de pesquisa em alto nível resultou na publicação de vários livros muito bem avaliados pela comunidade astronômica, e em 1938 ela recebeu o título de “astrônoma”. Posteriormente, foi indicada para uma bolsa que proporcionava remuneração melhor, mas a promoção só foi autorizada porque Shapley assegurou à direção da instituição que de jeito nenhum a posição equivalia ao cargo de professor. Posteriormente, Shapley conseguiria mudar o perfil do cargo, tornando-o explicitamente uma posição de professor, porém seus cursos não seriam registrados no catálogo oficial de Harvard até 1945. Em 1953, Payne se tornaria a primeira mulher a ocupar o cargo de full professor da Faculdade de Artes e Ciências de Harvard. Logo depois, foi a primeira mulher nomeada para dirigir o departamento de astronomia da Instituição. Ela se aposentou em 1966 e recebeu o título de professora emérita. Faleceu em 1979.

No Brasil, mulheres são maioria dos bolsistas mas igualdade está distante

A opção por recontar a história de Cecilia Payne expressa o interesse dos autores pelo ensino de astronomia. Elizandra dos Santos iniciou sua atuação como docente de ciências nas salas de aula do ensino fundamental da rede pública do Paraná. Lá, deparou-se com a intensa curiosidade juvenil pelos astros, muitas vezes saciada em sites on-line nem sempre dos mais confiáveis. “Os alunos são muito curiosos a respeito dos fenômenos astronômicos. Por meio da mídia eletrônica, eles têm acesso a informações de cunho científico, mas também a observações do senso comum e a concepções alternativas ou errôneas. Chegam à escola munidos de perguntas e comentários sobre o que viram”, diz ela. Sentindo falta de um maior embasamento para enfrentar tantos questionamentos, ela cursou mais de uma dúzia de formações complementares em áreas como astronomia, astrofísica e técnicas observacionais, e refletiu sobre essa experiência num mestrado sobre ensino de astronomia no ensino fundamental.

“Foi a experiência de sentir na prática a necessidade de formação nesta área, principalmente em cursos de formação de professores, que me levou a desenvolver a pesquisa do mestrado, e agora do doutorado, em processos de ensino e aprendizagem em astronomia e ciências, e abordando também o ensino de astronomia em cursos de formação de professores”, conta.

Junto com o aprendizado sobre os astros veio a descoberta do trabalho das pioneiras da astronomia, e da possibilidade de refletir sobre a produção da ciência a partir delas. “Pensar em como a ciência é estruturada e elaborada é fundamental para que os estudantes possam entender que o conhecimento está em constante evolução. Aquelas mulheres do século passado que, com muita luta e inúmeros enfrentamentos, conseguiram chegar ao meio científico e acadêmico e desenvolveram pesquisas que divergiam do que a ciência apresentava naquele momento eram desprezadas, tinham seus trabalhos menosprezados, e se sentiam constrangidas em tentar defender seus estudos”, diz. “Os estudos em astronomia têm uma enorme participação feminina em sua construção, porém, não há o devido valor de suas contribuições em registros bibliográficos, espaços educacionais, processos de escolarização ou qualquer outra fonte ou dispositivo da educação formal”, escrevem os autores no artigo.

E o fato de que hoje, ao contrário de Cecília Payne, as mulheres têm livre acesso aos diplomas científicos e aos concursos de professor universitário não implica, de forma alguma, que esse processo de luta tenha se concluído, ou mesmo que esteja próximo de uma conclusão.

Segundo dados do CNPq, embora haja no Brasil mais mulheres do que homens recebendo bolsas de iniciação científica, de mestrado e de doutorado, elas correspondem a apenas 33% do total de bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq. A desigualdade é ainda mais expressiva nas áreas de STEM. Nas áreas de computação e matemática, por exemplo, os homens assinam 75% dos artigos publicados. Uma das explicações propostas para a permanência de desigualdades de gênero expressivas na academia é o chamado efeito tesoura, que resulta no retardamento do avanço das mulheres nas carreiras científicas devido ao acúmulo das atribuições profissionais com o trabalho doméstico não remunerado e a maternidade, funções culturalmente atribuídas às mulheres.

“A historiografia pode ter uma tendência de mascarar as contribuições das mulheres nesse campo, e as dificuldades que enfrentaram em tempos passados”, diz Elizandra. “Retomar a história da inserção das mulheres nos meios científicos e acadêmicos é uma forma de reconhecer o processo de luta que elas vivenciaram arduamente, durante séculos. E pode encorajar as mulheres e meninas a não desistirem perante os desafios que enfrentam, de uma maneira geral, na sociedade contemporânea.”

Imagem acima: grupo de Mulheres Calculadoras, contratado pelo diretor do Observatório de Harvard, Edward Charles Pickering. Na imagem, elas estão na biblioteca onde costumavam trabalhar, durante o exercício de análise das chapas fotográficas e catalogação dos corpos celestes.Crédito: Harvard College Observatory.