Pesquisa soluciona enigma do formato de asteroide alvejado em primeiro experimento de defesa planetária

Doutor pela Unesp colaborou com estudos que explicaram origem e estrutura do asteroide Dimorphos. Trabalho gerou convites para integrar missões da Nasa e da Agência Espacial Europeia que analisam eficácia de sistema em desenvolvimento para proteger a Terra do bombardeio de corpos celestes.

O nome Dimorphos talvez não soe familiar a muitos dos fãs de astronomia, mas desde 22 de setembro de 2022 esse pequeno asteroide foi inscrito nos registros da história da exploração espacial humana. Naquele dia, a rocha espacial foi atingida pela missão Dart (Double Asteroid Redirect Mission), em um ensaio de uma técnica de defesa planetária conhecida como deflexão por impacto cinético. O impacto resultou numa mudança da trajetória do asteroide, que estava a 11 milhões de quilômetros da Terra, e o sucesso da missão foi celebrado em manchetes de veículos de todo o mundo.

Assim como muitos asteroides na nossa galáxia, o Dimorphos não vive sozinho; ele é parte de um sistema binário, e orbita um corpo principal, o asteroide Didymos, que tem 780 metros de extensão. O Didymos tem um aspecto semelhante ao de um diamante, mas o formato do Dimorphos, devido às suas pequenas dimensões, era desconhecido. Isso representava uma dificuldade para a missão, pois dificultava o planejamento quanto à região onde situar o impacto. “Embora o senso comum veja os asteroides como corpos mais ou menos redondos, não é bem assim”, explicou Othon Cabo Winter, do Departamento de Matemática, Faculdade de Engenharia e Ciências da Unesp, campus Guaratinguetá. “Eles têm formatos variados. Muitos são alongados”, diz.

Da avalanche ao asteroide

Buscar informações sobre o possível formato do Dimorphos por meio da pesquisa teórica foi um dos temas explorados pelo físico Gustavo Madeira como parte do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Física e Astronomia da Faculdade de Engenharia da Unesp em Guaratinguetá. Como parte do doutorado, ele estudou por algum tempo no Institut de Physique du Globe de Paris, na França, e lá passou a integrar um grupo de pesquisa formado por cientistas da instituição. O primeiro resultado desta colaboração foi publicado na revista científica Icarus. Sabendo do formato semelhante a um diamante do Didymos, o grupo supôs que ocorreriam avalanches com certa periodicidade no asteroide maior. Estes eventos seriam parcialmente responsáveis pela forma do Didymos, mas também por ejetar partículas que, em um primeiro momento, formariam um anel próximo do asteroide para, depois, se aglutinar e formar o que hoje é o Dimorphos.

“Esse é um fenômeno já conhecido na literatura”, diz Madeira, que hoje realiza seu pós-doutorado em Física e Astronomia na mesma instituição francesa. Ele diz que outros asteroides conhecidos exibem o mesmo formato, como o Ryugu e o Dinknesh. A origem do formato estaria em um fenômeno conhecido como efeito YORP (Yarkovsky–O’Keefe–Radzievskii–Paddack). “O efeito é responsável por acelerar a rotação de pequenos corpos, como asteroides, devido a sua interação com o Sol”, diz Madeiro. Com isso, após algum tempo de aceleração, a velocidade se torna tão elevada que ocorre uma avalanche de material que forma o asteroide.

Uma parte desses detritos depois se conecta de novo ao Didymos, mas o material que não retornou à superfície foi responsável por formar o Dimorphos. “O corpo tem uma certa resistividade, ou seja, ele tenta manter o formato original ao máximo. Mas, a partir de certo ponto, devido à aceleração, ele libera o material e também diminui a rotação. Mesmo assim, o efeito continua agindo. Neste momento, a rotação do Didymos está sendo acelerada. Pode ser que no futuro aconteçam novas avalanches”, explica Madeira.

Imagem do Dimorphos obtida pela Dart antes do impacto. A foto foi registrada quando a sonda estava a cerca de 12 quilômetros do asteroide e 2 segundos antes do impacto.
Crédito: NASA/Johns Hopkins APL

A pesquisa teve como base um programa de modelagem desenvolvido pelo supervisor de pós-doutorado de Madeira, o professor Sébastien Charnoz. A versão original do software foi apresentada em 2010, em um artigo publicado na Nature, no qual foi estudada a formação das luas de Saturno. Para a pesquisa atual, o brasileiro precisou adicionar mais variáveis, o que aumentou sua precisão. Partindo da ocorrência de uma avalanche, a modelagem apresentou dois cenários. No primeiro a avalanche transcorre em um ritmo mais acelerado, o que resulta num processo rápido de formação do asteroide satélite. O segundo considera um período mais de deposição dos detritos. Nesse caso, verifica-se a formação de vários pequenos asteroides no entorno do Didymos, os quais colidem entre si, num processo que resulta na formação do asteroide satélite.

Cada cenário, porém, prevê a formação de satélites com formatos diferentes. No primeiro caso, o novo asteroide apresenta uma forma prolata, semelhante a um quibe. O segundo cenário resultaria em um asteroide oblato, em um formato semelhante a um M&M’s. “Descartamos a segunda alternativa, que considera um período de formação mais longo porque, na época, as condições necessárias para isso pareciam um pouco absurdas”, diz. Segundo os cálculos, seria necessário que transcorresse um período de milhões de anos até que a formação do Dimorphos se concluísse. Porém, uma vez que o sistema de asteroides apresenta elevada velocidade de rotação – o Didymos completa uma rotação em aproximadamente sete horas – o tempo de formação do Dimorphos deveria ser algo também mais rápido. Isso levou o grupo a acreditar que o formato real do Dimorphos deveria se encaixar na categoria dos prolatos.

O artigo, publicado em abril, foi bem recebido pela comunidade científica e rendeu um convite para participação na missão Hera, da Agência Espacial Europeia (ESA), uma missão irmã da Dart. Enquanto o projeto estadunidense teve como objetivo alcançar um impacto bem-sucedido, a missão europeia, cujo lançamento está previsto para o ano que vem, será responsável por coletar dados sobre a eficiência do impacto, além de gerar mais informações sobre a dupla de asteroides e sobre a cratera que se formou com a colisão. Na missão Hera, Madeira integra a equipe de pesquisa em dinâmica, atualmente responsável por buscar antecipar possíveis problemas que possam acontecer com a sonda, uma vez que ela entrar na órbita do Didymos. “O trabalho, mesmo, vai começar depois, tão logo dispusermos dos dados coletados pela Hera. Isso vai permitir um estudo mais profundo da história da dinâmica do Dimorphos e do Didymos, e entender melhor tanto o que já aconteceu como o que pode acontecer com o sistema”, diz.

Uma surpresa nas fotos

Meses após a primeira publicação do artigo, as primeiras imagens da missão Dart revelaram uma surpresa: ao contrário do esperado pelo brasileiro e seus colegas franceses, o Dimorphos possui formato oblato. O dado inesperado resultou em um convite a Madeira para integrar também a equipe da Dart, a fim de ter acesso aos dados mais atualizados gerados pela sonda norte-americana. A partir desses dados, o grupo desenvolveu um novo estudo, também publicado na Icarus, em fevereiro passado, no qual sugeriu processos para explicar a estrutura do asteroide.

“Nossa sorte foi que, nesse meio-tempo, surgiram outros trabalhos que estudaram as avalanches e mostraram que as partículas eram ejetadas da superfície do Didymos com muita força”, diz o físico brasileiro. Esses estudos puseram abaixo a suposição inicial, que resultava na formação de um anel próximo ao asteroide maior. Uma vez que estes artigos apontavam para uma ejeção das ejetadas a distâncias maiores, foi possível assumir um anel estendido. “Isso muda completamente os resultados, porque um anel com estas características permite a ocorrência de velocidades mais baixas”, diz.


Asteroide Didymos (maior, à esquerda) e seu satélite, Dimorphos, a imagem foi tirada cerca de 2,5 minutos antes do impacto da Dart da NASA.
Crédito NASA/Johns Hopkins APL

A nova modelagem desenvolvida pelo grupo, que considera a existência de um anel com raio maior, sugere que, provavelmente, a forma original do Dimorphos era prolata. Porém, com o passar do tempo, esse formato passaria por mudanças devido a colisões com outras partículas ejetadas do Didymos. Este processo, no qual partes menores se unem para formar algo maior, é conhecido como regime piramidal. “Essa teoria só é possível considerando-se velocidades baixas, porque, se a velocidade for muito alta, as partículas irão se destruir com as colisões”, diz Madeira. A principal hipótese defendida pelo grupo no trabalho era que, após a ejeção do material, duas partes de formato prolato que existiam em órbita do Didymos se aglutinaram. O resultado desta fusão foi a forma oblata do Dimorphos observada pela sonda  Dart. O nome proposto pela equipe para o resultado final do processo foi “satélite binário de contato”.

Em 1 de novembro, essa possibilidade teórica foi confirmada por meio de observação pela missão Lucy, da Nasa, que executou seu primeiro sobrevoo sobre o asteroide Dinkinesh. O voo permitiu descobrir que não apenas o asteroide é parte de um sistema binário, como também apresenta um formato de satélite binário de contato, validando a teoria do grupo de pesquisa. Essa é a primeira confirmação da existência de satélites com esse formato, o que abre uma nova janela de exploração da história desses e de outros asteroides.

Imagem de abertura: ilustração da espaçonave DART da NASA antes do impacto no sistema binário Didymos.Crédito: NASA/Johns Hopkins APL/Steve Gribben